O Velho Piano

    Lucas Brito

O ventilador de teto girava lentamente dentro do pequeno escritório, onde todos escutavam atentamente enquanto o advogado lia os termos do testamento. Mas, na ocasião em questão, estavam presentes Adolfo e Maria do Carmo junto com o filho, Lucas, neto do falecido Olair Ribeiro, cujo nome foi citado logo em seguida: 

    — “Para Lucas, meu querido neto, deixo meu velho piano. Para que se lembre de mim e sinta a minha presença cada vez que tocá-lo”

De repente, uma série de lembranças da infância não muito agradáveis vieram à tona em sua cabeça. Durante as férias escolares, Lucas quase sempre ia visitar o avô e costumava entreter-se tocando no piano. “Tocar” é força de expressão, pois Lucas não sabia tocar quase nada. O velho Olair queria muito que seu neto aprendesse a tocar e tentou lhe ensinar algumas lições, mas seu método de ensino não era dos mais corretos, para dizer o mínimo. Era comum, quando Lucas errava uma mísera nota, o velho enfurecer-se tanto que lhe batia nas mãos e na cabeça com uma vara de madeira, chamando-o de “mentecapto” e “estúpido”. O resultado foi que o menino nunca aprendeu a tocar quase nada, apenas arranhava as teclas extraindo delas sons dissonantes e alguns poucos acordes. 

A verdade é que o neto nunca demonstrou interesse genuíno pelo instrumento, nem quando era criança e muito menos agora depois de mais velho. Apesar disso, agora o piano seria propriedade sua. Apesar de demonstrar um leve entusiasmo na frente de seus pais e do advogado, por dentro Lucas estava indiferente, não sentindo a mínima alegria com a herança recebida. Toda vez que olhava o instrumento, lhe vinham logo à mente as agressões do avô durante as lições. 

    Levaram o piano para casa e o deixaram na sala. Adolfo e Maria do Carmo esperavam que a lembrança do avô, mais cedo ou mais tarde, despertasse em Lucas o interesse pela música. Mas ele raramente aproximava-se do instrumento, preferindo ficar em seu quarto ouvindo música ou sair com os amigos. 

* * * 

Os dias se passavam enquanto o velho piano acumulava poeira, abandonado em um canto da sala. Os pais decidiram então guardá-lo num pequeno quartinho nos fundos da casa como apenas mais um objeto velho e sem serventia, o qual não tinham coragem para desfazer-se. Lucas, ao chegar em casa mais tarde naquela noite, notou a ausência do instrumento, mas nada perguntou a seus pais, sentindo até certo alívio em se ver livre da herança indesejada.

Naquela mesma noite, já bem tarde, o garoto ainda estava acordado ouvindo músicas, quando pensou ter escutado algo. À princípio, pensou ser alguma interferência na música que vinha dos fones de ouvido. Ao tirá-los, percebeu uma melodia suave que parecia vir de algum lugar da casa. Logo descobriu que tipo de som se tratava: era o som das teclas de um piano! Por um momento não quis acreditar em seus ouvidos mas, curioso, levantou-se da cama e abriu a porta do quarto. Notou que o som ficara mais nítido, podendo ouvi-lo claramente agora. Mas de onde estaria vindo, já que o velho instrumento não se encontrava mais na sala? Lucas perambulou pela casa guiado pela melodia, até que se viu perto da porta do pequeno quarto nos fundos, e não teve dúvidas de que o piano estava trancado lá dentro. Mas quem o estaria tocando àquela hora da madrugada? 

— Pai, é você? – perguntou, aproximando-se da porta, porém ninguém respondeu. 

A melodia continuava a tocar, agora com mais intensidade e um andamento acelerado. Um instinto primitivo o alertava para se afastar da porta mas a curiosidade era maior e sua mão, mesmo tremendo, começou a girar levemente a maçaneta. Inesperadamente, a estranha melodia parou de tocar e tudo ficou em silêncio. Lucas voltou correndo para seu quarto, jogando-se embaixo das cobertas assustado, não saindo de lá até o dia seguinte. 

* * *

  Quando o dia amanheceu e Lucas foi tomar café, encontrou seus pais na cozinha. Adolfo, sorridente, lhe falou:

    — Bom dia, filho! Ouvi você tocando ontem à noite no velho piano do seu avô. Parabéns! Você tem talento, rapaz.

