R. R. Oliver
Bete havia pegado no sono no fim de tarde, recostada em uma cadeira de balanço, mas acabou despertando repentinamente pela sensação de queda em um sonho.
Elisabete. Dona Bete. Tia Bete. Vovó Bete. A passagem do tempo estava marcada tanto no corpo da benzedeira quanto nas fotos espalhadas por paredes e estantes. A coluna curvada; cabelos brancos, curtos, ralos e cheios de grampos; pele enrugada; um olho de vidro e outro que viu o mal de perto, mas já não via mais nada sem os óculos fundo de garrafa. Apesar de tantas lembranças, estava chegando aos 83 anos e algumas delas começavam a lhe escapar repentinamente, rostos e nomes e datas e detalhes se tornavam borrões indecifráveis na mente. Apesar de tantas pessoas queridas, preferia viver sozinha na casa onde passara a maior parte dos últimos 60 anos.
A casa era ainda mais velha que ela. Um casarão de dois andares razoavelmente longe do centro comercial e que viu a pequena cidade de Biritiba Mirim crescer em volta de si. Herança do falecido marido. Cômodos altos, arejados, amplos, repletos de móveis coloniais. Quintal espaçoso nos fundos e um belo jardim na frente, onde podia cultivar em paz todas as suas plantas, todas as suas ervas.
Sua filha Lilian queria que ela mudasse para um lugar mais próximo, sem escadas. Sugeriu um apartamento na cidade vizinha, onde ela própria morava, ou que a mãe se mudasse para a casa dela. Até parece que daria um trabalho desses a essa altura da vida… Além do mais, Bete não tinha a menor intenção de se desfazer de suas coisas, nem passava por sua cabeça ter de amontoa-las para caber em um local menor.
Mas ela concordava no quanto os espaços vazios podiam ser opressores. Sentia saudades, principalmente dos netos: Rafael, Renata e Ricardo.
Rafael, o mais velho, era também o que lhe dera mais trabalho. Saúde frágil, desastrado e um tanto azarado. Precisou de muita reza, e algumas simpatias que era melhor Lilian nunca saber. Renata era a do meio. Tão diferente do irmão, carinhosa, solta, sorridente. O mais novo, Ricardo, era seu xodó. Só cinco aninhos, uma belezura, tão esperto. Lilian decidiu ter outro filho quando Rafael saiu de casa para fazer faculdade. Apesar da idade relativamente avançada, teve uma gravidez tranquila e uma criança saudável. Bete também creditava tudo isso aos seus chás, simpatias e orações.
Ela guardava diversas lembranças da época em que os netos eram pequenos. Roupas, brinquedos, desenhos, bilhetes de quando Rafael e Renata ainda eram crianças, além das fotos. Mantinha um baú no próprio quarto com lembranças do tipo, por vezes se perdia no passado, memorando o tempo em que os netos brincavam ali… ou brigavam. Renata teve fases em que adorava pegar os brinquedos do irmão, principalmente as bolinhas de gude. Olhos de gato, dizia a menina, encantada com o brilho e as cores. A avó precisou proibir e esconder as bolinhas durante algum tempo, e naquela tarde foi essa a lembrança que tirou do baú.
Bete sempre achou que seu dom era uma espécie de missão, um chamado divino. Desde nova, se acostumou a ver coisas que ninguém mais via, escutar sons que só ela escutava. Pensou na sorte que teve ao encontrar um companheiro com as mesmas crenças, e no quanto ele lhe fazia falta. No quarto, bem acima da TV, havia um quadro grande com uma foto do dia do casamento. Nela, estava com os cabelos castanhos longos, maquiagem, olhos serenos, magra, sem rugas. Ao seu lado o marido, moreno, alto, cabelos para trás, bigode impecável. A boa lembrança com a qual dormia e acordava, a forma como se via nos sonhos.
O quarto era aconchegante. Cama de mogno entalhada, combinando com a mesa de cabeceira e a estante, espaçosa demais para uma viúva, ela dizia. Colchas, muitas colchas sobrepostas, quentes e fofinhas. Tirou a dentadura e a colocou dentro de um copo com água ao lado dos óculos. Passava das 19h. Provavelmente, pensou, pegaria no sono durante a novela.
O sono de fato veio rápido. Chegou a sonhar que estava cozinhando bolo de carne com a filha. Foi tão vívido que chegou a sentir o cheiro do assado. Despertou com um barulho no andar de cima. Som alto de uma batida na parede ou no chão, alto o suficiente para lhe acordar. Teria sido outro sonho? Ignorou, se virou de lado e quando estava quase dormindo novamente, aconteceu outra vez.
