
R. R. Oliver
Thiago e Tadeu eram gêmeos idênticos. Uma alma dividida em dois corpos, segundo superstição das avós. O pai achava aquilo uma bobagem, mas percebeu desde o início que, de fato, seus filhos compartilhavam muito mais do que a aparência. Viveram a maior parte da infância em Bertioga, na espaçosa casa de praia da família. Cresceram ouvindo piadas de que disputavam até os seios da mãe na amamentação.
Ainda crianças, a competitividade e as semelhanças beiravam o absurdo. Dois menininhos morenos, de olhos grandes, sorriso largo e cabelo tigelinha. Gostos iguais, roupas iguais, gestos iguais, palavras iguais. Um jogo de imitação, onde já não era possível saber quem imitava quem afinal. Ficava difícil até para a mãe distingui-los algumas vezes. E na adolescência, a disputa se acirrou. Na escola, nos esportes, nas amizades, nas paqueras. A morte do pai, naquela época, pareceu piorar ainda mais a situação.
Ninguém estranhou quando escolheram a mesma faculdade, e o mesmo curso. Computação. Mas no ambiente universitário, algo mudou. Thiago conheceu e se apaixonou por Isadora. A loira ambiciosa da capital paulista o desafiava de outras formas, e o fez se afastar, ao menos um pouco, da competição com o irmão. Não demorou muito para que Tadeu conhecesse alguém que lhe agradasse. Aline era do sul de Minas, ruiva nada natural, leve, divertida, despreocupada. O casamento duplo ocorreu um ano após os rapazes se formarem, sendo os casais também padrinhos uns dos outros.
Três anos se passaram entre a festa de casamento e o início da pandemia de Covid. Privilegiados por poder trabalhar remotamente, os casais se isolaram em grupo na casa de praia de Bertioga, lugar de tantas lembranças. Em um sábado frio e nublado de junho, os rapazes reviraram a casa em busca dos antigos jogos de tabuleiro e encontraram no acervo o infame “Academia”, o preferido de ambos.
As regras do jogo eram relativamente simples: o objetivo era ser o primeiro a completar uma volta no tabuleiro com seu peão. Para avançar as casas, o jogador precisava acertar o significado correto de palavras não muito usuais de nossa língua, ou iludir os outros jogadores a escolher sua resposta inventada, ou ainda escolher uma palavra que ninguém conseguisse acertar o significado correto. Não era apenas um jogo de vocabulário, mas também de blefe, e era isso que o tornava tão divertido para os gêmeos.
— A palavra é: licantropo. L-i-c-a-n-t-r-o-p-o. Valendo! — Aline disse, e virou a ampulheta no centro do tabuleiro.
Sentados à mesa, os irmãos riscaram freneticamente seus cartões de resposta, enquanto Isa fazia caretas e alisava sua barriga de 32 semanas, sem ter ideia do que escrever. Naquele momento da partida, os rapazes estavam empatados na liderança. Isa mal chegara à metade do circuito e Aline era a última, jogando com a displicência de quem preferia estar na piscina aquecida. Por baixo da mesa, havia outro jogo acontecendo simultaneamente. Mais sutil, com pernas se roçando levemente. O tempo acabou e a mineira pegou as respostas, virou de costas para a mesa e as leu embaralhadas entre a resposta correta.
— Muito bem, prestem atenção no significado correto de licantropo. Licantropo: metamorfo; Licantropo: lobisomem; Licantropo: filantropo; Licantropo: amaldiçoado. Isa, você responde primeiro.
— Ah, vou chutar. Amaldiçoado.
— Thiago?
— Lobisomem.
— Amor?
— Lobisomem!
— Bom, três pontos para quem falou “lobisomem”, mais um ponto pro Tadeu porque a Isa votou na resposta dele.
Com aquela pontuação, Tadeu completou o circuito. Levantou-se e puxou a esposa para sua estranha dança da vitória. Thiago reclamava pela esposa ter escolhido justamente a resposta do irmão, e Aline agradecia pelo fim do jogo, dizendo que já estava ficando com a bunda quadrada de tanto tempo sentada ali.
***
Thiago arriscava um passinho de samba na churrasqueira, enquanto o trio se esgoelava na piscina com o refrão de “Cheia de manias”. Isa comia por dois. Tadeu abusava das caipirinhas enquanto a esposa nadava.
— Continuo indignado por você ter escolhido maldição — disse, Thiago enquanto servia carne pingando sangue para a mulher.
— Mano, para de chorar! — disse Tadeu, rindo. — Perdeu, fica na churrasqueira!
— Lobisomem… licantropo. Na minha cidade era diferente — comentou Aline, nadando para a beirada.
— Na sua cidade tudo é diferente, amor.
— Mas é! Tia Ditinha falava que quando ela era nova, teve um causo de lobisomem em Muzambinho. Uma amiga dela do catecismo deitou com o primo. Quando descobriram que ele tirou a inocência dela, deu o maior bafafá…
— Tirou a inocência! Hahahaha!
