O coração da besta

Gutenberg Löwe

Licão e os outros jovens desceram até a entrada do Palácio Labiríntico. Diante das portas de madeira escura, os recém-chegados pareciam formigas prestes a serem esmagadas. Adornadas com as figuras táuricas que encaravam os sacrifícios com olhos pétreos e inclementes, eram como o caminho para o Submundo. O jovem engoliu em seco, na dúvida entre sofrer com as lanças às suas costas ou com a criatura que se escondia naqueles salões.

Escolheu a incerteza, sendo o primeiro deles a avançar rumo aos portões. As sandálias dos soldados arrastaram nos degraus atrás de Licão, seguidas pelos protestos dos outros. Ele acelerou seus passos, cruzando o limiar.

Assim como os portões, as paredes eram imensas ao ponto das tochas na entrada não iluminarem o teto. O corpo de Licão estremeceu, mas nem deveria ter tal resposta ao medo. Seu destino, muito antes que houvesse nascido, era adentrar aqueles salões escuros e dali descer até o Hades pelas mãos do terrível habitante de tais sombras.

A vida persiste, até mesmo em desafio aos poderosos, pensou, mergulhando na escuridão. Porém mesmo se a besta não o destruísse, a falta de comida e bebida se encarregaria disso. De uma forma ou outra, seria agora o que as Parcas teceram na tapeçaria na qual registraram a vida de Licão.

***

Era o “terceiro dia” quando despertou com os gritos. O som parecia viajar de forma estranha em meio ao labirinto. Ou talvez fosse a mente faminta pregando peças em Licão. No “dia anterior”, imaginara ser seguido pelo monstro — os raspar de cascos vindo em crescendo às suas costas, uma respiração ofegante e fétida pairando no ar —, mas era apenas sua imaginação. Caso contrário, estaria morto. A não ser que a criatura gostasse de brincar com sua comida.

Antes de iniciar nova caminhada no breu, esperou para confirmar se ouvira algo real ou apenas imaginara aquilo. Não havia mais gritos, o que poderia ser tanto a prova de uma quanto da outra suposição. Mas o que isso importa, afinal? A barriga rugia como se fosse o próprio Cérbero e a sede queimava os lábios partidos, arranhando a garganta a cada respiração.

Seria mais fácil apenas entregar-se, ficar caído em algum dos cantos e esperar para cumprir sua função no mundo. Quando o tirano de Atenas escolhera seus pais para serem portadores da oferenda, Licão já não tinha mais escolhas. Por que continuar, então?

Dobrou a esquina — rocha áspera como todas as outras — e dois rubis flamejantes surgiram diante dele. O cheiro almiscarado de touro veio junto de uma brisa fantasmagórica. Aquilo o paralisou com um misto de medo e atração, a educação de uma vida para a morte tomando conta.

As forças de Licão haviam desaparecido, até mesmo para manter-se de pé, mas ofereceria resistência quando o monstro o atacasse. Um passo da criatura, resfolegar e os cascos arranhando o chão frio. O jovem colocou-se em posição de ataque — se era capaz de vencer a si, também poderia enfrentar a besta. Que fosse a refeição mais difícil do Minotauro.

As brasas flutuantes se mantiveram paradas, longe do alcance dos punhos de Licão. Tal hesitar era pior aos nervos do que se a besta atacasse logo. Nesse ínterim, surgia o espaço para que a mente lembrasse das histórias contadas entre as futuras oferendas nos longos dias antes que as naus minoicas os buscassem.

Diziam que a criatura caminhava sobre cascos forjados por Hefesto, tinha o hálito da morte e deliciava-se com a carne fresca de suas vítimas. Devorava cada um enquanto ainda estivessem vivos, pois o temor dava gosto especial ao prato funesto. Os contos eram tantos que um aedo demoraria mais do que os curtos dezesseis anos de Licão para recitá-los.

Contrariando gerações de rapsodos, o Minotauro não atacou. Permaneceu escondido na escuridão, apenas os rubis flamejantes entregando sua posição. Cada instante sendo um acúmulo maior de tensão para o jovem. No fim, aquilo foi demais para o ateniense. Licão desmaiou, vencido pela fome e pelos olhos imóveis.