Estava sozinha em casa. Rita, a moça que fazia a limpeza duas vezes na semana, tinha ido embora logo após o almoço. Talvez ela tenha esquecido alguma janela aberta, pensou. Procurou os óculos, tateando o móvel. Se levantou, pegou uma camisola azul que estava pendurada atrás da porta e saiu.
Foi acendendo as luzes por onde passou, primeiro no corredor, depois na sala de entrada. A sala tinha um lustre de cristais, antigo como o resto da casa, brilhante como o sol. Trouxe vida ao ambiente, aos móveis coloniais, estantes cheias de fotos, cristaleira, poltronas, e à escada que levava ao andar superior.
Lilian insistia para que ela não fosse ao andar de cima, evitar as escadas, principalmente quando sozinha em casa. Oras, como se eu fosse uma inútil! Dor nos joelhos, ou nos tornozelos, ou no corpo todo, para Bete eram coisas da idade, mas nem por isso se deixaria proibir de circular pela própria casa. Muito menos importunaria Rita, a coitada já trabalhava demais e não tinha obrigação de correr até lá por conta do que quer que fosse aquele barulho.
Não era de se estranhar que um casarão velho estalasse de vez em quando. Mas Elisabete suspeitava que poderia ser outra coisa, e essa simples suspeita causou um arrepio. Passou a murmurar uma oração enquanto atravessava o cômodo. Teve a impressão de ver, com o canto do olho, uma sombra na sala de jantar. Respirou fundo, apertou as mãos e passou a recitar a oração em volume mais alto.
Um armário baixo de dois metros e meio de comprimento ocupava um dos lados da outra sala, suportando quadros, porcelanas e dois candelabros de prata. Também ali deixava o telefone. Preferia aquele aparelho fixo, barulhento e com números grandes ao tal celular que nunca encontrava quando queria. Uma mesa grande, oito cadeiras, uma fruteira sobre a toalha roxa. Um cheiro adocicado passou por ela, e depois a nauseou. A boca salivou com o cheiro podre que chegara junto ao das frutas. Pareceu vir da cozinha.
Prosseguiu a passos curtos, se apoiando no encosto das cadeiras ao avançar. O zumbido de uma mosca que quase entrou em seu ouvido tirou sua concentração.
— Sai! — disse, interrompendo a oração.
Abanou a mão na frente do rosto e seguiu. Buscou o interruptor na parede, antes mesmo de adentrar.
Click, click, click.
Nada.
Essas lâmpadas de hoje em dia não duram mesmo… O odor pareceu se intensificar. A geladeira. Mais moscas a incomodaram. Abriu a porta, e o fedor a atingiu como um soco na boca do estômago. O olho lacrimejou, a água verteu pela boca. Uma dúzia de ovos, estourados, esverdeados. Queijo cheio de bolor. Leite coalhado. Coisas que Rita trouxera do mercado naquela manhã. Fechou, quase vomitando.
Outro barulho no andar de cima, voltou. Passos firmes, direto até o telefone, mudo. Porcaria. Ligou e desligou algumas vezes, colocando e tirando o aparelho do gancho. Nenhum sinal. Quando se abaixou para conferir o cabo na tomada, outra batida, essa ainda mais forte que as anteriores, e que a fez dar um gritinho de susto.
— Você não tem poder nessa casa! — bradou, antes de começar uma nova oração.
Fazia muito tempo que ela não se deparava com o que costumava chamar de “coisas do além”. Não sabia se era a idade, a falta de percepção, de energia ou de prática, mas havia tido uma relativa paz na última década.
Parou na passagem entre as salas de entrada e a de jantar. A luz vacilou, chamando sua atenção. Não se desviou. Voltou-se decidida para a escada e apoiou uma das mãos no corrimão. Deu o primeiro passo, a madeira rangeu sob seus pés. Deu o segundo passo, murmurando outra reza. O telefone tocou. Ficou na dúvida se era realmente uma chamada ou se a campainha do aparelho estava reagindo à eletricidade instável. Preferiu continuar subindo. Sentiu uma corrente de ar cruzar a sala, teve receio de que fosse outra coisa. Não era só impressão, viu o lustre balançar e ouviu os cristais tilintando. Bete tinha a certeza de que a janela do seu quarto estava fechada, assim como todas as janelas pelas quais passara até aquele momento. A porta do seu quarto bateu, o ruído que vinha da TV desapareceu. As batidas do próprio coração ressoavam no ouvido.
Chegou ao topo da escada. Tinha um quarto à direita e um corredor à esquerda, com mais quatro cômodos. Entrou no da direita, o mais próximo. Era o quarto onde Lilian e o marido ficavam quando a visitavam.