— É desse jeito que ela contava, uai. Lembro que no final, a menina teve que mudar para BH. E o padre excomungou o moço, ele foi expulso da casa da família e foi morar no meio do mato, sozinho. O povo começou a falar que ele virava lobisomem nas noites de lua cheia. Que se alguma moça ficasse até muito tarde na rua, ele atacava. Teve umas que juravam que ele tinha corrido atrás delas. E que ele roubava os bebezinhos, e comia as crianças que não eram batizadas.
— Não pode nem dar umazinha com a prima… — os gêmeos falaram juntos.
— Como vocês são podres — disse Isa. — Por trás da crendice pode ter muito trauma, tá? Abuso, incesto, aborto…
— Ah, sempre tem — disse Tadeu. — E sempre tem a igreja tentando controlar as pessoas pelo medo também.
— É, isso sempre teve mesmo — completou Thiago. — Lembro da vó falando de algumas coisas assim. Que quando juntava compadre e comadre dava lobisomem. Ou era mula sem cabeça? Sempre confundo.
— O povo interiorano tem um jeito bizarro de criar suas convenções sociais — disse Isa. — Por via das dúvidas, desconfio de tudo.
— Eu pagaria pra ver um lobisomem de verdade — disse Tadeu.
— Credo! Deus me livre! — Aline fez o sinal da cruz.
— Se eu pudesse escolher, preferia ser uma vampira — disse Isa. — Não envelhecer me parece bem interessante. Linda e jovem para sempre, que tal?
— Imagina… você ainda é linda, amor!
— Ainda? — ela mordeu o canto da boca e olhou torto para o marido — E não mais jovem… entendi. Depois dessa, vou lavar a louça que ganho mais.
A loira vestiu um blusão de moletom e uma saia longa e entrou chorando na casa, enquanto os outros cochichavam sobre não ter sido nada demais, coisa dos hormônios da gravidez.
Pouco depois, decretaram o fim do churrasco. Thiago informou que sairia para fazer compras e encontrar chocolates para o mulher. Aline ganhara o direito de ficar na piscina, enquanto Tadeu ajudaria a cunhada com as louças do almoço.
***
— Você é jovem sim! — disse Tadeu. — E linda, e ainda mais gostosa hoje do que quando nos conhecemos.
Posicionado atrás de Isa, se empurrava contra o corpo dela na pia, segurando a pela cintura. Não demorou muito para ela largar os pratos e empinar a bunda. Ele enfiou o rosto entre os cabelos dela, respirando forte na sua nuca. A barba mal feita roçando no pescoço e arrancado suspiros.
— Que saudade…
— Faz tanto tempo… — ela disse, empinando mais a bunda.
Fazia realmente muito tempo, que eram amantes, e que não ficavam juntos. Tadeu havia conhecido Isadora antes do irmão. Thiago sabia que o irmão marcara um encontro, e apareceu no dia, fingindo ser o outro e tomando seu lugar. Teria sido apenas mais uma rodada naquela eterna disputa, uma lembrança da qual ririam quando fossem velhos, pensou. Mas ficar com ela despertou algo nele que nunca antes havia sentido. Precisou contar a verdade, seu verdadeiro nome e como não esperava aquele sentimento. Começaram a namorar no mesmo dia. É óbvio que Tadeu não deixou barato e, numa festa, usou o mesmo truque de fingir ser o irmão. Isa até desconfiou, mas deixou rolar. Ser disputada pelos irmãos daquela forma inflou seu ego. Além disso, o perigo a excitava mais do que tudo. Se tornaram amantes regulares desde então. A gravidez não chegou a atrapalhar, sempre havia um exame a fazer, algo a comprar para o quarto do bebê. Mas a pandemia sim, e estarem juntos na mesma casa, sem poder aproveitar, estava afetando ambos.
Tadeu subiu a mão, indo da barriga da cunhada para os seios, massageando. Atento às braçadas da esposa na piscina, e à qualquer sinal do carro do irmão voltando. Mas principalmente, atento aos sinais de Isa. A respiração intensa, os gemidos quando ele mordiscava e lambia o seu pescoço.
Por diversas vezes ela havia pensado largá-lo, sossegar com o marido, seguir em frente. Mas toda a sua racionalidade caía por terra quando ele a tocava. Nos últimos dias, os hormônios da gravidez a deixaram louca de tesão. Mas finalmente estavam a sós. Ele continuava se esfregando atrás dela, respirando em sua nuca e deslizando as mãos por seu corpo. Não teve o trabalho de tirar a roupa. Quando percebeu, sua saia já estava levantada, e ele puxou seu biquíni de lado com os dedos. Nem fechou a torneira, ocasionalmente a água respingava das louças e dava um banho nos amantes.
Firme, constante, rápido, não teriam muito tempo. Quando acabaram, Isa fez menção a tomar um banho de verdade, mas parou no meio da cozinha. Tentava ajeitar o biquini enfiado na bunda quando o enjoo a tomou de surpresa. Pensou que talvez tivesse balançado demais o corpo durante o sexo, ou que o churrasco não lhe caíra bem. Mas era outra coisa. O grito que deu em seguida deixou isso bem claro.
