
Maria Anitta Cabral
Hoje. Preciso fazer isso hoje. É o recorrente pensamento que flutua em minha mente a todo tempo, todos os dias, todas as horas, talvez hoje eu consiga…ou não. Não me surpreenderia se já fosse dezembro e tudo continuasse intacto, as vezes ouço ele me chamando, uma voz fina e tristonha que atormenta a minha alma. A campainha toca tirando-me do transe.
– Dona Helena, já acabei com as compras
– Estou indo! – digo levanto rapidamente tropeçando no edredom que derrubei no chão durante a noite. Abro a porta e vejo André com uma feição preocupada, somente o tinha visto daquele jeito quando foi demitido da vendinha na esquina, faz uns 5 anos? Não sei, o tempo passa diferente agora – Conseguiu achar? Espero que não tenha entrado em encrencas por isso.
– Eu tentei, porém disseram que precisa de uma receita nova, sugiro que vá ao médico dessa vez.
– Está tudo bem – Digo tentando digerir o que acabou de me dizer – pode deixar as compras ao lado da geladeira, por favor.
– Aliás, eu sei que não é da minha conta, mas vi o senhor Júlio na entrada do prédio..
– Deste prédio?! – digo apertando as mãos, espero que ele não note que comecei a tremer – Ele disse algo a você?
– Não, mas acho que ele veio ver a senhora.
Esperei André sair e comecei a arrumar toda a casa, se Júlio estiver mesmo aqui não demorará muito até que ele bata na minha porta. Passo um café e mudo de roupa, ponho um vestido floral e espero que transmita uma falsa serenidade e sensação de bem estar, ensaio algumas respostas convincentes e espero com uma xícara de café em mãos em frente a TV que não ligo a meses, espero que ainda exista o programa da Ana Maria Braga, pois não sei quais assuntos inventar além da torta de frango do dia. A espera me assusta, não o vejo desde…bem, ele escolheu seguir em frente como se nada tivesse acontecido, se ao menos soubesse que tudo teria sido mais fácil. A campainha toca novamente, mas desta vez sigo com cautela.
– Quem é? – Pergunto já sabendo a resposta.
– É o Júlio, Helena, posso entrar? – pergunta, consigo sentir a hesitação em sua voz.
– Júlio, o que faz por aqui? – pergunto tentando parecer surpresa, talvez um sorriso caia bem.
– Estava passando pela cidade e resolvi fazer uma visita, sua mãe entrou em contato semana passada e perguntou-me se tinha notícias suas. Pelo visto ignorar ainda é a sua especialidade. – Diz olhando fixamente em meus olhos. Os dele continuavam os mesmos, melancólicos e vazios.
– Eu andei ocupada com um n projeto, você sabe, tenho olhado os jornais
– Sei? Do que se trata? Voltou a procurar vagas em consultórios? Eu e você sabemos que costurar feridas está fora do alcance.
– O que veio fazer aqui Júlio, não é saber como estou, isso tenho certeza.
Ele atravessa a sala até o corredor atrás da cozinha e tenta abrir a segunda porta, que está trancada.
– Onde está a chave? – Diz deixando transparecer uma certa agressividade em sua voz.
– Eu não sei – minto descaradamente – O que está procurando?
– Você ainda toma aquelas pílulas, não é? ao menos ainda tem lucidez. – Diz ele, a lembrança das falas de André balançam pela minha cabeça enquanto caminho até a porta da frente – eu acho que você deveria ir, sua noiva o deve estar esperando – Fito os meus pés e percebo o resto do esmalte vermelho em meu dedinho, preciso mesmo sair daqui
– Você sabe que isso não tem nada a ver comigo, precisa deixá-lo ir – Diz olhando-me com pena – você ainda pode recomeçar assim como eu, só precisa deixar ir.
– Adeus – digo abrindo a porta bruscamente, sinto as lágrimas queimarem mas tento segurá-las, não quero que ache que sou fraca, ele foi ao seguir em frente muito rápido.
Encaro o chão após Júlio sair e noto que a casa está fria, pequenas sombras se esgueiram no corredor até o quarto, consigo ouvi-lo daqui, seu choro agudo pedindo por socorro. Paro em frente a porta e seguro a maçaneta velha e penso que talvez seja hoje. O choro aumenta, os gritos e arranhões através da porta percorrem a minha espinha e arrepia até os cabelos da nuca, talvez se eu ao menos deixasse-o sair. O declínio é rápido, a abstinência causada pelos medicamentos é forte, sinto minha cabeça doer a cada instante.
– Mamãe, por favor, eu estou com medo…
Ouço ele dizer. Corro até a cozinha e procuro pela chave escondida na gaveta de talheres, os gritos estão mais altos e me pergunto se os vizinhos estão incomodados. Enquanto rodo a fechadura freneticamente as luzes ao meu redor começam a tremeluzir, talvez eu realmente esteja ficando louca. Nada além de memórias empoeiradas é o que encontro ao fitar o quarto, a cama arrumada de maneira impecável e os brinquedos organizados no baú trazem uma sensação angustiante. Atrás da cortina noto uma pequena sombra de um garoto, ele veste shorts brancos e camisa listrada, seus olhos vazios e vermelhos de choro me encaravam com pesar.
– Não consigo dormir – ele diz enquanto caminha lentamente até mim.
