
Thiago Alves Faria
Quinta do Sol, interior do Paraná, 1986.
Sebastião havia ido para a cama naquela noite fria de 3 de julho. Sem energia no bairro desde a noite passada, não havia mais o que fazer. Colou as crianças para dormir e deitou-se ao lado de sua esposa Ana, ainda preocupado com a notícia que ouviu dos vizinhos logo depois do apagão. Alguns animais mortos nas propriedades ao redor e algumas plantações devastadas.
De madrugada, por entre as frestas das velhas paredes de madeira do seu quarto, Sebastião percebeu uma luz, como algo que passava suavemente em volta de sua casa. De repente, alguns sons no teto como andar de gato, porém mais pesado. Em seguida, um barulho na “casinha”. Um banheiro que ficava fora, há cerca de 10 metros da casa humilde de 3 peças. O homem tentou dormir. Fechou seus olhos respirando fundo e se ajeitando novamente no travesseiro.
De repente, um som estranho vindo da direção da casinha lá fora. Era como aquele som que as galinhas fazem, balbuciando enquanto ciscam. Mas esse som era levemente diferente e estranho. Era mais grave e levemente gutural. Repetia-se o mesmo som mecanicamente como uma gravação. A mesma repetição, a mesma frequência, a mesma velocidade. Repetindo por quase meia hora, até que o homem resolveu averiguar. Levantou-se devagar, abriu a porta dos fundos, que dava para o terreno de terra batida, vestiu as botas e saiu naquela noite gelada. A porta da casinha estava entreaberta e o som ficava mais alto conforme se aproximava. Faltando um metro e meio da porta, o som parou.
“Chispa”! Disse Sebastião baixinho. “Chispa”, ele ouviu de dentro da casinha como um sussurro estranho. Temeroso, Sebastião aproximou-se do local escuro. Procurou pelo interruptor, mas encostou em algo gelado e texturizado como focinho de cachorro. Recolheu a mão de súbito enquanto percebia um som estranho de algo movimentando-se ao seu redor, pelas paredes do interior da casinha. Um cheiro horrível e indescritível tomou conta do lugar e a porta fechou-se atrás de si. Naquele cubículo de um metro quadrado, encostado na latrina e ofegante, Sebastião sentiu que por seus braços e pernas, algo subia com pequenas garras pontudas. Muitas garras e uma sensação de algo frio e macio encostando em seu pescoço. Não houve tempo de gritar.
7h da manhã de 4 de julho.
O dia havia amanhecido envolto em névoa. Uma densa neblina pairava antes das 7 da manhã.
Ana levantou cedinho e pôs a água do café para esquentar enquanto despertava seus filhos, um menino 8 anos e uma menina 6. Deu pela falta de seu marido, mas achou que ele havia acordado antes para ir ao banheiro. Ao olhar pela janela, porém, percebeu que a casinha estava entreaberta. Para onde esse homem iria a essa hora da manhã? Um som estranho, porém, saiu do local. Parecia um som de galinha, seguido por algum sussurro humano. Um som mecânico e repetitivo. Ana então resolveu vestir seus sapatos para ir até o local. O som parecia mais nítido à medida que ela se aproximava. “chispa, chispa, chispa (som galináceo), chispa….” O cheiro era muito ruim como caniça e enxofre. “Meu Bem?” perguntou ela antes de entrar. Ana tentou abrir a porta um pouco mais, mas foi interrompida pela sua filha que chamava pela janela. O som estranho cessou no mesmo instante. Ana acenou para a filha pedindo para esperar. Voltou-se para a cabine, mas ao abrir a porta, a cena era indescritível. Algo pegajoso e disforme forrava as paredes. Parecia que algum animal havia sido dilacerado violentamente ali. Dentro da latrina, algo peludo boiava. Ana então pegou um pedaço de madeira caída próximo à porta da casinha pra tentar mexer na coisa que boiava. Mais indescritível ainda foi a cena a seguir. Na água suja e escura da latrina, a cabeça de seu marido. Pálida, machucada, porém com expressões de espanto perfeitamente visíveis.
Correndo para longe, Ana ajoelhou-se no chão com o coração disparado e em choque. Não conseguiu nem gritar. Ofegante, sentiu enjoo e vomitou. Sua filha a chamou novamente e em um impulso instintivo, correu para dentro de casa, abraçou seus filhos e chorou copiosamente.
Meio dia, 4 de julho.