Aline estava submersa, mas o som agudo atravessou a água de tal forma que a fez se arrepiar, mesmo debaixo da água. Correu para dentro da casa e encontrou Tadeu em pânico. Na frente dele, Isa estava deitada no chão, numa poça de fluídos e sangue. As pernas abertas, a barriga saltada, a respiração forçada, uma súplica nos olhos.
— Liga pra emergência! — gritou. — E liga pro seu irmão! E já procura a chave do carro!
Outra contração, outro grito. A ruiva tremeu. Ajoelhou ao lado de Isa, ouvindo o marido tropeçar pelas escadas. Ela apertou sua mão com tanta força que pensou que fosse quebrá-la. Tadeu voltou com diversas toalhas, sem conseguir falar, e se ajoelhou junto delas. A loira bufava e gritava de tempos em tempos. Aline levantou e achou o celular, estava discando quando ouviu algo que a paralisou.
— Estou vendo! É a cabeça!
Isa fez força para empurrar. O menino para o qual ainda não havia sequer escolhido um nome estava chegando ao mundo. Queria esmagar a mão do desgraçado do marido, ou seu pescoço. Em meio às dores lancinantes e líquidos viscosos, percebeu que o filho fizera seu caminho para fora, dando-lhe um alívio.
— David — disse quando segurou o filho no colo pela primeira vez.
Aline, passou o endereço e pontos de referência da casa para a atendente ao telefone. Estava emocionada com a visão do sobrinho. Grande para um prematuro, pensou. Choroso, inquieto. E quando todos pensavam que o pior já havia passado, o pequeno David começou a tremer. Depois, a chorar com mais intensidade. E por fim, começou a se debater, como se estivesse convulsionando. Ela tentou ajudar quando viu o recém nascido se contorcendo nos braços da mãe, mas um arranhão a afastou. Uma pelugem escura cresceu, cobrindo a pele da criança. Ouviu estalos de ossos se quebrando. Palavras indecifráveis da mãe, que o deixou cair.
David caiu de pé. Na verdade, de quatro, e encarando Tadeu. Cauda, patas, garras, orelhas e focinho alongados. Mas olhos estranhamente humanos, azuis e brilhantes. Soltou um uivo que pode ser ouvido até por Thiago enquanto dirigia de volta para a casa. Depois, rosnou e avançou sobre o rapaz, que se defendeu desajeitado e teve o braço dilacerado por uma mordida quando tentou segurá-lo. O segundo ataque foi na jugular. Depois disso, com Isa já desmaiada, perseguiu Aline do lado de fora da casa.
***
O caso ficou registrado como “ataque de animal selvagem”, passado burocraticamente da Secretaria Municipal de Saúde para a Delegacia Seccional de Polícia, desta para o Centro Municipal de Zoonoses, que por fim empurrou o problema para o Departamento Estadual de Meio Ambiente e Proteção de Espécies. Isso porque, segundo as evidências coletadas, um animal faminto, possivelmente um cachorro do mato, havia invadido a residência e atacado uma criança recém nascida. As marcas de mordida no cordão umbilical eram claras. O outro casal presente também fora atacado, provavelmente tentando proteger o bebê. Ambos morreram com os cortes e ferimentos profundos. Os paramédicos achavam que o choque da mãe fora tamanho que tenha induzido-a ao delírio, pois a mesma afirmava, repetidamente, que seu filho havia se “transformado” em um filhote de lobo.
Sem dúvidas, uma criança nascera naquele recinto e sem dúvidas, um animal de características caninas havia atacado. Quanto a isso, a perícia estava certa. Thiago simplesmente não entendia como. Apesar disso, não tinha o que argumentar diante das provas. Ele acompanhou as buscas pelo animal ou por vestígios do filho, mas nada foi encontrado.
Também era difícil para ele visitar a esposa na clínica psiquiátrica onde fora internada. Protocolos da pandemia, além do próprio comportamento da garota, impediam que ele se aproximasse dela. Desde a morte do irmão, sua mente parecia imersa em um estranho silêncio. Nem sabia de onde tirava forças para suportar não apenas as mortes, mas os cochichos sobre ser o “azarado”, ou “aquele do caso da criança lobo”.
O diagnóstico de Isa passou por depressão pós-parto, estresse pós-traumático e, por fim, psicose. Por conta da agressividade, ela passava a maior parte do tempo sedada e com uma camisa de força, para impedi-la de machucar os outros ou a si mesma. E também para dar paz aos outros internos, já que, nas noites de lua cheia, os seus gritos, os quais ela alega serem uivos, são insuportáveis e não permitem que ninguém naquela ala do hospital consiga dormir.
Mas imagino que nenhum sedativo ou camisa de força é forte o bastante para segurar uma mãe que ouve os incessantes chamados de seu filhote lobo nas matas ao redor do edifício.
Ele precisa da mamãe. Eu preciso sair daqui.
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