
Thiago Alves
Eu não lembro de quando as coisas eram normais. Na verdade, eu não sei se um dia elas foram. Quando eu era criança me falavam muito sobre o “novo normal”, então creio que eu já nasci em um mundo completamente caótico. Minha adolescência foi ok, mas logo resolvi me alistar. Meu pai era militar então eu resolvi seguir carreira, mas eu também tinha outra paixão: a música. O dia em que eu descobri que poderia seguir as duas, foi o dia mais feliz da minha vida. Anos depois lá estava eu, um trompetista do Exército, tocando em eventos de caridade ou participando de festividades públicas nos fins de semana e durante a semana, horário de trabalho reduzido na sexta, exercícios físicos, ensaios… eu era pago para fazer o que amava e meus amigos me invejavam. Nosso país nunca entrou em guerra com ninguém a não ser no século passado como aliado. A guerra, porém, não é a única oportunidade de trabalho para militares. Existiam as missões de paz. Essa última mudou minha vida.
No início foi muito legal, pois eu me achava um personagem de filmes americanos. Estava embarcando para uma viagem a uma ilha bem próxima à nossa costa. Eu só não entendi como eu, um músico estava sendo recrutado com os outros para lá, mas logo que cheguei eu soube. Meu mundo caiu.
Bem, pra resumir, a instabilidade política e econômica ao redor do mundo gerou uma guerra fria entre diversas potências mundiais. Nos últimos anos, todos os percalços da humanidade serviram de lição para nossa geração, mas digamos que o ser humano sempre arranja um jeito de corromper tudo. Depois da pandemia dos anos 20, muita coisa evoluiu em termos de ciência, especialmente depois da quarta onda de 24 e o colapso econômico mundial em 27. Evolução na ciência, não significa necessariamente melhora, mas uma mudança. Com as tensões entre os chineses e todo o mundo árabe e, claro, a intervenção dos EUA com seu imenso complexo de superman, forças militares de muitos países focaram em conter os testes clandestinos ao redor do planeta a fim de desativar armas químicas ou minimizar os danos em testes nucleares ou armas biológicas. E você sabe o que os músicos, esses pacatos cidadãos de farda com sua simpática fanfarra fazem em caso de guerra? Carregam corpos. Isso mesmo. Em um país pacífico como o nosso, nenhum de nós se preocupava com isso até se tornar realidade nessas “missões de paz”.
Ao chegarmos na ilha, soubemos da real situação. Um capitão nos recebeu rispidamente e fez com que o comandante agilizasse o quanto antes as equipes para seus postos. De repente, me vi em uma trincheira, com drones sobrevoando nossas cabeças, carros e tanques para lá e pra cá. Claramente havia algo que não tinham nos contado. Acontece que, a população da ilha estava doente e eu fiquei encarregado de buscar os corpos interceptados nas trincheiras e levá-los às valas comuns. Alguma arma biotecnológica havia sido disparada “acidentalmente” em um ponto da ilha, mas diversos países pareciam ter interesse em estudar os efeitos. A ONU solicitou que os nativos fossem atendidos e seus mortos sepultados com dignidade. Era isso que a imprensa divulgava, mas valas comuns não são dignidade, muito menos ter que interceptar um pelotão inimigo para que não explorem os nativos dissecando seus corpos e estudando os efeitos do ataque biológico sem autorização das Nações Unidas. Não haviam protocolos claros, nem sabíamos quem era de fato o inimigo. Só sabíamos que estávamos disputando por cadáveres a fim de que algo sinistro não viesse à público ou virasse outras armas biológicas a partir de estudos com os corpos das vítimas.
Se eu não me engano, foi mais ou menos na quinta noite que tudo mudou. Eu e meu colega, um violoncelista muito talentoso, estávamos caminhando pela trincheira em direção a uma das bases de madrugada, quando alguém de uma patente maior gritou e pediu para nos deslocarmos a uma outra base. Chegando lá, muitos soldados carregando corpos em pedaços com carrinho de mão. A cena era dantesca. Fomos forçados a ajudar e jogar aqueles corpos em uma grande vala funda. O cheiro era insuportável. Os corpos estavam dilacerados se tivessem explodido. Aquelas pessoas estavam irreconhecíveis. Por alguma razão, a pressa era encher a vala e fechá-la o quanto antes. Alguns outros oficiais estavam com roupas especiais, como aquelas que evitam contágio e isso me arrepiou todo, pois nós, os soldados, não estávamos usando as mesmas roupas. Então eles aproximavam-se da beira da vala e jogavam uma espécie de pó sobre os corpos e uma estranha fumaça saía da vala como se aqueles corpos estivessem derretendo. Eu não conhecia essa tecnologia. Quando eles se retiraram para buscar mais do produto, um capitão com sotaque nos fez caminhar mais rápido a fim de encher logo aquele buraco. Foi aí que aconteceu.
