
Rafael Medeiros
Aquilo que estou prestes a descrever pode parecer loucura para você. Às vezes até mesmo eu acho que posso ter ficado louco. Mas ainda foi o que eu vi. Foi o que presenciei. Se acreditam ou não na veracidade do que estão prestes a ler, isso deixo por sua conta e risco.
Tudo começou naquela noite, quando meus amigos Casio, Pedro, Oscar e eu, é claro, saímos para tomar um lanche no shopping. Naquela época não existia Uber, celular para pedir carona era artigo de luxo, e Casio, que geralmente liderava o grupo, não tinha a menor vontade de pegar o ônibus, então decidimos ir todos a pé para a casa dele. Não preciso nem dizer que foi a pior decisão de nossas vidas.
Eu sempre fui o mais medroso do grupo, então logo protestei sobre sair por aí no meio da noite, mas Casio, sempre despreocupado, tentou argumentar que sua casa ficava a só vinte minutos do shopping. Pedro, o zoeiro da turma, não tardou a começar a fazer graça comigo, sempre tentando me dar sustos, alegando estar vendo um assaltante aqui e acolá. Enquanto Oscar, o mais introvertido de nós, aceitou a proposta de Casio sem questionar. Nunca fora um sujeito de muitas palavras.
Estávamos andando em uma rua vazia quando a coisa degringolou de vez. Eu já estava cansado das brincadeiras sem graça de Pedro sobre ver um assaltante em cada esquina, e estava perto de perder o controle e bater nele, quando (por pura ironia cruel) assim como na fábula de Pedro e o Lobo, fomos cercados por um grupo de seis caras montados em bicicletas, e eles não pareciam nem um pouco interessados em pedir informações para a gente.
Ficamos congelados. Suor frio escorria por nossos rostos. Até o humor quase inabalável de Pedro sumiu de repente. Estávamos preparados para o pior, pois estava óbvio que os sujeitos não estavam apenas atrás de nossos pertences, mas também de algum “divertimento noturno”, por assim dizer. Eu teria calafrios na espinha até hoje só de pensar no que eles teriam feito com a gente, se não fosse pelo que aconteceu logo em seguida.
Quando a gangue estava se aproximando de nós, todas as luzes da rua, tanto nos postes quanto nas casas, do nada apagaram. Podia muito bem ter sido um blecaute, se não fosse pelo fato de até as estrelas e a lua terem apagado também. Tudo ficara um breu total.
Não dava para ver ninguém. Nem os bandidos. Nem meus amigos. De início eu não sabia o que pensar. Só esperava o primeiro ataque dos bandidos em meio a escuridão. Mas o que aconteceu logo em seguida foi bem pior.
Primeiro, eu ouvi o barulho. Tac, tac, tac, tac. Eram como lâminas batendo contra o asfalto. Depois, senti algo passando perto de mim. Foi muito rápido, como uma flecha. Mas o cheiro, do que quer que fosse, ficou para trás. E era horrível. Eu poderia dizer que o cheiro era de carniça, ou qualquer outra coisa parecida, mas estaria mentindo. A verdade é que eu não fazia ideia do que era esse cheiro. Nunca sentira nada igual na vida. Só sabia que fedia muito.
De início, fiquei congelado de medo. Só consegui me movimentar quando o primeiro berro chegou aos meus ouvidos. Era um grito estridente e gorgolejante, como se sangue estivesse jorrando da boca do pobre diabo como uma cachoeira. Acho que é assim que deve ser o som de alguém sendo devorado por um leão.
Quando menos me dei conta, minhas pernas já estavam em movimento, e parece que não fui o único, pois senti ao meu redor diversas pessoas em movimento, tentando desesperadamente fugir daquele terror.
Porém, como eu já disse, estava tudo escuro, e ninguém via por onde ia. Estávamos todos as cegas ali. Senti uma das bicicletas dos bandidos quase me atropelarem. Naquele furor todo, quase não notei um único ponto claro em toda aquela escuridão: um único poste ainda funcionando bem a nossa frente.
