A Coisa Podre

Schleiden Nunes

Havia alguma coisa podre aqui em casa. Dava para perceber; só não sabíamos o quê.

    Há dois dias eu praticamente não me levantava da cadeira, e há alguns anos eu passava minha vida mais à frente do computador do que “aqui” de fato. Minha geração há de me entender. O porquê.

Não me acho errado, não me acho certo. Só tem sido assim e ponto final. Às vezes, sinto que tenho mais seguido rastros de notícias que nunca se acabam, lendo chamadas de matérias que nunca me satisfazem… mas a verdade é que a insônia não ajuda. Sabe-se bem que estar insone é vangloria só até os vinte. Depois disso, significa contas e boletos para pagar.

Causa ou consequência, já não mais importa porque, entre dias e noites que pareciam todos iguais, algo exigiu minha maior atenção: o primeiro grito de minha mãe.

Apavorado, saltei da cadeira e corri até a cozinha, na maior apreensão – que foi alívio e que foi decepção. A barata, minúscula, que planejava circundar a geladeira, era mais merecedora de pena do que a minha mãe. Indefesa, inocente, em busca talvez dos seus primeiros ciscos, migalhas, de comida… me deu um estalo: teria, ela também gritado, a seu modo, embora igual à minha mãe, para que seus parentes viessem a socorrê-la?

Em uma subida de sobrancelhas, afastei os maus pensamentos, infaustos, e, em seguida, fiz-lhe conhecer as ranhuras da sola de minhas chinelas. Depois, levei ambas para fora – as chinelas, para lavar; e os restos mortais para a privada, para ocultar os vestígios do assassinato e assim evitar eventuais procedimentos investigativos. Longe de nós os seus parentes quererem se vingar – o que, curiosamente, pareceu ter mesmo acontecido.

Deve haver sujeira em todo lugar, e me pergunto como é que, tão imediatamente, eles surgem e nos atacam, como se tivessem algum tipo de sensor, teletransportador, que os enviam para onde houver algum resto de comida, tão rapidamente assim, como se sempre estivessem ali, só que escondidos, só aguardando o momento de nos invadir. 

O surgimento de insetos diversos, e não apenas de pequenas baratas, correu proporcionalmente ao avanço do meu cansaço. Minhas pernas adormeciam, mais constantemente que o de costume, os olhos já quase não mais me obedeciam, e, em certos momentos, a sensação era de hibernação. Cochilos e sangue frio. Insônia e mais insônia a ponto de perder a razão, imerso, iluminado, no escuro do meu quarto pelo computador e seu cone de luz azul.

Também por isto, deixei minha mãe à revelia. Houve a vez em que surgiram larvas de mosquito na borda do lixo, que ela havia posto no mesmo dia, e que, por isto mesmo, foi muitíssimo estranho. Insetos, vermes, extemporâneos, inauditos, como se saídos de portais ultradimensionais. A frequência era tanta que minha mãe já não gritava – só resolvia. Porque era mais prático e porque eu já não a acudia. Mesmo eventuais mosquitos que pousavam em meu dedo, enquanto rolava o ponteiro central do mouse, eu simplesmente assoprava ou afastava para qualquer outro lugar.

Com o passar dos dias, das semanas, sair do quarto ficou mais custoso, ficou mais danoso. Uma fraqueza incomensurável que se apoderava de mim, de modo que nem pude acompanhar a minha mãe na sessão de dedetização. Valei-me deus! Que dia difícil! Um dos mais difíceis de todos. O odor dos produtos antipestosos eram de uma sensibilidade! e invadiam minhas narinas, minha pele, de uma forma inédita, como se pele não existisse, como se todo o meu corpo fosse um vale desossado, aberto; um ventilador só que ao contrário, que puxava, sugava, para dentro das minhas tripas, o veneno que evaporava no chão e nos bueiros lá de fora.

Neste dia, passei acamado, e minhas forças tão somente davam conta de uma rede social e da passagem automática entre uma página e outra de publis.

Por poucos dias, adiantou. E um fenômeno estranho, novo, foi revelado, percebido, pois todos os sentimentos lá do início agora se davam de modo contrário. Aprisionado, praticamente, em meu quarto, tomou-me uma ânsia, um asco, desse estado apavorador em que há tanto tempo nos encontrávamos.