Eu estava correndo com um dos carrinhos de mão quando me distraí com uma coisa bizarra. No carrinho, havia três corpos. As vísceras estavam à mostra, mas um brilho estranho apareceu em um reflexo de luz sobre o sangue. Um brilho esverdeado, em meio a um pus estranho. Comecei a caminhar mais de vagar até chegar em um ponto onde uma luz refletia sobre nós com mais intensidade. O pus parecia se mexer. O brilho era mais intenso do que eu imaginava. Todos os membros daqueles corpos estavam despedaçados, mas por entre as partes, o pus brilhoso parecia querer transitar. Me assustei a ponto de gritar quando um comandante bateu em meu capacete e aos berros me pediu para continuar. Descarreguei os cadáveres, ou o que sobrou deles e olhei para o lado. Meu colega me olhou de volta e eu percebi que ele também tinha visto algo. Eu estava bem na beira da vala e escorreguei.
Caí cerca de um metro e meio e desci ladeira abaixo por mais uns três metros, escorregando em meio aos restos pútridos naquelas vísceras e ossos. Desesperado, gritei e tentei subir novamente. Tentei escalar pisando em cabeças, torsos e terra molhada de pus e sangue. Escorreguei de novo e de novo e no meio do desespero, um toque forte no meu tornozelo. Algo me agarrou e não queria soltar. Estava escuro e eu não sabia o que poderia ser. De repente, outra coisa agarra meu outro pé e eu caí de cara naquele chão nojento. Senti as coisas se moverem no meu rosto e fui arrastado para baixo caindo no fundo daquele buraco com a cabeça virada para cima. Algo estava prendendo minhas pernas e braços enquanto eu tentava gritar. Eu só conseguia olhar o céu e muitas pessoas ao redor da beira da vala. Um helicóptero de resgate se aproximou e com sua luz, eu pude ver as cabeças em decomposição, de alguma forma olhando para mim. Muitas mãos me agarraram e uma mandíbula mordia minha orelha. Sons estranhos e gemidos pareciam surgir ao meu redor lentamente. Tudo começou a se mover mais e mais e comecei a sentir uma dor muito forte como se algo estivesse espetando minhas costas e tentando entrar em mim. Eu estava totalmente coberto daquele pus brilhoso e eu me sentia sendo sugado pelo chão. O helicóptero soltou uma corda e eu percebi que precisava lutar pela vida e me agarrar àquilo, já que claramente outro ser humano não iria descer até lá. Depois de um enorme esforço, agarrei uma das mãos à corda que me puxou de volta. A força contrária que me fazia afundar era muito forte. Eu estava bem no centro de um cabo de guerra. Finalmente consegui agarrar a corda com a outra mão e assim fui resgatado.
Eu não me lembro de muita coisa depois disso. Amanheci em um hospital improvisado em outro local da ilha. Havia pessoas de jaleco e falando diversos idiomas. Entravam e saíam do cubículo onde eu estava. Percebi então que eu estava do lado inimigo. “Cacete! Se eu sair daqui vou ser um traidor! Vou voltar para o Brasil como um idiota exonerado. Talvez eu nem volte”. Ouvindo os caras de jaleco conversando ao lado do biombo, consegui entender alguém que falava um inglês de sotaque arrastado, que eu estava bem e com sinais vitais estáveis. Eu soube naquela hora porém, que seria deportado e enviado para um hospital em um navio. Para quem não sabe, águas internacionais não tem uma jurisdição exata. Eles iriam fazer alguma outra merda comigo. Naquela tarde eu decidi fugir. Usando só o pijama de paciente e com diversos curativos pelo corpo, saí na surdina e consegui chegar a uma praia. estava tudo tão sujo e bagunçado que parecia que um furação tivesse passado por alí. Eu avistei, infelizmente, alguns corpos boiando no mar e alguns espalhados pela praia. Ao ouvir de longe algum alvoroço, corri para me esconder em uma caverna próxima. Na escuridão da caverna porém, outro corpo. Uma senhora sem pernas e com rosto desfigurado, olhava para mim, abria e fechava a boca como quem quisesse falar, mas estava claramente morta. O pus brilhoso saía pelos olhos. Corri então para outra parte, mais ao interior da caverna, onde jaziam muitos ossos e um animal moribundo gemendo. Fiquei paralizado.
Escrevo isso para que alguém possa ler se ainda tiver sobrado alguém vivo. Passei muita fome naquela caverna e os oficiais claramente desistiram de mim. Por algum motivo sobrevivi e cheguei a um vilarejo onde as pessoas são aparentemente saudáveis. Ontem, porém, descobri que há um culto macabro na lua nova. Pedaços de corpos humanos são trazidos de diversos pontos da ilha para que, em uma cerimônia na fogueira, as partes dos cadáveres sejam unidas como frankensteins enquanto um curandeiro despeja sangue com pus brilhoso sobre eles até que se levantem. Os nativos chamam isso de Era da Lua Nova. Uma nova era que se levanta contra os opressores do mundo, trazendo vingança por toda a exploração sofrida. Espero que você esteja bem ao ler esse relato. Saia de onde estiver e se esconda, pois uma nova epidemia vai se espalhar. Ninguém vai conseguir conter a revanche do povo da Lua Nova.
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