
Oswaldo Neto
25/07/2021 – Diário do Mato Grosso
No dia 3 de Abril de 2014, a cidade de Sorriso, no Mato Grosso, foi surpreendida com uma triste notícia: o Pe. Isidoro Lobo, da Paróquia do Recanto dos Pássaros, havia falecido vítima de um acidente de trânsito na BR 116.
O padre, que tinha 87 anos de idade, teve um papel fundamental na fundação da cidade em 13 de maio de 1986 e foi o grande responsável pelo desenvolvimento do Recanto dos Pássaros, bairro de onde já não saía desde 2010.
Aproximadamente um ano depois de sua morte, no dia 2 de fevereiro de 2015, Rosângela das Neves, 34, uma funcionária da igreja onde o padre ministrava suas missas, começou a receber ligações do número de celular de seu falecido chefe, Pe. Isidoro Lobo.
Ela me contou que, num primeiro momento, achou muito estranho receber uma ligação desse número, mas que algo parecido já havia acontecido antes: sua sobrinha havia ligado do número do irmão, que havia sido vítima de ação policial uma semana antes.
“Mas quando eu atendia o telefone”, ela diz, “eu não ouvia o Pe. Isidoro. Eu só ouvia um ruído estranho. Nas primeiras vezes eu não consegui identificar o que era, mas… mas lá pela terceira ou quarta vez que aconteceu eu acho que eu consegui ouvir como se fossem pessoas gritando ao fundo, não sei explicar direito.”.
Rosângela não foi a única a receber ligações do número do Pe. Isidoro. Na verdade, as ligações começaram a ficar cada vez mais frequentes com dezenas de pessoas recebendo ligações do falecido Padre com esses ruídos estranhos que pareciam conter gritos ao fundo.
Conforme mais e mais pessoas iam recebendo as estranhas ligações, hipóteses começaram a surgir.
Pastor Fernando Siqueira, 47, da Igreja evangélica Congregação do Paraíso foi à Rádio Sol Nascer da cidade e disse que também começou a receber ligações do falecido padre e que não tinha dúvidas de que “o padre estava ligando do inferno”.
Os Sons do Inferno
Não se sabe exatamente quem começou com esses boatos de que os sons emitidos das ligações seriam sons do inferno, mas a hipótese ganhou real popularidade somente após a entrevista do Pastor Siqueira na Rádio Sol Nascer.
Padre Isaías Gomes, que conviveu com Pe. Isidoro, foi até a televisão local para defender a integridade de Pe. Isidoro Lobo e desmoralizar o Pastor Siqueira nesse processo, mas as suas tentativas foram todas em vão: a cidade já começava a acreditar que aquele que antes fora um membro muito importante da cidade havia feito alguma coisa de muito errada durante seu tempo na terra e que agora estava sendo punido nos calabouços do inferno.
Com o passar dos meses, a história começou a morrer e, embora as ligações continuassem e as vítimas das chamadas continuassem relatando os sons do inferno, a notícia começou a ficar velha e o interesse na história começou a se perder.
É aí que entra o trabalho jornalístico de Silva Machado, um repórter conceituado da região que começou a investigar detalhadamente a vida pregressa de Pe. Isidoro.
A história do Padre
“Pe. Isidoro nasceu em Taubaté, no interior de São Paulo, em 1927 e, segundo o que eu consegui levantar de entrevistas pregressas, ele nunca teve o interesse de ser Padre durante a infância e adolescência”, disse Machado em uma entrevista que me concedeu para a produção dessa reportagem.
“Na verdade, na adolescência ele era um jovem rapaz comum, que tinha o sonho de se alistar no exército e viajar o país com as tropas.”
Entretanto, um imprevisto haveria de acabar com as ambições do jovem Padre, fazendo com que a sua vida mudasse para sempre.
