
Daniela Macioszek
Naquela noite a janela estava aberta.
Engraçado, no mínimo, como nosso cérebro escolhe pequenos fatos e o transforma na história. Porque não conseguia me lembrar o dia da semana, a hora no relógio ou minha idade, porém, recordava perfeitamente de ter sido este o dia que acabei por esquecer de fechar as janelas, incomum para alguém com costume rotineiro de autopreservação.
Todas as tarde, antes do anoitecer, levantava-me de onde estivesse e abaixava as janelas do quarto roxo, meu quarto. Passava a tranca e juntava as cortinas.
Ali ficava, então, protegida daquele lado de fora.
Honestamente, não havia do que proteger, nenhum mal a afligir.
Dividia a casa com avós, pais, irmão e cachorro. Modesta, costumava ser de meu bisavó até morrer, assim como outros três filhos, e passar para as mãos de meu avô. Acabei por dar sorte de grande em ter um aposento só meu, decorado ao nos mudarmos com paredes arroxeadas, prateleiras brancas e cama de princesa, virado para os fundos pequenos, onde a vista dava para o varal, lavanderia e muro. Chances pequenas de cruzar com algo que não fosse um dos seis gatos da vizinha. Raramente era atormentada pelos pensamentos de que pelo menos quatro pessoas de mesmo sangue acabaram por morrer dentro da casa, além de ser tudo menos supersticiosa, me fora informado, antes da mudança, que cada um morrera em seus momentos doentes no hospital, cercados de enfermeiras e familiares avisados previamente.
Esperava que indolor. Duvidava muito que fantasmas teriam o empenho de desvincular-se do hospital, ou de seus tão queridos túmulos, para assombrar uma menininha. Muito menos uma como eu, feliz num novo lar, nova cama, com novas paredes e janelas grandes.
Comentava por vezes aos meus amigos, estufando o peito, sobre a herança da casa antiga, tendo quase sempre os mesmos questionamentos sobre o medo do inexistente.
Histórias de fantasmas, assombros de espíritos que se recusavam a deixar os vivos. Detestava toda e qualquer menção a respeito, sabia melhor do que dar ouvidos a besteiras espirituais, se não foram os cinco anos de catequese na igreja, não seriam lendas urbanas nem boatos murmurados que me fariam passar a acreditar em qualquer conexão com algo invisível, intangível. Invejavam meu quarto solo e era tudo.
Ficava fácil de ignorar as perguntas sobre meus antepassados quando pouco sabia a seu respeito, morreram enquanto ainda era muito nova, o suficiente para lembranças não fixarem.
Por que deveria uma simples criança preocupar-se com o que já foi?
Então passaram-se os anos, medos do desconhecido continuaram como realidades distintas a que presenciei, sendo que, com a chegada da adolescência, inseguranças fúteis tomavam o lugar de qualquer ameaça séria. Filmes de terror eram comédia ao comparados com corte de cabelo ruim ou roupas que paravam de servir, chegava até a os degustar com prazer, encontrando no horror dos personagens saída para problemas do coração jovem.
Sorria com os clássicos e xingava os reboots, devorava Poe e King com a voracidade de uma de uma leoa, repetia jogos de sustos para sentir as emoções.
Nada poderia assustar alguém imatura e ignorante sobre a própria coragem.
Mesmo assim, diariamente a fechadura era selada, trancas passadas e cortinas fechadas antes do anoitecer. Deitava sobre o travesseiro e abraçava um ursinho de pelúcia para conseguir pregar o olho, coberta até os dentes sem contato com o mundo exterior, após horas em meu próprio. Passei a questionar-me, após tantas recordações e recuperações, do motivo de tanto zelo, sendo que não havia medo.
Sem medos, já que não havia ameaça.
Sem medos, todavia com tantas precauções.
Sem medos, até a noite da janela estava aberta.
Como dito, não recordo do dia da semana, muito menos do mês, menos ainda o ano.