A polícia cercava o local. Vizinhos aglomeravam-se em volta do terreno. A tia das crianças tentava mantê-las ocupadas enquanto Ana repetia pela terceira vez seu depoimento ao investigador. A equipe de perícia saiu do local e em minutos uma equipe de repórteres chegou no terreno sendo barrados por policiais. Em meio à confusão, um som em específico tirou o chão de Ana. A energia voltou e sua filha implorou para assistir desenho, ao que sua tia ligou a TV. Um daqueles programas jornalísticos sensacionalistas citou o nome de sua família. O caso já estava na mídia e todos no local souberam que o cérebro de Sebastião fora removido do crânio e sua morte foi provavelmente às 5h da manhã. Nada mais restou de seu corpo além de fragmentos misturados com coisas ainda inconclusivas para a perícia. Ana não conseguiu ouvir mais nada. Mudou-se naquele dia para a casa de sua irmã e deixou o terreno aos cuidados da polícia.
Noite de 8 de agosto de 1986.
Jonas era um jovem jornalista iniciando sua carreira na TV. O insólito caso da morte na latrina atraiu muitas pessoas. Jonas e uma pequena equipe de cinegrafista e técnicos de som resolveram passar a noite na casa abandonada. Ana havia deixado quase tudo do mesmo jeito em seu antigo lar, agora empoeirado.
A temperatura estava mais amena naquela madrugada enquanto a equipe acampava na velha residência. Havia rumores de que sons estranhos ecoavam pelo terreno, mas até 1h da manhã não se ouvia nada. Enquanto todos adormeciam cansados, às 3h, um dos cinegrafistas acordou Jonas assustado dizendo ter ouvido algo. Ligaram a câmera e saíram pela porta dos fundos lentamente. O vendo fazia a porta da casinha bater, o que deixava tudo muito sinistro. Não sabiam se tremiam de medo ou de freio. Ligaram a lanterna, mas nada parecia estar dentro da pequena casinha. “chispa” ouviram todos de algum outro lugar. Olharam em volta, mas tudo estava muito escuro. Um susto! Sons de panela dentro da casa. Temerosos, aproximaram-se todos da janela para ver se captavam algo. O som de panela caindo pareceu repetir-se, mas dessa vez, de forma mecânica como se alguém o tivesse gravado.
Rodeando a casa, Jonas liga o microfone e fala com a câmera sussurrando e descrevendo o que estava acontecendo. Aproximou-se da porta de entrada, abriu cuidadosamente e seguiu certo vulto que pensou ter visto em um dos quartos. A casa estava totalmente escura e a única luz era a da câmera. Os jovens se aproximaram da porta do quarto do casal e algo se movia em meio à escuridão, subindo pelas paredes e pelo teto, mas o rapaz da câmera não conseguia acompanhar.
Uma luz intensa, porém, brilhou fora da casa e atravessou as janelas. Um vento forte fez a porta da casa tremer. A equipe voltou-se para a porta e algum veículo muito estranho estava flutuando no meio do terreno com muitas luzes e giravam e piscavam. Jonas sentiu uma fisgada em seu ombro como uma agulha ou uma garra, ao virar para trás, deu seu último grito. Uma enorme criatura com silhueta humana, porém feita de um emaranhado horripilante de carniça, penas, pelos e partes de muitas coisas indescritíveis, caminhou em direção aos rapazes e abriu um enorme buraco onde deveria ser uma boca. Um som grave como uma mistura de sons, inclusive muitos gritos quase ensurdeceu a equipe horrorizada que gritava. Um último grito, uma dor intensa em suas cabeças. Mais um desaparecimento.
10 de agosto de 1986. Fim de tarde.
Um trator demoliu a antiga casa, a casinha, e aterrou a propriedade novamente. A polícia federal cercou o lugar e acompanhou tudo. Nada foi noticiado nos jornais. Jonas e seus colegas foram dados como mortos por marginais que usavam o local abandonado para se drogar.
20 de janeiro de 1996. 20h da noite.
Maria Eduarda, filha de Ana, a pobre mulher internada no manicômio, visita o local de sua antiga casa. Uma obra em andamento: um prédio era erguido e uma placa da prefeitura isolava os transeuntes da construção. Ao olhar para o céu, naquela noite quente de muitas estrelas, uma luz estranha parece rodear o local até desaparecer rapidamente. Maria dá um suspiro e volta para o carro de sua tia, que fazia o sinal da cruz. Ambas seguiram de volta e nunca mais tocaram no assunto.
FIM
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