Odiava o mundo, a casa, tudo, e nada mais me parecia interessante senão ficar ali: quentinho, sentado, acompanhando e vasculhando os perfis de meus amigos; de certa forma, não deixando que todo o resto atrapalhasse minha constante atualização – ah, a Bruna fez mais um desabafo, e o Artur, agora, tira as selfies sem camisa, delícia! 

Já minha mãe, acostumara-se; e eu a ouvia quatro, cinco vezes ao dia, a bater chinelas, a quebrar vassouras, a jogar bolotas de naftalina de um lado a outro. Acertava-as na cabeça de algum inseto, e depois quicavam até o balcão da pia ou até cair no porão.

Contudo, agora, a cada vez que eu as ouvia… Ah, que sofrimento! Não sei por que isso acontecia. Estava sensível, a tudo atento. Não era fácil estar assim, antenado a tudo que acontece. Pôde ser isto. O mundo gira, não para. Acontecimentos surgem de modo instantâneo, em todos os lugares, exigindo nossa atenção. Como se, de alguma maneira, quisessem de nós um tipo de sensor; e, para estar em dia, devêssemos nos teletransportar para todo lugar em que há notícias, como se sempre estivéssemos ali, mas escondidos, só aguardando o momento certo para curti-los.

Isso explicaria – cri naquele momento – a sensibilidade que tomou-me conta a cada novo creque das chinelas de mamãe. Eu sofria junto. Acostumei-me a este insólito cosmopolitismo. Eu estava ali, mas, ao mesmo tempo, ressentia cada cheiro e movimento lá de fora também. Ouvia o mundo, sabia tudo, e via a mim mesmo escurecendo a cada foto feliz ou post de sofrimento.

Uma vespinha cruzou à minha frente, e enfureci-me, pois, por que estava ali? Não lhe vi cor. Meus olhos, os dois, eram cem telas hexagonais do DOS, onde subiam e desciam frases, códigos, incessantes, em ritmo constante, sobre um fundo preto embaixo do qual se escondiam vírus de computador.

O último creque que ouvi, desde a cozinha de mamãe, fez-me irromper do estado letárgico em que há meses me encasulei, e decidido a dar um fim àquilo, fui enérgico, e veloz, embora furtivo em seu favor. 

Nos cantinhos das paredes me apoiei, criei chão, deslizei, e, apontando no portal, prontamente exclamei para que parasse. Que parasse! Que prrsse! Qprsss… Rssss…

Ao meu rangido, o grito de minha mãe foi tão pior que àquele, àquele primeiro grito, antes de todo o acontecer. Ver-me causou-lhe um pavor, um desfalecer, súbito envelhecimento. Para meus olhos ainda cansados, ressequidos, desfocados, dezenas de “mamães”, de boca aberta, mãos no rosto, compreendiam – e me faziam compreender, finalmente – que todos os vermes e insetos entravam e saíam justamente de mim. 

Pelo reflexo das fincas de um garfo vislumbrei o horror de minhas patas, peludas, que, incontrolavelmente, autômatas aos meus comandos continuavam a tecer milhões de webs.

A vassouradas, voltei ao quarto, e, humilhantemente, posso dizer que eu, ali, tentando circundar a geladeira, era mais merecedor de pena do que a minha mãe. Em uma subida de sobrancelhas, ela pareceu afastar os bons pensamentos, infaustos, e, em seguida, fez-me conhecer as ranhuras da sola de suas chinelas velhas. 

Neste momento, exilado, sobrevivo apertado, escondido, entre os vãos do teclado do computador. Sigo rastros de notícias; como ciscos de curtidinhas. Não é fácil digitar com esses dedos serrilhados. 

Que minha mãe tenha deixado os vestígios do ataque. Queira deus que meus parentes venham se vingar, pois

a coisa podre sou eu.

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Uma resposta para “A Coisa Podre”.

  1. Excelente! Uma ótima construção que lembra mesmo A metamorfose do Kafka e também o filme A mosca. Um conto realmente fantástico e com um desfecho bem interessante pelo que sugere.

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