    — Mas, pai, não fui eu que toquei. Achei que tivesse sido o senhor. – respondeu, confuso. 

— Ora essa! E eu por acaso sei tocar? Não é verdade, Maria?

— Sim, é verdade. – respondeu Maria do Carmo, que bebia uma xícara de café com leite. 

— E a mãe? 

— Eu também não sei tocar nada. Apesar de papai ter tentado me ensinar um pouco de piano, nunca consegui aprender uma música sequer.

— Mas você ouviu o piano tocando ontem de noite, não foi? Aliás, onde você estava? Acordei e não te vi do meu lado.

— Eu ouvi, sei lá, não sei dizer de certeza. Acho que tinha ido ao banheiro nessa hora. Tive um sonho esquisito com meu pai essa noite, mas não consigo me lembrar dos detalhes. – respondeu, um tanto alheia à conversa.

— De qualquer forma, que bom que você finalmente deu valor à sua herança, Lucas. – concluiu Adolfo.

— Mas, gente, não fui eu quem tocou. Eu juro! Eu apenas ouvi o som do piano vindo ali do depósito e, quando fui abrir a porta, a música parou de repente.

Por alguns segundos todos ficaram em silêncio com a negativa de Lucas. Entreolharam-se diante do mistério que ali se formava. Maria do Carmo quebrou o gelo ao fazer um estranho comentário:

— O seu avô, Lucas, gostava muito de tocar naquele piano. Às vezes ele ia até tarde da noite tocando, enquanto eu e minhas irmãs ficávamos no quarto escutando. Era cada música bonita…

As palavras de Maria do Carmo só aumentaram o mistério. Por fim, sem chegarem a um consenso, mudaram de assunto. No decorrer do dia, Lucas pegou-se várias vezes pensando sobre o que ouviu na noite anterior, imaginando o que poderia ter acontecido caso tivesse aberto a porta e entrado no quarto escuro onde o velho piano parecia ter ganhado vida própria. Teria visto por acaso o fantasma do velho a tocar, tal como fazia em vida? Só havia uma coisa a se fazer a respeito: retomar a ação interrompida na noite passada e entrar no quarto misterioso.

Era ainda de dia quando Lucas foi até o quarto. Ao girar a maçaneta, a porta abriu-se lentamente, rangendo. O quarto estava às escuras, mas a luminosidade que entrou pela porta foi suficiente para iluminar boa parte do recinto. Os velhos degraus de madeira rangiam sob seus pés quando começou a descer, sentindo as finas teias de aranha roçarem seu rosto e seus braços. Tateando a parede, encontrou o interruptor e acendeu uma velha lâmpada que pendia do teto. Ao completar a descida, logo pôde enxergar o velho piano encostado em uma parede. 

Aproximando-se para ver melhor o instrumento, notou que a tampa que cobria as teclas estava levantada. O garoto, curioso, começou a aproximar seus dedos das teclas quando a pesada tampa de madeira fechou-se de repente sobre o teclado, produzindo um barulho estridente que reverberou pelo quarto. Tamanho foi o susto que o pobre garoto recuou vários passos para trás, quase vindo a  cair de costas no chão imundo. “Puta merda!”, o palavrão escapou-lhe dos lábios por instinto. Lucas rapidamente subiu as escadas de volta, apagou a luz e fechou a porta. Pelo resto do dia, não teve mais coragem para voltar ao velho quarto.

* * * 

Naquela noite e nas que se seguiram, o piano voltou a tocar sempre no mesmo horário: entre meia-noite e três da madrugada. Mesmo com o quarto fechado era possível ouvir o soar das teclas, ora mais alto, ora mais baixo. Por várias noites, Lucas permaneceu acordado até tarde para poder ouvir a música que vinha da escuridão daquele quarto. Sua curiosidade só aumentava a cada noite, mas não teve mais coragem de regressar ao quarto misterioso depois do incidente.

Até que uma noite a curiosidade venceu o medo e Lucas resolveu esclarecer, de uma vez por todas, aquele mistério doméstico. Levantou-se e foi em direção ao velho depósito. Mas, ao contrário das outras vezes, quando sua mão trêmula girou a maçaneta, a música não parou. Pelo contrário: pareceu até ficar mais vívida, como se quem tocasse estivesse esperando que ele adentrasse o sombrio recinto. Um estranho convite que o garoto resolveu aceitar.