“Em 1944, quando tinha 17 anos, Isidoro se envolveu em um acidente de carro muito feio. O veículo em que ele e mais 4 amigos estavam colidiu com um caminhão. No fim de uma curva infortuna e, de um ponto cego em uma ultrapassagem irregular, que quase todos ali descansaram na escuridão eterna. O acidente acabou matando tanto o motorista do caminhão, como os 4 amigos na hora, mas o padre, bem, ali não era a hora dele… ”
Machado me contou que, embora tenha sobrevivido, o Padre saiu com o osso da bacia e a perna esquerda quebrados, além de uma leve fratura craniana.
“Em uma entrevista à Gazeta Católica em 1966, Isidoro contou que, quando estava no hospital, enquanto sofria de uma dor inigualável, como nunca sentira antes, viu a imagem de Santa Maria.”
Bastou essa revelação para que o Padre se convertesse fortemente. Entretanto, os sonhos de servir o exército ainda existiam e ele tentou se alistar. Por conta das fraturas, que fizeram com que começasse a mancar, Isidoro foi dispensado do serviço militar.
Desiludido, mas muito mais fiel do que antes, ele se mudou para um convento, onde começou a estudar livros de teologia e lá decidiu que seria um Padre.
“Há um vácuo nesse período, que vai de 1945 até meados dos anos 1960. Por volta de 1965, ele assumiu uma igrejinha em São José dos Campos e começou a ter uma relação muito estreita com um capitão da polícia militar da cidade. É aí que as coisas começam a ficar um pouco interessantes.”
Um segredo guardado a sete chaves
O ano era 1968. A ditadura Brasileira havia acabado de passar o Ato Institucional número 5 e já faziam dois anos que Padre Isidoro havia assumido uma das capelas de São José dos Campos, onde era adorado por todos.
Dentre as muitas amizades que o Padre conquistou na cidade, a que mais chamava a atenção era a que tinha com o Capitão Roberto Tavares, que chefiava as operações da PM na cidadezinha pacata do interior.
“A coisa toda começou a ficar estranha quando eu decidi olhar para alguns documentos da época. Essa relação próxima com o Capitão da polícia me soava muito estranha e peculiar”, me contou Machado.
“Ele era uma fonte constante em documentos da Polícia da época, e denunciou muitas pessoas para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, órgão de repressão da ditadura), inclusive membros da própria igreja.”
Acontece que o Padre denunciava na cara dura as confissões de militantes comunistas que estavam se escondendo na cidade para as autoridades.
“É uma desonra para a batina. As pessoas iam se confessar com ele e acabavam sendo denunciadas. Em um dos documentos, ele denunciou um funcionário que estava irritado com a sua situação na fábrica e que confessou que desejava matar o chefe.”
Machado fez as contas e calculou que o Padre Isidoro havia feito, ao todo, 64 denúncias ao longo de 5 anos. Das 64 pessoas denunciadas, Machado estima que pelo menos 15 delas desapareceram misteriosamente.
“Aí eu publiquei a reportagem no jornal da cidade em 2017. E a reação não foi nem um pouco perto do que eu esperava. A população começou a se virar contra mim. Eu nunca vi isso acontecer!”
Machado me contou que começou a receber ameaças de morte de cidadãos anônimos. Ele decidiu se mudar de Sorriso quando um grupo de fanáticos até hoje não identificados apedrejou as janelas da sua casa.
A Denúncia que mudou tudo
A reportagem de Machado foi publicada em Janeiro de 2017 e ele teve de se mudar da cidade em Maio. Alguns moradores, incomodados com o que chamavam de “revisionismo histórico da cidade de Sorriso” ficaram ultrajados com a tentativa do jornalista de manchar a história de um dos fundadores da cidade.
Entretanto tudo isso mudou em Junho daquele mesmo ano. No dia 03, o Pastor Siqueira foi até a Rádio Sol Nascer novamente defender publicamente Silva Machado e anunciou que teria provas de que o Padre não era o santo que tantos pregam.
No dia 10, Siqueira levou novamente para a rádio um membro de sua Igreja, Fábio Kimmel, um jovem de 35 anos, que tinha uma denúncia para fazer.