Gostaria de poder citar ter dezesseis, por considerar uma idade ainda adequada para crer dominar o mundo sabendo tão pouco dele ao mesmo tempo de sentir ser devorada por cada interação, porém, temo ser mentira e é algo ao qual não tenho tempo, nem palavras restantes, para o fazer. Tinha, então, entre quatorze e dezesseis, o auge da tolice hormonal, e por muito concentrava-me na lição do computador, fosse vídeo ou trabalho atrasado. Concentrava-me com minha vida e a noite estava fria.
Provavelmente o vento era apenas uma imagem criada por minha própria cabeça, afinal, a janela estava aberta e seria improvável de a deixar neste estado caso realmente estivesse frio.
Há muito a vidraça estaria impenetrável e a visão proibida pela barreira de veludo escuro.
Contudo, lembro de estar frio como o submundo, o foco no brilho atônito e os fones, tão sempre a me acompanhar, recentemente estragados. Escutava apenas a sinfonia ritmada dos roncos dos corpos nos quartos ao lado descansando em suas respectivas horas de inconsciência.
Deveria ter ido me deitar como os outros, algo que, por coincidência ou premonição, pensara minutos antes do ocorrido. Números avançavam no relógio e, junto de seu passar, um agouro subiu-me pelo corpo, sentimento agonizante de que algo se encontrava errado. Primeiramente tentei ignorá-lo, deveria ser um enjoo ou falta de água, dor de cabeça provocada pela noite de sono que perdia para o nada, ademais, fui rapidamente perdendo a noção do redor, já não escutava os roncos, muito menos prestava atenção no que meus olhos viam na tela, os dedos recusavam a se mexer para qualquer coisa que não tremerem, acompanhando o nervosismo da perna espasmódica.
Abri a boca e mastiguei uma língua seca, acompanhada da garganta que perdera sucintamente sua voz, incapaz de gritar.
O desespero alastrou-se do peito para o restante dos membros, chegando ao topo junto da respiração acelerada sem motivo algum, um suor frio que se acumulava na testa e pupilas nervosas, desfocando da realidade cada vez mais. Imaginei ser apenas um ataque de ansiedade, de nervos, no entanto nenhum dos que já tivera ou presenciara na vida chegaria perto de fazer o tempo congelar daquela forma, fazer uma brisa inexistente surgir e, principalmente, colocaria medo tão profundo no coração, cortando não como uma faca, e sim uma corda, apertando-o até que a circulação cessasse e um infarto ameaçasse entrar em seu lugar.
Nada físico neste mundo me faria sentir novamente os olhos em minha nuca, a certeza de que, fosse o que quer que passava por, não o fazia sozinha.
Alguém me observava na janela.
E eu o sentia.
Enquanto a cabeça fervia, considerava as possibilidades de como sair daquela situação, como agir para sair viva. Controlei a respiração o máximo que poderia para não me mover de forma suspeita, sendo que meu observador não havia, pelo menos por enquanto, utilizado de sua posição superior para me atacar, o que levei como sinal de que ainda achava estar secreto, assim deveria ficar até que bolasse um plano. Discordei milhares de vezes do instinto, dizendo a mim mesma que deveria ser a imaginação falando mais alto, afinal, não ouvira nada de errado, nenhum barulho no telhado, peso no chão, passo agitado ou uivo do cachorro.
Ouvia tão pouco que temi estar surda sem saber. O que poderia alguém de tamanho talento silencioso querer de mim? Faria mal a meu irmão, a minha mãe, ou a minha avó dormindo tranquilamente? Estaria aqui para meu sequestro ou assassinato? Eu seria abusada primeiro ou depois de encontrar o caminho para o fim da vida?
Seria alguém conhecido? Observava-me há tempo? Sabia quanto de minha pessoa? Seguia meus passos há horas, dias ou meses? Por que decidira agir agora?
E o que eu estava aguardando?
Até quando permaneceria parada, esperando a faca atravessar-me as costas, na esperança de que doesse menos fingir que não estava ciente de meu destino?
Atormentava-me o não saber o que fazia, por que fazia ou quem fazia. Decidida a encerrar a tortura, numa besta tentativa de pegá-lo desprevenido, numa girada de cadeira determinada a levantar-me rapidamente e assustá-lo, fechar a janela e berrar o mais alto que conseguisse enquanto corria para a cozinha, onde pegaria uma faca e seguiria para o telefone na sala. Acordaria quem pudesse acordar, no melhor que pude planejar.
