Pecadores

Amanda Kraft

A Vila dos Anjos é um vilarejo pacato. Nasci aqui, no seio de uma família religiosa. Quando criança fui coroinha da Matriz de São Bento. Ingressei no seminário, retornando agora da capital, como diácono, para ajudar o padre Jonas que está em vias de se aposentar. Talvez depois de ordenado possa continuar seu ministério. Além da Matriz temos um cinema, uma drogaria, um mercado e uma venda, que também funciona como um bar para o descanso dos trabalhadores, ansiosos em refrescar a garganta depois de um dia intenso de trabalho. Num lugar com poucos mil habitantes é fácil um saber da vida do outro. Não tanto por maldade ou especulação, mas por cuidado. Precisamos cuidar uns dos outros. Sendo assim, tal foi o espanto causado na população quando a filha do padeiro, Candinha, foi encontrada morta numa vala, quase no início da rodovia. A pobre foi pega enquanto fazia o trajeto para casa depois de ter trabalhado como garçonete na lanchonete do português. Fizeram uma busca e lá estava a pobre. Seus olhos opacos miravam as estrelas. Parte do rosto foi esfacelado. O criminoso nem tentou esconder a pedra usada no crime. Entre seus dedos, um pedacinho de papel: Vadia! Quem faria mal a uma menina doce e pura como aquela? Qual foi seu pecado? Com espanto foi constatado pela perícia que uma mecha de seu cabelo foi levada. 

Na rodinha formada no bar mercearia do Giuseppe, o povo comentava que a menina não era tão santa assim. Parecia estar em situação embaraçosa. Havia rumores de que logo a barriga apareceria. O assassino sabia. Por isso do bilhete. Desconfiavam do pai da criança, mas o delegado constatou que o enlutado encontrava-se na fábrica de biscoito do Vovô Anísio na hora do crime. O Padre Jonas mostrou-se indignado na missa de sétimo dia. Até então, ninguém fora preso. Seria o desumano algum forasteiro? 

No oitavo dia do primeiro assassinato, a cabelereira da cidade foi encontrada, pela sua assistente, degolada no lavatório. A cena apresentada era tão impressionante que a pobre moça desmaiou assim que chegou à rua. Curiosos se aproximaram para socorrê-la e dar uma espiada na cena alarmante. Havia algo na boca da pobre moça morta. O perito puxou com a pinça o bilhete: Fofoqueira. Houve confusão na porta do salão. O sangue esguichara até o teto e o restante se perdera dentro do lavatório junto com a cabeça. Curiosamente, uma mecha de seu cabelo também fora levada pelo assassino.

Por que aquilo estava acontecendo num lugar tão pacato? A desconfiança tomou conta da população. Alguns se trancaram em suas casas com medo do assassino do bilhete. O único que parecia não temer nada, continuando a dormitar na porta da igreja, foi o Cachaça. Estava sempre observando, calado, todos os acontecimentos sem que nada afetasse sua rotina. Do bar para as escadarias da casa do Senhor, ou das portas onde pedia comida para as escadarias. Ninguém jamais se preocupou com ele. Era só um infeliz que preferia viver nas ruas a ter um lar. 

Passamos a celebrar as missas dominicais ressaltando o cuidado que os paroquianos deveriam tomar. Principalmente as moçoilas. Que não andassem sozinhas no cair da noite. A população clamava pela captura do meliante, entretanto o delegado Tadeu não tinha nada a declarar. 

A população se amedrontou e passou a andar armada, o que foi rechaçado pelo delegado. Os pais passaram a acompanhar as crianças de perto. Um mês se passou e quando todos estavam relaxados, diante da falta de outro crime, ele atacou novamente. A jovem viúva Inês, dona de belos dotes, que Deus me perdoe, foi encontrada morta em seu quarto. Seus olhos foram arrancados e dentro das órbitas vazias um terrível bilhete: Adúltera! Dessa vez seus vastos cabelos vermelhos foram picotados e espalhados pelo chão. O medo assolou nossos corações mais uma vez.

A pressão popular tornou-se grande. O detetive Mateus apenas disse que o elemento possivelmente era alguém conhecido de todas as vítimas, já que nenhuma esboçara reação diante do ataque. O exame toxicológico confirmou o que o delegado já suspeitava. As vitimas foram narcotizadas antes de serem mortas. Quem seria o facínora que adentrava à casa das vítimas de maneira tão social e tão frívola? 

Fomos interrogados. Todos sem exceção. Incluindo o prefeito Ernesto e nossa benemérita cidadã, Dona Santina, herdeira de metade da cidade. Seu coração bondoso estava sempre disposto a nos ajudar. Principalmente a nossa paróquia. Um clima de desconfiança se instaurou entre nós. As rodinhas de comadres, por cima dos muros de suas casas, deixaram de acontecer. Poucos se atreviam a tomar a última dose no bar do seu Giuseppe. Dois dias depois da morte da viúva, o Cachaça foi preso. Estava dormindo na mata que circundava a vila. Havia sangue em suas vestes. Isso foi suficiente para levá-lo à cadeia. Não fosse o padre Jonas, o pobre teria sido linchado pela turba que se formou em frente ao distrito policial. Entretanto, foi solto ao raiar do dia. O que se pensou ser sangue, não passava de molho de tomate. O pobre havia comido um prato de macarrão oferecido pela Dona Stela, mulher do padeiro. A alma caridosa o reconheceu quando interrogada. Nem mesmo, ao ser acusado, pôs-se a falar. Manteve-se quieto. Apenas seu olhar parecia saber o que se passava naquele lugar. 