Noto uma ferida podre com o que parecia ser uma tentativa de costura no topo de sua cabeça, o sangue marcava o chão conforme seus passos eram formados. Meu corpo se encolhe conforme seus braços finos entrelaçam a minha cintura, porém é o cheiro da morte que invade os meus pensamentos. – Você não é real – penso comigo mesma, as pequenas faíscas de culpa começam a transparecer cada vez mais, não consigo decidir qual cenário é mais assustador, ver o meu filho morto me abraçando ou saber que finalmente fiquei maluca. Minutos. Segundos. Quando olho pela janela do quartinho percebo que já é noite, a quanto tempo estou aqui dentro? É difícil pensar com aquele cheiro impregnado em minhas narinas. – por favor está doendo muito, não deixe ela fazer isso – O garoto diz, tremendo em meus braços – de quem está falando? – consigo perguntar com a voz tomada de agonia ao mesmo tempo em que a vejo parada ao lado da cama, ela segura uma agulha e um vaso com remédios do qual conheço bem, seu semblante jovem e preocupado transparece em sua fisionomia, cabelos mais curtos e olhos azuis exatamente iguais aos que encaro todos os dias diante do espelho.
– Você sabe que a culpa foi sua disso ter acontecido – Ela diz – você e toda essa sua mania de proteção.
– Eu preciso sair daqui – sussurro tentando me mover – isso não é real, você não é real…
– Eu sou e você sabe disso – Diz ela encarando-me fixamente – como consegue viver sabendo que ele conseguiria viver se você não o tivesse dopado? Costurar sua cabeça não foi o suficiente? Me diga! – ela gritou.
– Eu não…não foi minha culpa, eu fiz o que tinha que ser feito, a ambulância demorou demais…eu…
– Deveria ter esperado, gritado pelos vizinhos, qualquer merda seria melhor do que aquilo. Ele era uma criança e você o fez beber aqueles remédios, os seus remédios pra dor.
Ela e aproxima rapidamente enquanto eu tento correr para o corredor, mas ela é mais forte do que eu e logo agarrou meus cabelos.
– Tem um lugar para pessoas como você no inferno, espero que passe a eternidade lá.
Ela diz tentando enfiar os comprimidos em minha boca, tento me desvencilhar de seus braços mas sou atingida com um golpe no estômago que me faz cair de dor no chão empoeirado do quarto.
– Seria mais fácil se você aceitasse, acha que o Júlio e sua família estão preocupados? Você passou os três últimos natais dividindo torta de pêssego com a vizinha e os seus 6 gatos de estimação, não sai de casa ao menos que seja pra colocar o lixo pra fora, a sua única companhia é um pirralho que entrega as suas compras porque sente pena de você.
Diz apertando com força a minha cabeça contra o chão. Estou muito tonta pra perceber sua mão forçando os remédios em minha garganta. Estou quase desmaiando quando ouço uma pancada, vejo o garoto com um abajur roxo amassado em suas mãos e o que parece ser sangue escorrendo pela fratura na nuca da minha Eu fantasma que agora se encontra de pé, seu olhar assustado parece não compreender o que acabou de ocorrer, o menino olha para mim e gesticula com os lábios o que parece ser um “corra”. Enquanto a minha Eu segue em direção ao menino com os braços esticados, um pico de adrenalina me permite correr de volta para o corredor, consigo ouvir os passos frenéticos atrás de mim – Preciso sair daqui – Penso. Precisa ser hoje, preciso deixar isso para trás, enquanto eu estiver apegada ao seu corpo gélido ele nunca terá paz, por isso obriguei minhas pernas a continuarem.
Estou perto do elevador do prédio quando a vejo cambaleando em minha direção, de todos os jeitos que desejei morrer, por um fantasma horroroso definitivamente não é um deles. Eu fecho os meus olhos e quando os abro novamente vejo que não há sinal do meu Eu, começo a rezar assim que a porta fecha, preciso me livrar disso, ainda tenho uma chance, ainda posso recomeçar a minha vida. Lembro de sua mão em meu rosto e como tudo parecia real, talvez eu devesse mesmo procurar um médico. A luz vinda de fora do saguão cega-me por um instante, porém consigo ver o que parece ser Julio e André conversando do outro lado da rua, não penso duas vezes e disparo até eles. O fio de esperança se rompe com o calor do para-choque de um caminhão em minha pele, durante 30 segundos tudo o que eu senti foi a mais pura ardência em meus ossos e então tudo escureceu.
****
6 meses depois.
– Então, o que acha? – Diz Elias abrindo os braços – O tamanho é bom.
– O único problema é a localização, fica um pouco longe do trabalho, não acha? – digo ao analisar os móveis embalados ao redor do quarto.
– Eu vi um ponto de ônibus no final da esquina, e também falta pouco para comprarmos o carro – Diz, sua pele escura transparecia o cansaço que estávamos sentindo durante a busca por um lugar novo na capital, porém, o vestígio de animação em seus olhos me convenceram completamente. Sinto o que parece ser um chute na barriga, Emma está agitada hoje, talvez seja um bom sinal.
– Está bem, você venceu, vamos ficar com o apartamento – digo enquanto apertava a mão de Elias, deixando-o surpreso.
– Eu juro Bruna, de todas as minhas namoradas você é a minha favorita – Ele diz em meio a um sorriso convencido. Me afasto para dar um soco de leve em seu braço quando tropeço de uma das caixas, ao me recompor percebo que derrubei no chão um abajur velho e amassado, manchado com o que parece ser tinta.
– Nós temos que pedir pro síndico tirar toda essa tralha daqui antes de nos mudarmos – Diz ele.
– É, tem razão, melhor irmos antes que escureça – Digo. Penso que a espera valeu a pena enquanto ando em direção a porta, antes de fechá-la viro-me e dou uma última olhada no que seria o meu novo lar doce lar.
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