Eu e qualquer outro que notou aquele único raio de luz partimos na direção dele sem pensar duas vezes. O poste funcionando estava bem perto, mas com todo aquele desespero pareceu levar uma eternidade para chegar lá. No caminho, senti outra vez algo fedorento passando por perto, que foi seguido por outro grito horrendo de morte. Isso nos fez correr mais rápido ainda. Tinha a sensação de que iria ser esmagado por todo mundo a minha volta, mas, felizmente, conseguimos chegar em baixo daquele poste, ofegando e com suor frio nos ensopando.
Quando olhei em volta, vi que meus amigos ainda estavam vivos e bem. Apavorados, é claro, mas vivos. Havia também quatro membros da gangue, dois deles sem mais suas bicicletas (com certeza as deixaram para trás durante o tumulto). Já os outros dois que faltam obviamente eram os dois gritos que ouvimos durante a correria.
Por um tempo ficamos todos em silêncio. Acho que quando nos deparamos com algo que nossas simples mentes não podem compreender de tão estranha e macabra que é, não faz mais diferença se estamos em companhia de pessoas que queriam nos matar a pouco. Naquele momento só queríamos ficar ali parados no completo silencio, apenas tentando compreender (sem sucesso) o que tentara matar os dois grupos a pouco.
Foi então que o barulho recomeçou vindo da escuridão. Tac, tac, tac, tac… Isso nos desesperou por completo. Teríamos começado a correr como loucos de novo se não tivéssemos congelados de medo, e isso salvou nossas vidas naquela hora.
Um dos membros da gangue que ainda tinha bicicleta recuperou os sentidos e foi o primeiro a sair em disparada, pedalando como se não houvesse amanhã. Não demorou para começarmos a ouvir os gritos dele enquanto era dilacerado, e menos ainda para termos um vislumbre do que enfrentávamos: Uma enorme pata peluda cheia de garras apareceu diante da luz do poste, porém, ao ser exposto a luminosidade, fumaça saiu daquela pelagem grotesca manchada de sangue, e a criatura recuou de volta as trevas guinchando de dor. Fosse o que fosse, estávamos seguros daquilo enquanto estivéssemos embaixo da luz.
Não sei dizer ao certo por quanto tempo ficamos todos parados embaixo daquele poste, como um bando de náufragos encalhados em uma ilha deserta. Podem ter passado várias horas. Dias talvez. Ou quem sabe apenas alguns minutos. Ninguém se encontrava capaz de determinar. A única coisa que tomamos ciência é que, logo logo, aquela luz ia queimar como todas as outras.
Começamos a perceber que aquela lâmpada do poste estava começando a oscilar. Primeiro de forma mais sutil. Depois de forma bem mais clara. A qualquer momento estaríamos de novo a mercê do que quer que estivesse lá fora.
Estávamos todos perto de perder a cabeça, quando um fio de esperança apareceu ao longe. Um faixo de luz a alguns metros de onde estávamos. Outro poste aceso. Ele não estava lá há alguns minutos. Mas agora estava. Tão claro como o dia (ou no mais próximo que se pode chegar de dia nessa situação).
Não sabíamos do porquê daquela luz ter se acendido agora. Às vezes o que quer que tenha começado isso queria apenas brincar conosco. Ou havia algo naquilo tudo querendo nos ajudar. De qualquer maneira ninguém nunca descobriu a resposta, e, para ser sincero, ela nem importava. Só uma coisa importava naquela hora: Sobreviver.
Esperamos mais um pouco, sempre atentos a lâmpada acima de nós. Assim que ela se queimou, partimos correndo na direção do próximo poste.
Enquanto estávamos em disparada, aquele som angustiante (tac, tac, tac, tac) ficava cada vez mais alto. A coisa se aproximava, mas também estávamos bem próximos do poste. Felizmente ninguém havia gritado ainda. Todos podiam chegar bem, no fim das contas.