Contei a três e me virei, porém não cheguei a me mover mais do que isto. Cada músculo ainda ativo em minha movimentação acabou travado pela surpresa do encarar a figura responsável pelas aflições. Mesmo que pudesse gritar, a garganta muda não foi aberta. Senti, pela primeira vez, o que era o verdade terror. Preparei-me para ver um ser tangível, a forma de um homem perverso que tiraria minha vida enquanto meus prantos escorriam no ar, o líder de uma gangue de bandidos que invadiria meu terreno e se livraria de toda alma viva no local, aguardando o momento ideal para fazer silenciosamente de primeira vítima a adolescente que não dormiu na hora certa. Fosse ladrão, estuprador, assassino ou stalker, o que estava certa era de que veria uma forma humana. Real.
Existente. Tangível. Crível.
Aquilo a me olhar não era nada disso.
Deparei-me com um formato, não pessoa.
Um vulto preto pequeno demais para ser um homem adulto e demasiadamente grande para uma criança, sem formato definido. Seu corpo, humanoide e vago, assemelhava-se a uma sombra saída diretamente da parede para outra dimensão. Por mais indeterminada que fosse, a coisa não era alucinação. Nada via atrás de seu semi-corpo, formado pelo breu intenso, um negro que jamais seria repetido por tentativa, pois seu exterior dava vida aos fundos de cavernas e poços enlameados, uma matéria escura que, sem mover-se, mexia-se. Sem falar, chamava-me para perder-me no meio de sua imensidão, um abismo que os oceanos desejavam poder ter. Era o nada, o simples nada, no formato mais puro de existência, comprovação de que ali estava e continuaria a fazê-lo. Comprovava cada medo, sussurro e boato.
Nenhum traço definido, a não ser pelos olhos.
Duas bolas amarelas brilhantes, ofuscantes, das quais ninguém poderia ser capaz de tirar o olhar. Uma vez dentro deles, era puxado para sua própria eternidade.
Soube exatamente o que eram: a luz no fim do túnel.
A mesma da qual tanto alegavam encontrar em meio a escuridão, a visão final de uma eternidade singular, da qual nenhum acudiu seria capaz de lhe tirar. Somente de a encarar, tive plena consciência do que se colocava a minha frente, a figura cósmica que falavam e não sabiam a forma, o embalsamento dos medos mais profundos e final das tristezas mais agoniantes.
Dizem que sua vida passa pelos olhos quando se encontra o fim. Esperava que meu coração se acelerasse, escutasse as batidas rápidas do sangue pulando nas veias dolorosas do pulsar forte, que respiração descontrolada e gritos fossem minha resposta. Desejei ter reagido, por mínimo que fosse, algo digno de ser contado no enterro, após encontrarem o corpo vazio de alma. Ademais, nada fiz. Sentia o vazio, como se o coração sequer existisse, o corpo estivesse rígido e dentro do caixão e emoções, confusas, caídas na penumbra.
Desejei apenas ter fechado a janela.
Aceitei o medo.
Aguardei o encerramento e retruquei o encarar do báratro, quando, inesperadamente, os círculos amarelos fecharam-se num piscar tardio, sumindo com o brilho e levando consigo o resto do vulto, deixando de existir.
Deixando-me só.
Quando recobrei a consciência desliguei o computador, acreditando ter sofrido de uma alucinação, tendo a certeza de que fora mais real do que meus anos viva. O tempo que passei naquela posição ninguém sabe por certo, fossem horas ou minutos, o que para mim poderia ter sido séculos. Jamais, nos anos que se passaram, contei para ser vivo qualquer a experiência. Não dormi por dias e procurei uma benzedeira que nada curou. Internamente, a melhor teoria que criei para o motivo de ainda respirar foi justamente a falta de reação, de medo. Recordarei para sempre de fechar as janelas e cortinas antes de dormir, sabendo que, caso encontre novamente com o bicho-papão perambulando em busca de almas temorosas, não terei a mesma sorte de sair vitoriosa perante dar de cara a cara com a morte.
Desta vez, era assolada por um novo sentimento: medo.
Do desconhecido, do espiritual, do além.
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