O coelho que mais viu estrelas

Maria Cândida

[O seguinte relato foi resgatado de uma missão lunar feita em 2018. Até hoje, não tivemos notícias da tripulação. Esperamos que as famílias possam alcançar paz do no coração ao saber que, devido aos acontecimentos aqui relatados, o Instituto não pretende trabalhar com mais missões lunares.]

Joel está de cabeça baixa, como se a batalha já tivesse acabado e ele tivesse aceitado sua derrota. A nossa derrota. Porque não tinha como lutarmos contra aquilo, embora soubéssemos há muito ao quê estávamos fadados.

Armstrong, Collins e Aldrin são nomes bem conhecidos por qualquer um que completou o ensino médio. Os primeiros homens a pisarem na lua. O que ninguém sabe, no entanto, é que essa visita não foi pacífica. Alguém já se perguntou porquê eles ficaram apenas 21 horas em solo lunar? Ainda que os equipamentos da época fossem rudimentares comparados à tecnologia atual, não se pode dizer que foi apenas por conta disso. Suas vidas estavam em risco, mas não por causa da tecnologia.

Quando Joel e eu chegamos à lua, a ideia era passar ao menos um mês aqui. Mal sabia eu que, 6 dias após a alunissagem, estaríamos nos encarando desta forma. Como se tudo estivesse acabado.

Apenas aqueles qualificados podem ler os materiais sobre a experiência de Armstrong, Collins e Aldrin. Quando li, eu mesma não acreditei. Achei que seria muita coincidência. Como poderia uma lenda ser real? Como poderiam os povos antigos saberem disso? E como poderíamos ter certeza que esta lenda, tão bonita quando compartilhada na Terra, não poderia ser o final de nossas vidas?

Sou grata, no entanto, por ter ganhado alguns dias a mais de vida. Em comparação aos homens que vieram em 1969, eu estou numa situação um pouco mais favorável — se ignorarmos o fato de que eles tinham equipamento para voltar para casa rapidamente, mas eu e Joel não. Enquanto eles precisaram deixar a lua em menos de 24 horas, para nós demorou 2 dias até nos depararmos com as estranhas sombras que produziam barulho. Sim, sombras que faziam barulho.

Era um ruído meio agudo, meio gutural. Às vezes, parecia alcançar mais de uma nota musical em uma mesma vocalização. Isso se eu posso chamar de vocalização; afinal, aquilo era mesmo uma garganta? Aquilo realmente tinha um focinho? Não sabemos dizer. Só conseguimos ver de relance, e depois de horas ainda ficamos nos questionando porque aquela criatura tão absurda era, ao mesmo tempo, tão familiar.

As orelhas pontudas e os olhos vermelhos certamente lembravam a um coelho, daqueles branquinhos que sempre são usados nas decorações em época de Páscoa. No entanto, sua estatura duas vezes maior que um humano e a quantidade de olhos estava um pouco acima do esperado; lembro-me de ter conseguido contar 5 nos breves segundos em que encarei a criatura, e não estava nem perto de conseguir contar o número total de olhos. Sua face era levemente desfigurada, como um coelho que levou tanta porrada a ponto de ficar tudo meio torto, fora de lugar. Até os dentes estavam quebrados e assimétricos.

Eu acabo de ouvir um barulho. Exatamente igual ao que ele faz sempre que aparece para tentar atacar nossa base. Nos últimos 4 dias, conseguimos aguentar as pontas. Mas agora só nos resta uma sala intacta para nos escondermos, e eu sinceramente acho que não será o suficiente. Hoje, ele certamente nos achará.

Joel está me olhando assustado, e consigo perceber em seu olhar uma ponta de culpa. Como se ele sentisse que era sua responsabilidade me proteger. Eu sempre disse que não, que qualquer coisa que acontecesse comigo não teria nada a ver com ele, pois afinal de contas embarcamos nessa juntos. Meses e meses de terapia antes de embarcar não pareciam surtir qualquer tipo de efeito no momento.

Consigo ver uma fresta pela qual entra a luz do sol. Os dias na lua são meio estranhos, porque mesmo que a superfície lunar esteja iluminada, não existe aquela claridade do céu que estamos acostumados na Terra. Eu consigo perceber a criatura se movendo lá fora, porque de tempos em tempos uma sombra tapa a fresta. É como se ele estivesse andando em círculos, esperando fazermos algum barulho para denunciarmos nossa localização.

Percebo que Joel está mais inquieto que o normal. Vejo lágrimas se formando em seus olhos, prestes a escorregar por sua face com a barba por fazer. Ele me olha fixamente, como se pedisse socorro, como se estivesse esperando que alguém o acordasse deste pesadelo.

Pouca gente sabe, mas na presença de uma ameaça, existe ainda uma alternativa à resposta de fuga ou luta; é o congelamento. Claramente, estamos congelados diante do medo. E sabemos que nossas chances de sobrevivência em caso de luta são mínimas, assim como em caso de fuga. Mas outra coisa que não se sabe é que não é possível ficar no estado de congelamento para sempre. Uma hora, o organismo cobra e somos obrigados a fazer alguma coisa.

Joel está se levantando. Ele está lentamente indo até a fresta, para tentar observar o que acontece do lado de fora. Contudo, no momento em que chega na fresta, é um daqueles momentos em que algo a tapa. E, pelo jeito, esse algo é um olho que percebeu a presença de Joel, pois segundos depois vejo a parede em destroços.

Joel é arremessado para o outro lado da sala e acredito que, com o baque, ele tenha perdido a consciência. Não posso ter certeza, porque agora a criatura me viu e está vindo para cá. Consigo ver seus passos se aproximando, consigo ver suas dezenas de pares de olhos piscando, consigo ver seu focinho desfigurado se movimentando ao escanear o ambiente pelo olfato. No brilho, percebo que seu pelo não é exatamente branco, mas possui um reflexo esverdeado.

Então é verdade. O coelho de jade é real. Mas ele não é um coelho. Ele é—

* “O coelho que mais viu estrelas” é uma citação às últimas palavras do rover chinês Yu Tu, que esteve escaneando a lua de 2013 a 2016. https://www.bbc.com/news/world-asia-china-36972205

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