Hotel Califórnia

Amanda Kraft

A van percorria a estrada no meio da noite. O céu estava encoberto, mal dando para ver as estrelas teimosas que se sobressaíam acima das nuvens gordas e negras. Logo mais a chuva viria. Contudo, dentro do carro, a alegria e o cansaço pós-show deixavam qualquer possibilidade de algo nos acontecer, relegada ao mais profundo de nossas mentes, atordoadas pelos gritos da plateia e o barulho abusivo dos instrumentos. 

Estávamos felizes, e quando se está feliz não se pensa nas intempéries do tempo, nem em seus perigos. Diogo dirigia a van turbinada com pneus largos, de lataria encoberta com os desenhos do nosso logotipo: Os Devassos. Laila, a namorada, chocalhava no assento, tentando pegar a garrafa de vinho da mão do Ozzi, nosso vocalista. Eu sorria com a brincadeira deles, embora estivesse cansado. A bateria foi pesada naquela noite. Sentia-me com os braços poderosos, porém, naquele momento, queria chegar o mais rápido possível em algum hotel ou pousada e dormir um pouco.

No dia seguinte tínhamos outro bar agendado. A galera curtia nosso cover do Black Sabbath. O Biro roncava nos bancos do fundo. Não sei como o cara aguentava dormir depois de tanta adrenalina. Naquela noite senti inveja dele. Parecia que nada o incomodava. 

Mirei o céu assim que vi a primeira gota grossa bater no vidro do carro. Explodiu e escorreu lenta. Diogo estava concentrado na estrada escura. O farol pouco mostrava. Senti um arrepio percorrer o corpo. Não gosto de tempestade. Sempre me deixa tenso.

— Di, sabe o caminho? — Perguntei, sem querer demonstrar o nervosismo.

— Relaxa, cara. A gata metálica está me ensinando o caminho direitinho. 

— E desde quando dá para se confiar totalmente no GPS?

— Tá com medinho? Aqui tem um ás no volante. Se a moça falhar eu toco sozinho — o babaca riu com gosto da piada idiota. Ele sempre fazia isso, mas o cara dirigia bem. Então consegui relaxar um pouco.

Mas, por pouco tempo. A gota grossa logo deu lugar a várias outras e a fila de ploc ploc começou a intensificar. O casal estava se agarrando no banco à minha frente, sem ligar para a pancada de chuva e os trovões que ribombavam no céu. Aquela cena me deixou irritado.

Um raio riscou o céu e dei um pulo involuntário no assento. Maldita chuva. Tinha que cair justo agora! A água desceu com tudo no vidro frontal da van. O limpador de para-brisa corria feito louco de um lado para outro. Levantei e fui até o banco ao lado de Di.

— Cara, não acha melhor encostar? Tá muito forte.

— Relaxa, cara. Já estamos chegando.

— Não dá para ver nada à frente.

— A estrada tá deserta, mano. Senta aí. Olha a indicação. 

Acenou com a cabeça para eu olhar para o mapa no celular, grudado no suporte. Mas aquilo não me confortou em nada. Um raio clareou o céu e de repente tudo enegreceu. A van pareceu pifar, balançar, rodar na pista, tudo ao mesmo tempo. Gritei. Não me envergonho de dizer. Acho que batemos em algo muito duro, pois paramos de girar. Olhei para trás e todos pareciam bem. Assustados, porém bem. Até o Biro acordara, e nos espiava por cima do banco. Descemos do carro e, encharcados até os ossos, vimos uma luz ao longe, para nosso alívio, uma vez que o Di tentara dar a partida mais uma vez no carro morto. Trancamos a van e seguimos em silêncio pelo acostamento. Fazia frio, mas a luz se aproximando era quase quente.

Foi com alívio que vi a placa luminosa: Hotel Califórnia. Achei estranho o nome. Não era esse o hotel que fizemos reserva, mas quem se importa? Entramos quase ao mesmo tempo no saguão. Havia pessoas perambulando por ali, mas confesso que nem notei. Meus ossos gelados ansiavam por um banho quente. Empoleiramos no balcão da recepção e apertamos a campainha antiquada. A Laila estava com um semblante estranho, agarrada ao Ozzi, mas na hora nem liguei. Tudo o que queria era subir para o quarto e dormir o sono dos justos.

— Bem vindos ao Hotel Califórnia — dizia a moça loira, sorridente, de pele plúmbea, encarando-me com um olhar estranho, enquanto eu olhava, embasbacado, ao meu redor — É bonito aqui, não? — Perguntou-me.