O programa foi feito em um tom mega sensacionalista. A super denúncia só foi feita depois de 45 minutos de programa. Kimmel havia dito que fora abusado sexualmente por Padre Isidoro por 5 anos durante a sua infância, quando era coroinha.
Novamente, os cidadãos raivosos e defensores da reputação ilibada de Padre Isidoro Lobo se revoltaram e começaram a atentar contra o Pastor Fernando Siqueira e contra o próprio Kimmel, que havia feito a denúncia.
Quando a polícia começou a investigar o caso, os investigadores foram cautelosos e, em um primeiro momento, até chegaram a insinuar que Kimmel estaria mentindo.
Entretanto, mais e mais pessoas começaram a aparecer com histórias similares. Ao todo, 16 homens fizeram denúncias parecidas, afirmando que o Padre aproveitava a sua posição de superioridade para abusar das crianças da sua congregação.
Quando a polícia admitiu que os crimes haviam, de fato, sido cometidos, a fúria dos apoiadores do falecido Padre começou a diminuir.
Entretanto, a história não para por aí. Silva Machado decidiu retornar até a cidade uma última vez para investigar mais a fundo.
“Eu estava com uma pulga atrás da orelha, então, mesmo sendo odiado na cidade, eu sentia que era meu dever investigar essa história.”
Machado, usando as suas habilidades jornalísticas, conseguiu identificar quem foram as vítimas e conversou com 6 delas.
“A coisa toda começou a virar uma bola de neve. Quanto mais eu conversava com as vítimas, mais eu sentia que havia mais nessa história do que o que estava na versão oficial da polícia. Três das vítimas com que conversei falaram que o Padre dizia que, se elas quisessem, ele poderia levá-las para viajar pelo mundo, para conhecer outros lugares. Isso me soou muito estranho e eu comecei a investigar mais.”
Foi quando ele se lembrou que, em agosto de 2005, uma quadrilha que praticava tráfico infantil havia sido presa. A polícia levou o caso como concluído após prender os 7 responsáveis, mas nunca investigou a história mais a fundo.
Machado decidiu que seria uma boa ideia conversar com esses presos, já que muitos deles eram cidadãos conhecidos da cidade e frequentavam as missas de Padre Isidoro.
Ele obteve a sua resposta logo na primeira entrevista. Mesmo depois de tantos anos de ofício, sempre se surpreendia com a facilidade com que algumas pessoas desabafavam com ele.
Leandro Rocha Marques, um dos poucos que ainda estavam presos, confessou que a quadrilha utilizou os porões da igreja de Isidoro como uma espécie de Galpão, onde guardavam crianças para serem traficadas para o exterior pelo menos uma dúzia de vezes ao longo dos 12 anos em que o grupo operou.
Ao investigar mais a fundo, Machado também descobriu que essa quadrilha de tráfico de crianças era muito maior do que ele acreditava.
“A coisa permeia todo o Brasil. Uma das minhas fontes mais confiáveis dizem que o esquema todo começou lá em 64, em São José mesmo, possivelmente com a ajuda do Capitão Tavares.”
Após publicar a matéria, em fevereiro de 2019, a população da cidade se desiludiu completamente e mesmo os apoiadores mais fervorosos do Padre agora tinham vergonha de admitir que um dia defenderam a história desse homem.
Depois disso, a história foi esfriando a cada dia. As ligações macabras vindas diretamente do inferno estranhamente começaram a parar.
Entretanto, de tempos em tempos, uma pessoa ou outra posta nas redes sociais que recebeu uma ligação do maldito Padre e que ouviu os sons do inferno com os próprios ouvidos.
E enquanto somente Padre Isaías ainda insiste em defender a moral do Pe. Isidoro, a maioria da população da cidade de Sorriso tem uma certeza indefectível de que o Padre Maldito do Recanto dos Pássaros queima sentado no colo do próprio diabo.
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