Naturalmente, o único membro da gangue que estava de bicicleta chegou primeiro. Depois Oscar, Casio, o outro membro da gangue que estava a pé, eu e Pedro. Faltava apenas o último membro da gangue para chegar. Conseguíamos ver a silhueta dele através da luminosidade do poste. Ele corria na nossa direção. Parecia que ele ia conseguir, até que outra silhueta apareceu atrás da dele (ou outras silhuetas, pois não sei dizer ao certo se era um ou muitos, e nesse caso, nem quantos seriam), e em questão de segundos já avançava para cima do bandido.
Tudo que ouvimos logo em seguida já era familiar. O grito gorgolejante do miserável sendo feito em pedaços. E, para piorar, logo em seguida um rio de sangue começou a escorrer em nossa direção, com aquele vermelho grosso sendo iluminado por nossa atual única fonte de luz.
Como da outra vez, ficamos ali parados, apenas esperando a luz começar a vacilar, outra acender e termos que correr como loucos de novo, com o pavor de pensar quem será o próximo a morrer nos acompanhando o tempo inteiro.
E, como imaginado, isso acabou acontecendo. Partimos em direção a luz recém acesa. Seis de nós partimos. Apenas cinco chegaram. Durante o caminho, escutamos o barulho do cara na bicicleta se desequilibrando e caindo no chão, sendo seguido por seus gritos.
E mais uma vez ficamos na espera. Essa coisa toda estava ficando angustiante. Não sabia o que era pior: correr desesperado ou ficar esperando isso acontecer.
Eu comecei a surtar com a expectativa. Comecei a gritar com Casio, dizendo que aquilo tudo era culpa dele por não termos pegado o ônibus para voltar para a casa dele, e agora estávamos naquela loucura toda. Ele começou a retrucar, e logo estávamos discutindo aos berros.
Parecia que estávamos prestes a avançar para cima um do outro, sendo que Oscar e Pedro estavam preparados para nos separar caso isso acontecesse (enquanto o último membro remanescente da gangue apenas observava). No fim, não nos atracamos. Ou ao menos não fiz isso com Casio.
Parece que me ver surtar reascendeu o senso de humor de Pedro, e começou a fazer suas gracinhas para cima de mim. Hoje penso que ele só estava querendo aliviar aquela tensão toda, pois também estava surtando e precisava de uma válvula de escape, não só para ele mas para todo mundo também. Mas na hora não encarei dessa forma.
Não aguentando mais, parti para cima de Pedro e comecei a socá-lo com toda força até que Oscar nos separou. Pedro também tentou avançar para cima de mim, mas Casio o segurou.
Ficamos mais uma vez parados em silêncio, sem dizer mais nada um ao outro, até que a luz começou a oscilar de novo e uma nova se acendeu a poucos metros de nós.
Nos preparamos, e assim que a lâmpada começou a dar seus últimos suspiros, começamos a correr. Porém, assim que entrei em disparada, uma perna se esticou a minha frente e me fez tropeçar no chão. Nos últimos momentos de luz, vi que foi o último membro da gangue. Ele queria jogar um pedaço de carne para a Coisa se distrair e ter mais tempo de escapar.
Enquanto tentava me levantar desesperadamente, comecei a ouvir os tac, tac, tac. Estavam bem próximos. Aquele com certeza seria o meu fim, não importava se eu conseguisse me levantar e correr. Já havia fechado os olhos esperando o inevitável, quando o odor fétido chegou as minhas narinas, e os gritos começaram. Mas não eram meus gritos.
Aqueles berros aterrorizantes vinham perto de mim. Tão perto que senti o calor do corpo da vítima deixando o mesmo enquanto era estraçalhado. Tentei me levantar, mas foi aos tropeços. Logo a Coisa terminaria o que estava fazendo e se voltaria para mim. Eu tinha de ser rápido, mas estava tão assustado que não parava de tropeçar.
Já achava que era o fim mesmo. Não conseguiria chegar ao poste a tempo. Foi então que uma mão me pegou e me ajudou a levantar. Não vi quem foi, mas pelas piadinhas, já soube na hora que era Pedro. Ele viu o membro da gangue me jogando no chão pouco antes da luz se apagar, e ficou para trás para me ajudar.