Lucas começou a descer os degraus a passos vacilantes. A música agora tornara-se mais acelerada e dinâmica, como uma orquestra preparando-se para tocar um grand finale no último ato de uma peça teatral. Em cima do piano, uma única vela acesa iluminava fracamente o ambiente e, sentada em frente ao instrumento, havia uma forma branca sinuosa com dedos longos e finos a percorrer as teclas em movimentos rápidos e precisos. Aquela visão arrepiante lhe gelou o sangue e o fez recuar alguns passos, assustado e a procurar o interruptor. 

Ao encontra-lo e  acender a luz, o rapaz permaneceu ainda alguns segundos com os olhos fechados, com medo de descobrir a identidade do vulto branco bem à sua frente. Mas, de repente, a música parou. Ainda com os olhos cerrados, Lucas ouviu uma voz familiar chamar seu nome, uma voz rouca e de entonação cansada:

— Lucas, que bom ver você novamente!

Temeroso, o rapaz abriu os olhos devagar. Mas, para seu estarrecimento, quem encontrou ali não foi seu avô, mas a sua própria filha. Vestida com sua camisola branca, Maria do Carmo virou-se para o filho e sorriu. Lucas aproximou-se um pouco mais e falou:

— Mãe? Então é a senhora quem toca o piano todas as noites? Mas pensei que não soubesse tocar nada.

— Eu não sou sua mãe. 

Ao ouvir essa resposta, Lucas notou que sua mãe estava diferente. Aquele não era o seu sorriso de costume; seu rosto estava mais pálido e seus olhos estavam com um brilho diferente. Mas o mais perturbador era a voz rouca e inconfundível do avô que saía de sua boca:

— O que foi? Não gostou da herança que lhe deixei?

— Vô… é o senhor? – perguntou, com voz trêmula.

— Sou eu sim. Estava com saudades do meu neto preferido.

— Puta merda!

— Olha a boca! Isso é jeito de falar? – respondeu de forma aborrecida o avô através dos lábios de Maria do Carmo.

— Mas onde está minha mãe? – perguntou apreensivo. 

— Ela está aqui comigo, não se preocupe. Ela me deixou entrar para poder vir falar com você. Venha, Lucas, sente-se aqui e toque alguma coisa que lhe ensinei. Você se lembra das nossas aulas, não é? 

A pergunta despertou em Lucas lembranças que pareciam adormecidas, mas ainda estavam guardadas em algum lugar obscuro de sua mente. Assustado com o que poderia acontecer caso recusasse o pedido, lentamente sentou-se ao piano, estendendo as mãos trêmulas sobre as teclas mas sem pressioná-las. Ouviu em seguida:

— Vamos lá, toque alguma das que te ensinei.

— Desculpe, não me lembro. Já faz muito tempo… – respondeu timidamente, olhando para o rosto ao seu lado que, a essa altura, não sabia identificar se pertencia a sua mãe ou a seu avô.

— Vamos lá, qualquer coisa. Só quero ter o prazer de te ouvir de novo, como quando eu ainda estava por aqui neste mundo. – pediu, de forma ainda serena.

Lucas então começou timidamente a tocar o piano, mas seus dedos pareciam não acertar as notas certas. Seu nervosismo aumentava a cada novo compasso. Percebeu que a mãe se afastara um pouco, e depois voltou para mais perto dele, segurando alguma coisa em suas mãos. Então, sem mais nem menos, sentiu uma pequena pancada na cabeça, que o fez parar de tocar. Ao olhar, viu assustado que sua mãe segurava uma longa vara de madeira. 

— Por que fez isso? Doeu… – perguntou indignado, levando a mão à cabeça.

— Você está tocando errado, Lucas. Tente outra vez. – respondeu, lhe mostrando a vara de forma ameaçadora.

— Eu não me lembro… eu…

— Vamos toque! – A voz saiu mais alta e nervosa, bem ao modo de como seu avô lhe falava no passado.

Lucas novamente pôs as mãos sobre as teclas e recomeçou a tocar. Mas, como da vez anterior, o nervosismo atrapalhava seu desempenho. Estava tentando lembrar-se de alguma peça quando sentiu a vara lhe acertar com força as duas mãos. Um grito de dor lhe saiu da garganta, mas foi a voz alterada do velho canalizada através de sua mãe que falou mais alto:

— Está errado, seu idiota! Não se lembra de nada do que ensinei? Vamos, toque de novo!