***

— Não se movimente muito rápido — disse voz desconhecida quando Licão despertou. Era grave, digna dos louvores a Apolo, e sua profundeza reverberava no jovem. — Seu corpo está fraco pelos dias sem alimento.

Encontrou-se em uma espécie de caverna, com a luz do sol aparecendo no que deveria ser sua saída. Procurou a voz de seu interlocutor, imaginando encontrar outro sacrifício que escapara das garras do Minotauro. Para sua terrível surpresa, quase lançando-o outra vez à inconsciência, deparou-se com o olhar incendiado da besta.

De pronto rastejou para longe, arranhando-se no cascalho solto. O cansaço o levou até a abertura da caverna, mas mesmo um pé a mais que isso parecia impossível. A cabeça ficou leve, a visão nublada como se ainda estivesse na escuridão dos outros dias.

— Não se assuste — aquele som divino vinha da mesma direção em que repousava a figura táurica. Na mente do jovem, não era possível. Era uma criação impura e destinada à destruição. Besta ausente de quaisquer das graças da amada Atena. — Minha intenção é apenas ajudá-lo.

— Fique longe de mim!

O Minotauro bufou, som que repercutiu por entre as paredes, pronto para sobrepujar Licão. Os olhos avançaram, chegando ao ponto em que a luz revelou seu portador. Por Zeus! Surpresa maior não poderia existir.

A cabeça era de fato bovina, os pelos negros contrastavam com a alvura de seus chifres, porém o corpo era bem humano. Não era, no entanto, fisionomia como a de um comerciante ou filósofo, mas daqueles homens dignos de apresentarem-se diante dos deuses nos jogos. Os músculos mesmo em repouso revelavam a potência escondida naquela fisionomia; sua postura ereta mantinha o rosto animalesco com uma posição altiva, olhando-o de cima com curiosidade e mistério.

Os passos se arrastavam, mas em vez de cascos eram as sandálias do Minotauro que esmagavam o cascalho solto no chão. Caminhava cadenciado, revelando graça e pujança em sua forma híbrida. Devagar, se aproximava do jovem ateniense. Trazia as mãos erguidas e espalmadas.

Parou há uma distância segura, mas que Licão imaginava ser vencida com simples salto da criatura. A figura táurica agachou-se, permitindo ao jovem reparar em como a fusão entre tronco humano e cabeça taurina ocorria naturalmente. Os pelos escuros e encaracolados do peito humano dando lugar aos feixes de uma pelagem lustrosa que coroava aquele ser.

— Meu nome é Astério — declarou o monstro, pousando a pesada mão sobre o coração.

Outra surpresa para o ateniense. Não conseguia conceber que o monstro pudesse ter nome diferente daquele pelo qual todos o chamavam. No entanto, aquele ritual de apresentar-se disparou uma resposta imediata no jovem.

— Licão.

O Minotauro sorriu, revelando dentes enormes, dignos das histórias que chegavam com cada minoico para aumentar aquelas compartilhadas entre os tributos. Bocarra potente, capaz de engolir os sacrifícios exigidos pelos tiranos da ilha e manter Atenas subjugada.

— Vamos sair para comer algo? — perguntou o monstro, apontando a fonte de luz.

— Se quiser me devorar, faça agora mesmo — o jovem se levantou com um salto. O mundo escureceu por alguns instantes, mas ele bradou seu desafio através daquela tontura negra: — Venha, não quero prolongar mais o sofrimento.

A gargalhada bovina era vigorosa, capaz de fazer as paredes estremecerem. Talvez nem tanto. Pelo menos, no corpo fragilizado de Licão, ecoaram robustas e inclementes.

— Comê-lo? — Deu de ombros e, por um instante, pareceu que a cabeça desequilibraria todo o corpo. Aproveitou o momento para estender uma mão ao jovem caído. — Tenho frutas e legumes não muito longe daqui. Uma fonte de água também.

Licão aceitou a ajuda, sendo erguido com movimento firme, mas suave do Minotauro. Com cuidado, o taurino aproximou o corpo combalido do ateniense junto ao seu. O odor almiscarado veio outra vez, mas agora não trazia o mesmo temor de outrora.