O mistério ainda continuava na vila. O ódio tomou conta de nós. Quem esse marginal pensava que era? Como ousava roubar o sossego que sempre tivemos e nos incutir o medo? Passei a rezar e a temer pela minha própria família. Qualquer um poderia ser a próxima vítima. 

Um fato estranho se deu em meio a tudo isso. A população passou a frequentar o confessionário no período matutino. O velho padre já estava ficando cansado de ouvir tantos segredos confessos. Eu nada podia fazer para ajudá-lo. A não ser oficiar um culto, orando junto com os fiéis, pedindo a misericórdia divina.

Alguns dias depois, o prefeito Ernesto foi encontrado morto em seu gabinete. A esposa dera por sua falta no café da manhã. Fora enforcado e pendurado no teto na calada da noite. Sua boca estava cheia de dinheiro. No meio dele, socado até a traqueia, havia duas palavras rabiscadas em letra vermelha: Corrupto. Ditador! Isso não era nenhuma novidade. Todos sabiam das tramoias políticas do velho. Uma mecha, de seu ralo cabelo, foi arrancada deixando o couro em carne viva.

A população cercou a delegacia. O delegado foi obrigado a chamar reforços. Uma viatura foi enviada da cidade vizinha durante alguns dias. O ensaboado ainda não havia sido pego. Mas alguém ficara de tocaia, a mando do delegado, embora, naquele momento, ninguém soubesse desse estratagema.

Numa noite escura, de nuvens gordas e negras no céu, de um vento gelado que parecia açoitar o vilarejo, alguém deixou a segurança de sua casa. Foi de mansinho, se esgueirando pelas ruas tortas, até a casa de Dona Santina, nossa amada benemérita. Entrou sorrateiramente pelos fundos da residência. Ao chegar à sala, as luzes foram acesas e o pobre foi assolado por várias vozes, vindas da porta da frente da mansão, que se abriu com violência exacerbada, dando-lhe ordem de prisão. O rapaz colocou as mãos na cabeça e se ajoelhou, mirando os canos das armas. Não esboçou reação. Foi levado debaixo de chuva e gritos de protestos dos que acordaram com o espetáculo.

Entretanto o tinhoso não confessou o delito. Jurou que recebera um telefonema pedindo sua presença na casa. Deveria entrar pelos fundos e ter com dona Santina na sala, para execução de um serviço de jardinagem. A velha negou veementemente. Por que o chamaria numa noite como aquela se poderia mandar um dos empregados ter com ele em plena luz do dia?

A população avançou às portas da delegacia a fim de linchá-lo. O maldito destruíra famílias. Sua negação caiu por terra quando as mechas dos cabelos das vítimas foram encontradas no pavilhão de ferramentas, no quintal de sua casa, escondidas numa caixa atrás do cortador de grama. Estávamos indignados. Quanto serviço o solitário rapaz já havia prestado a todos da comunidade? Sempre fora meio esquisito, entretanto, extremamente simpático, gentil e encantador. Bem apessoado e de muita cultura, ninguém o julgara capaz de matar. Muito ao contrário. Era sempre bem vindo aos lares, inclusive, às vezes dando aulas particulares de violão. Como seria possível ter a face de um anjo transformada em demônio frente às vítimas?

Um fato estranho ocorreu nisso tudo. No meio da turba, com a polícia tentando protegê-lo, o Cachaça falou pela primeira vez em alto e bom som, o que nos deixou boquiabertos: “Vai acontecer de novo!” Deixou o lugar, voltando cambaleando para a porta da igreja. Ninguém lhe deu atenção. O maníaco fora preso e logo, para sua segurança, transferido para a cidade vizinha antes que algo lhe acontecesse. Creio na justiça Divina e na dos homens. Num julgamento correto.

A vida voltou ao normal. Crianças brincando nas ruas, homens seguindo para o bar no final da tarde, mulheres continuando com seus afazeres. As portas das casas voltaram a ficar abertas e as missas a ficar lotadas. Meu mentor e amigo, padre Jonas, se aposentou um ano após o ocorrido e eu me tornei sacerdote da Vila dos Anjos.

Passei a ouvir a confissão dos paroquianos, agora pelo lado de dentro do confessionário, e aquele ímpeto de justiça e de inconformidade com a maneira como as pessoas regem suas vidas, em pecado, discórdia, blasfemando, incutindo o ódio, voltou a me inflamar. Meu coração se fecha ao saber das traições, do sadismo, da corrupção, dos desejos da carne escondidos em mentes perversas. Meu sangue ferve e já me vejo acabando novamente com tudo isso. Pecadores. Sei quem será a primeira vítima. Aquele que me enxergou quando ninguém mais lhe deu atenção. Aquele que segue observando calado, nas escadarias da minha igreja. Dessa vez farei com que pareça um acidente.  

Uma resposta para “Pecadores”.

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