Lucas ainda sentiu as mãos doendo, mas obedeceu e tentou mais uma vez tocar alguma coisa para o avô. Mas todas as tentativas foram em vão, e a cada novo erro cometido, sentia a vara lhe machucando as mãos ou a cabeça, enquanto ouvia mais xingamentos. Em certo momento, suas mãos estavam tão machucadas que começaram a sangrar com as repetidas batidas. Nesse momento, Lucas não mais aguentou e levantou-se subitamente:

— Chega! Pare com isso! Não vou mais tocar nada, porra! Você está morto! Vá embora e deixe minha mãe em paz, seu velho!

Aquele ultimato desafiador e inesperado da parte do neto foi a gota d´água. Num acesso de fúria, Maria do Carmo partiu para cima de Lucas. Os dois agarraram-se, esbarrando no piano e quase caindo ambos ao chão. Com a vara nas mãos, ela dava uma surra em Lucas, que tentava desesperadamente se livrar das agressões, mas não tinha forças para revidar pois sabia que estaria atingindo sua própria mãe. Aos gritos, ele suplicava:

— Mãe, por favor, pare com isso! Sou eu, Lucas, seu filho! Lute contra ele! Lute!

Em certo momento, Adolfo desceu as escadas do quarto atraído pelo barulho das vozes e dá de cara com sua esposa espancando brutalmente o filho. Ele a segura fortemente, fazendo-a parar. Lucas levanta-se e adverte seu pai:

— Cuidado, pai! Ela não é a minha mãe! É o velho que se apossou dela!

— O que? Que maluquice é essa, vocês dois? O que está acontecendo aqui?

Nessa hora, Maria do Carmo começou a falar de forma estranha e a girar a cabeça, entrando em transe. Mas, agora, sua voz parecia estar, aos poucos, voltando ao normal. Ainda agitada, ela retorcia seu corpo sem parar, enquanto falava sozinha:

— Saia daqui, pai, o senhor está morto! Deixe meu filho em paz, por favor. Você nunca mais vai bater nele de novo! Vá embora e nos deixe em paz!

Maria do Carmo desmaiou. Lucas e Adolfo tentaram reanimá-la novamente e ela tornou a si algum tempo depois, vendo os rostos de seu marido e filho assustados:

— O que aconteceu aqui? – perguntou, confusa.

— Eu é que pergunto, querida: escutei uns barulhos, desci aqui e, de repente, encontrei você espancando o Lucas com uma vara! – comentou Adolfo.  

— O quê? Eu não… Oh meu Deus, vejam! – Disse, apontando para a frente.

Todos olharam e viram o piano ardendo em chamas. Durante o confronto entre ela e Lucas, a vela que estava sobre o instrumento caiu e rapidamente o fogo começou a se espalhar, consumindo a madeira já envelhecida. Em questão de minutos o velho piano consumiu-se nas labaredas, emitido ruídos e estalos que mais se assemelhavam a gritos de dor. Nesse instante, perceberam também o que parecia ser a silhueta de um velho homem contorcendo-se no meio das chamas. 

Adolfo deixou Maria do Carmo com Lucas e voltou para dentro de casa para buscar alguns baldes de água a fim de apagar o incêndio antes que se alastrasse mais. Mas, quando regressou ao quarto, já era tarde, pois o fogo já apagara-se e o velho piano ficou reduzido à pedaços de madeira carbonizada e ao teclado. Ainda abalados com o acontecimento, os três subiram as escadas e saíram do depósito. Lucas levava consigo a certeza de que agora tudo estava acabado e que Maria do Carmo voltou a ser a sua mãe como sempre fora.  

* * *

Dias se passaram depois do incêndio. A vida da família Ribeiro voltou ao normal gradativamente. Decidiram deixar os restos do piano destruído dentro do quarto mesmo, como uma velha lembrança. Pelas muitas noites que se seguiram, a casa voltou a ficar silenciosa como antes, não se ouvindo mais nenhuma música. 

Até que, uma certa noite, Lucas acordou de madrugada com vontade de ir ao banheiro. Já estava retornando quando pensou ouvir algo vindo do quartinho escuro. Aproximando-se da porta, sentiu um calafrio percorrer seu corpo da cabeça aos pés ao ouvir uma melodia desafinada, parecendo vir de um lugar muito distante além do tempo e do espaço. 

Era uma melodia ao piano.

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