Ele me ajudou a levantar e corremos lado a lado na direção da luz, onde Casio e Oscar nos esperavam (aparentemente a tática do cara da gangue de me usar de isca não deu muito certo). Parecia que conseguiríamos então. Até que os tac, tac, tac recomeçaram.
Corremos e corremos o mais rápido que podíamos, e os tac, tac, tac ficavam cada vez mais fortes. Estávamos bem próximos da luz, porém os sons da Coisa estavam tão fortes que tive certeza de que não conseguiríamos chegar a tempo. Ou pelo menos um de nós.
Foi naquele momento em que decidi deixar de ser um medroso. Meu amigo se arriscou por mim, e eu tinha de fazer o mesmo. De repente parei de correr, na esperança de que a Coisa ficasse ocupada me devorando, dando tempo para Pedro chegar no poste.
Infelizmente, Pedro teve a mesma ideia, pois parei de ouvi-lo correr. Ia contestá-lo, gritar para ele voltar a correr, quando a Coisa fétida passou por mim e começou a estraçalhar meu amigo bem a meu lado.
Eu congelei, desta vez incrédulo do que acabara de acontecer, e foram precisos Casio e Oscar juntos, que viram nossas silhuetas chegando perto, para me arrastar para de baixo da luz.
Tudo o que pudemos fazer naquela hora foi ficarmos parados, apenas ouvindo nosso amigo ser morto, e quando os sons cessaram, o silêncio total reinou novamente.
Eu não podia acreditar. Depois de ter batido nele, Pedro mesmo assim havia morrido por mim. E, ainda por cima, eu poderia ter ido no lugar dele, e, se tivesse ido, teria sido brigado com meus amigos. Isso não podia ficar assim.
Assim que o choque pela morte de Pedro passou, logo me desculpei com Casio, que também havia se desculpado por não termos pegado o ônibus e contornado essa loucura de uma vez.
Passamos o resto do tempo relembrando nossas antigas confusões e rindo delas. Até Oscar estava mais aberto do que de costume. Mal notamos a luz se apagando aos poucos, e, quando notamos, vimos que nenhuma outra luz se acendeu.
Esse então parecia o fim da linha. Mas acho que não nos importávamos mais com isso. Pedro não temeu no fim das contas, e ainda partiu achando graça nas coisas, e decidimos fazer o mesmo.
A luz estava quase se queimando quando contamos nossa última piada, e então fechamos os olhos esperando pela Coisa.
A luz acendia e apagava, acendia e apagava, acendia e por fim se apagou de vez. Os tac, tac, tac recomeçaram. Estávamos todos prontos para aquilo.
Quando de repente uma nova luz de acendeu, fazendo os tac, tac tac cessarem. Mas não era um poste, e sim duas luzes gêmeas os faróis de um carro.
O motorista parou ao nos ver, e nos perguntou o que estava acontecendo. Ele visivelmente não se deparou com a Coisa. Os faróis do carro devem tê-la espantado dele.
Sem saber o que dizer a ele, apenas pedimos uma carona para a casa de Casio. O homem ficou hesitante e confuso de início, mas no fim acabou topando, já que a casa já estava bem perto.
Uma vez dentro do carro, conforme o mesmo ia andando, as luzes, tanto dos postes e das casas quanto das estrelas foram voltando a se acender. Olhamos para trás, e não havia nem sinal de corpos e nem de sangue. Mas sabíamos que, em algum canto escuro, alguma Coisa (ou Coisas) olhavam na nossa direção, com uma fúria sanguinária pelas presas que não conseguiu pegar, mas jurando que um dia pegaria.
Até agora nós três que sobramos naquela noite ainda estamos vivos e bem, mas, mesmo adultos, nunca mais dormimos de luz apagada de novo. E, não sei meus amigos, mas eu, mesmo com uma luz acesa, ainda consigo ouvir um leve chiado no escuro me rodeando: Tac, tac, tac, tac, tac…
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