— Sim — respondi, diante de paredes que ostentavam espelhos ornamentais antigos. Havia vasos floridos em colunas de mármores, circunvagando pelo saguão. Sim. Em meus olhos cansados, pareciam mover-se em círculo. Apenas as pessoas pareciam estranhas para mim. Encaravam-nos com olhos ávidos, esperançosos. — Pode nos conseguir um quarto? — Perguntei, inquieto.

— É claro! Sempre terá um quarto para quem chegar. — Sorriu-nos de maneira obtusa.

Afastei-me do grupo depois de pegar a chave na mão. Sentia uma forte dor de cabeça. Meu desejo era deitar logo. Meu braço direito formigava estranhamente. Um rapaz vestido de calça, colete e um chapeuzinho esquisito de cor vermelha, acompanhou-me pelo corredor escuro. Senti certa apreensão ao ver a extensão de portas que pareciam inchar e desinchar enquanto caminhávamos lado a lado, sem que ele nada dissesse. Assim que coloquei a mão na porta, uma leve tontura me acometeu. Olhei para o corredor, iluminado apenas por uma nesga de luz que saia de luminárias opacas, e logo vi meus amigos apontando na curva. Riam e conversavam entre si. Tratei de entrar logo. Queria uma toalha de água fria na fronte. A dor estava aumentando sobremaneira.

Mal notei o quarto. Acendi a luz e corri ao banheiro. Abri a torneira e sorvi a água gelada. Lavei o rosto e me encarei no espelho embaçado. Cai na cama e fechei os olhos. Meus sonhos se misturaram à tempestade que caía lá fora. Minha cabeça rodava tal qual a van na pista molhada. Ouvi vozes ao longe. Pareciam cantar e dizer:

— Bem vindos ao Hotel Califórnia. Um lugar encantador.

Levantei-me, igual sonâmbulo, depois de um tempo. Desejava ardentemente alguém que fizesse a dor em meu corpo parar. Segui para o saguão. Talvez a moça de sorriso estranho pudesse me dar algo. Lá estava ela, entretendo os hóspedes. Meus amigos pareciam estranhos, dançando de forma letárgica, como se nada mais importasse, junto aos outros hóspedes que riam de forma histérica.

Chamei por eles, entretanto pareciam não me reconhecer. Estavam em um mundo particular. De certa forma me senti magoado por terem me excluído. Bebiam, riam e dançavam diante de um homem sentado numa poltrona de espaldar reto. Não pude ver seu rosto de onde estava. Quando dei um passo na direção deles, a moça de rosto plúmbeo me interpelou:

— Sente-se bem? — avaliou-me com aquele sorriso estranho no rosto.

— Na verdade não. — disse, dando um passo na direção dos meus amigos.

— Você não pode se juntar a eles. Não ainda. — segurou meu braço, impedindo-me. 

Nesse momento, o homem da poltrona se mexeu e seu rosto voltou-se para mim. Seus olhos eram totalmente negros. Não havia esclera. Sua mão fina, em forma de garras, segurava uma taça de cristal onde um líquido escuro descansava no fundo. Volvi meus olhos para a moça e ela me encarou. Não pude ler sua expressão, pois a dor em meu peito foi intensa, a ponto de me derrubar ao chão, com as costas no mármore frio e as pernas abertas.

Respirei devagar e percebi que a música havia parado. Todos os olhos do recinto estavam cravados em mim. Tentei chamar o Ozzi, erguendo a mão para o alto, entretanto sua cabeça tombada encarava-me com uma expressão triste. Laila sorria com olhos ensandecidos. Biro fez um sinal de pare, que não compreendi. Então veio a dor intensa mais uma vez. Dessa vez meu corpo pulou e uma dor aguda no braço deixou-me prostrado.

Aqueles rostos estranhos voltaram a rir e vagar pelo saguão como doentes em um sanatório, como se festejassem a minha dor. A moça me encarou mais uma vez e seus olhos frios me dizia:

— Bem vindo ao Hotel Califórnia. Aproveite a vida enquanto pode.

Os espelhos no teto traziam meu rosto exaurido. Senti os olhos pesados e meu corpo ser sugado para fora do hotel. Ouvi gritos de protesto e uma mão agarrar meu braço.

— Você não pode partir — disse-me o porteiro, trajado à rigor — Ninguém pode.