— Obrigado… Astério.

Caminharam em silêncio até alcançarem a fonte de luz. O que Licão pensou ser uma saída do Labirinto era, na verdade, uma seção aberta deste. O sol brilhava mais forte após os dias naquela noite artificial e nunca antes o cantar dos pássaros foi tão melodioso. Havia um lago ali e várias árvores e arbustos e flores das mais variadas cores. Parecia que o ateniense deixara para trás o Hades e entrara nos Campos Elísios, domínios exclusivos aos heróis.

— É lindo. — As palavras escaparam com misto de estupefação e incredulidade. Meio cambaleante, o jovem foi até o lago, quase afogando-se ao abaixar-se para matar a sede.

— Uma das tantas maravilhas de Dédalo, com certeza — comentou Astério, avançando até uma macieira. — Ainda não descobri a extensão completa da minha prisão, mas encontrei várias áreas como essa espalhadas em meio à escuridão do Labirinto.

Colheu uma maçã de um galho mais baixo e a lançou para o jovem. Depois de beber como se fosse a única coisa necessária no mundo, o ateniense estava de pé e agarrou o pomo ainda no ar. A fome fez Licão devorá-la como se ele próprio fosse o monstro ali. O sumo adocicado escorria por seu rosto enquanto a acidez bailava em seus lábios. Astério o observava com os braços cruzados e uma expressão indecifrável em seu rosto táurico.

— E os outros sacrifícios? — perguntou Licão ao saciar a urgência de sua fome. — Se você não é a besta das histórias deveria ter mais companhia, certo?

— Infelizmente, eles se perderam na escuridão e na loucura — explicou, entregando outra maçã para Licão. Mais mordidas selvagens em busca daquele sabor olímpico. — Já encontrei alguns menos debilitados, mas as histórias sobre mim os fazem fugir ou me atacar. A maioria padece de suas próprias fraquezas. Além de tudo, os homens são coisas frágeis. Em poucas décadas já não são mais nada além de ossos e arrependimentos.

O cansaço na voz de Astério mostrou-se também no corpo. Sentou-se sob a sombra da macieira, olhando o céu, pensativo. Tivesse Licão os instrumentos ou habilidade para tal feito, teria imortalizado aquela contemplação singela do taurino. As formas poderosas de seu corpo mereciam essa honra para que gerações a perder de vista o admirassem.

Movido por uma compaixão que apenas os desgraçados sentem, o ateniense juntou-se ao seu anfitrião do Submundo. Com medo e curiosidade lutando dentro de si, pousou a mão sobre um ombro de Astério. Queria subir pelos músculos rijos, tocando aquelas cordas tensas como se fosse harpa apolínea e sentir o toque daqueles fios grossos onde animal e homem se fundiam.

Quando deu por si, realizava seu desejo, ouvindo o resfolegar baixo de Astério. Uma pergunta cruzou sua mente como raio: será que alguma vez alguém o tocou assim? O próprio ateniense não tinha muito contato físico com os outros. Os tributos eram marcados antes mesmo do nascimento para preservarem a pureza de corpo e mente.

A mão do Minotauro pousou sobre a de Licão. Em vez de removê-la, como se a carícia incomodasse o ser taurino, ele apertou de leve os dedos de seu companheiro. Outro sorriso naquele rosto bovino, o brilho avermelhado dos olhos ressignificado como desejo e não crueldade.

Como se já houvesse feito aquilo uma dezena de vezes antes,  Minotauro tomou Licão nos braços, trazendo-o para junto de si. Astério, apesar de seu tamanho — talvez por conta dele —, foi gentil com o jovem quando este se entregou. Licão esperara por toda a vida, entre momentos de desespero e resignação, que aquele instante chegasse. Era seu destino ser uma oferenda ao Minotauro, apenas jamais poderia imaginar que tal sacrifício seria tão prazeroso.

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Uma resposta para “O coração da besta”.

  1. Esta obra nada mais é do que um presente dos deuses para está humilde serva da leitura. Gutts, meu queria, você nunca deixa de me surpreender e conquistar através das palavras potentes! Obrigada por este presente!

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