Acendeu a luz. A janela estava fechada, as cortinas abertas, a cama arrumada, uma escrivaninha ao lado da porta da entrada. Uma das paredes era inteiramente ocupada por uma estante, essa tomada por livros, exceto em um espaço no meio onde havia um antigo rádio de dial. O aparelho era retangular, com dois botões redondos em lados opostos na parte de baixo, um para ligar e aumentar o volume, outro para sintonia. Outra vez o barulho de batida, parecendo vir do fim do corredor.
Bete se virou e se preparava para sair do quarto quando algo a interrompeu. Um baque bem atrás dela, uma batida seca no chão do quarto onde estava. Olhou para trás e, para sua surpresa, um livro havia caído da estante. Sem nenhuma explicação. Por um instante, pensou ter sentido o cheiro da colônia do marido. Foi até o livro e o pegou. Clavicula Salomonis, outro arrepio percorreu o seu corpo.
Mal teve tempo de se recompor, seu coração disparou com um susto que levou ao ouvir um grito rouco em meio a um chiado. O aparelho de rádio havia ligado sozinho bem ao lado dela tocando uma propaganda de refrigerante. Girou o botão até ouvir o estalo significando que o aparelho desligara. Para garantir que não teria outro susto, puxou o fio da tomada.
Não queria admitir para si mesma, mas estava com medo. Ela sabia o quanto aquelas coisas do além se alimentavam do medo, o quanto ele dava poder a elas. Respirou fundo e colocou o livro sobre a escrivaninha. Abriu a gaveta, procurando o que sempre pedia para Rita deixar em cada cômodo, uma vela e uma caixa de fósforos. Sentiu novamente uma corrente de ar passando por si, um ar frio demais para aquela época do ano.
A porta do fim do corredor bateu com violência, reverberando por toda a casa.
Ela teve dificuldades para abrir a caixa de fósforos, as mãos e os dedos trêmulos, pegou dois palitos de uma vez.
Outra batida de porta.
Riscou, uma, duas vezes. Passou a chama para a vela que havia deixado deitada sobre a escrivaninha. Pingou duas gotas de cera na mesa e grudou a base da vela ali.
Uma terceira porta bateu com força. Cada vez mais perto.
Abriu o livro no meio e começou a folhear as páginas.
A última porta do corredor bateu, fazendo tudo no quarto tremer, incluindo a escrivaninha e as pernas de Bete. A lâmpada do quarto esmaeceu, piscou algumas vezes e então se apagou. Respirou fundo. Viu a porta do quarto onde estava balançar, se mover bem devagar, rangendo. Sentia a presença maligna como uma dor aguda nos ossos.
— Você não tem poder nessa casa! — repetiu para o nada.
Sua mão se apoiou em uma das páginas. Começou a ler o encanto que havia ali, mesmo sem se lembrar de seu conteúdo. Estava em transe, repetindo as palavras em latim diversas vezes em voz alta, o vento gelado lutando contra a chama bruxuleante que projetava sombras disformes no chão e nas paredes. Até que parou de balançar.
Silêncio.
Da mesma forma como surgira, o ar frio havia desaparecido, a luz do quarto havia voltado, nenhum som de batidas, não sentia mais nenhuma dor, nenhuma presença estranha. Apenas resfolegava, como se o corpo tivesse feito um grande esforço. Soprou a vela e depois guardou o livro no lugar de onde caíra. Apagou a luz e saiu.
Quando chegou na escada, viu no final dela uma das bonecas da neta, daquelas que guardava no baú de lembranças. Estava como que sentada no chão da sala, bem em frente ao último degrau, olhando para quem fosse descer. Bete procurou algum sinal daquela presença maligna ao seu redor. Tudo parecia normal. Foi descendo devagar. Um pé depois do outro, se apoiando no corrimão.
O olho estava atento na boneca, mas nem nos melhores dias da juventude, nem quando ainda tinha os dois olhos, teria percebido a bolinha de gude deixada em um dos degraus. Precisamente posicionada, como que prevendo onde ela iria pisar. Como uma armadilha. O pé escorregou e foi para frente, impulsionando toda a perna para frente, o que levou o corpo a se desequilibrar. Mesmo se apoiando no corrimão não teve forças para segurar e evitar a queda.
Há quem diga que os últimos momentos parecem ocorrer em câmera lenta, que a vida toda passa diante dos olhos em retrospectiva. Mas para Bete, tudo aconteceu muito rápido. Não teve tempo de pensar, rezar ou se despedir. Apenas a sensação de queda, a mesma sensação que sentiu no cochilo da tarde, e as batidas do corpo nos degraus ressoando alto enquanto rolava dois terços da escada para baixo, quebrando costelas e o pescoço no caminho.
Foi encontrada por Rita apenas três dias depois.
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