— Tragam o champanhe — alguém gritou do salão de danças.

— Eu quero sair — disse, enfrentando o porteiro hostil.

— Você pode ficar, se quiser — disse a moça, materializando-se ao meu lado — Seus amigos assim desejam.

— Eles parecem nem me reconhecer. Não quero ficar. Sinto alguém me chamando. Preciso ir.

— Fique — disse, colocando a mão em meu peito e se aproximando devagar — Posso fazê-lo feliz aqui, assim como os outros.

Seu rosto estava mais próximo do meu. Senti seu hálito doce aprisionando-me enquanto os hóspedes gritavam em uníssono:

— Fique! Fique! Fique!

Ela me beijou e eles gritaram felizes. Sua boca pressionava a minha. Sua língua invadia meus sentidos, desnorteando-me. Ouvi alguém me chamar do lado de fora. Mais uma vez a dor no meu peito me fez perder o fôlego.

— Somos todos prisioneiros aqui — ela disse, soltando-me.

— Prisioneiros! Prisioneiros! — gritavam eles, me cercando.

— Di, Biro, Ozzi, Laila, vamos sair daqui — pedi, sentindo o terror me invadir pela primeira vez. 

— Eles não podem. Ninguém pode.

— Deixe-me sair — ordenei, enquanto eles se aproximavam devagar, avaliando aquela luta desigual.

Senti a face queimar de repente, como se tivesse levado um tapa no rosto. Arregalei os olhos e a moça me encarou com um ódio peculiar. Fechei-os novamente e gritei com toda a força que consegui.

— Eu quero sair.

Tudo aconteceu de forma lenta e sinistra. Vi-me do lado de fora do Hotel. A chuva molhava o meu rosto. Todas as janelas traziam rostos furiosos a me encarar. As mãos espalmadas nos vidros pareciam ossos finos e frágeis se desfazendo em câmara lenta, feito poeira ao vento. Meus amigos me encaravam, enxergando-me pela primeira vez desde que puséramos nossos pés ali. Pareciam tristes. Não sei se por mim ou por eles.

Tive medo de arremeter contra a porta e tirá-los dali. Vi uma lágrima no rosto de Laila e me decidi. Coloquei a mão na maçaneta da grande porta vermelha e ,então, minha cabeça rodopiou. Luzes brancas me cegaram. Alguém gritou em meio aos trovões.

— Ele voltou. Ele voltou.

Senti um arrepio no corpo. Medo! Teria conseguido entrar novamente naquele lugar sinistro? Não.

— Você está bem? 

Um rapaz me encarava, enquanto outros dois tiravam uma maca de uma ambulância. Ergueram-me e comecei a me debater.

— Fique quieto. Nós vamos te levar daqui.

— Não. Meus amigos!

— Vamos te levar para o hospital mais próximo.

— O Hotel.

— O que disse?

— Ele está em delirando — ouvi a voz do outro rapaz — Já vou apagá-lo.

Dias mais tarde, acordei no hospital. Disseram que tive traumatismo craniano e lutei pela vida. Duas paradas cardíacas. Meus amigos estavam mortos. A van rodou na estrada e caímos num barranco. Informaram-me que, enquanto me resgatavam, eu balbuciava constantemente sobre um hotel. Perguntaram-me o que significava. Não lhes respondi. Disse que não me lembrava de nada.

Entretanto, tudo estava claro em minha mente. De alguma forma meus amigos estão presos naquele lugar infernal. Sempre que fecho os olhos eu a vejo abrindo a porta do Hotel Califórnia, me desejando boas vindas. Ela sorri com seu rosto plúmbeo e me convida a entrar. Às vezes penso em não resistir, mas a percepção de algo negro, que se esconde nas sombras atrás dela, me impede. Sinto-o pulsando, crescendo cada vez mais, desejando… desejando. Meus amigos não tiveram a minha sorte. Não sei a razão de ter sido poupado. Sei que eles não gostaram de me perder.

Aprendi a controlar os terrores noturnos nas horas mortas, quando os dois aparecem enquanto me sinto paralisado. Ela me encara com o rosto tombado para o lado, admirando-me. Não tenho medo dela, mas sim, do dia em que ela sair da frente dele. Do homem de olhos totalmente negros. Sei que ele está ali. Posso sentir seu desejo. Ele me conhece. Depois que os dois se vão, eu adormeço em paz. Ou quase, pois ainda os ouço proclamar:

— Bem vindo ao Hotel Califórnia.

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