Bruno Lucio Rosa
– Eu vou morrer… – Diz a moça em suas roupas íntimas.
– Talvez… seu futuro estará nas mãos de Deus, confie Nele. Ele limpou o mundo dos pecados com a água, você também será limpa e depois verá a Glória do Senhor.
O rio pareceu se agitar, ansioso pelo sacrifício que pularia nele.
A jovem se protegia como podia com os braços, mesmo estando só entre mulheres, ela sentia vergonha. Sangue escorria de onde as pedras a haviam acertado e um hematoma feio marcava o rosto que outros achavam bonito. O dia nublado e frio combinava com a tristeza do que ia acontecer.
– Vocês não têm piedade? – A moça pergunta.
– Estamos sendo piedosas, estamos lhe oferecendo uma chance de se limpar de seus pecados. Assim como Cristo foi batizado em um rio por João Batista, dando início à uma nova vida, nós rezaremos para que você também encontre uma nova vida nesse rio. – Ester respondeu mais uma vez com um sorriso no rosto.
As palavras de Ester, a irmã mais velha da Associação de Boas Moças de Nova Jumará, são seguidas por sussurros de “Amém” e “Gloria ao Senhor”. Eu não consigo…
– Eu não consigo…
– Irmãs! – Ester diz às oito garotas à sua volta. – Fechemos os olhos e oremos com todo nosso fervor. Que Deus ilumine a alma dessa pobre ovelha perdida e permita que ela tenha a coragem que precisa.
Mas Ada não fechou. Ela viu que foi Ester quem empurrou a moça da pedra para a queda no rio.
Ainda naquele dia, tarde da noite, Ester está reunida com as oito mulheres que participaram da libertação da moça jogada no rio. Elas têm as longas saias levantadas, deixando os joelhos expostos aos ferimentos que o cascalho lhes causa por apoiarem o peso. Algumas irmãs choram baixinho, outras sussurram suas orações, há ainda aquelas que sofrem em silêncio. São garotas entre doze e vinte e quatro anos, são a juventude feminina da cidade, só Ester tem mais de quarenta.
– Aguentem firme, irmãs. – Ester fala de sua posição à frente das outras moças. – A dor que sentimos é a dor da libertação que precisamos por termos feito mal à uma ovelha desgarrada. Nosso trabalho é árduo e não podemos nos isentar dos pecados que cometemos. Nós guiamos uma irmã à Luz do Senhor, sim, mas partilhemos de sua dor. Não podemos mostrar nenhum prazer ou orgulho de nossos atos.
Duas horas se passaram até que Ester se desse por satisfeita com o suplício. Ela se levanta com alguma agilidade apesar dos ferimentos e do sobrepeso, em um gesto de humildade e servidão, limpa e trata as feridas em suas irmãs.
É perto da meia noite, todas estão cansadas e com sono, mas Ester as incentiva a permanecer em vigília, para guiar a alma dos que estão em provação.
Ela se recolhe em seu escritório no segundo andar da Associação para organizar a burocracia e logo ouve uma batida leve em sua porta.
– Pode entrar. – Ela diz de sua mesa.
Ada entra timidamente, reparando na sobriedade do cômodo, apenas uma escrivaninha com suas cadeiras de madeira e um armário. Ao fundo, uma imagem de Cristo crucificado.
– Irmã…posso lhe falar um momento?
– É claro, Ada. Por favor venha até aqui, sente-se. Só preciso ver um dado.
Ada se senta enquanto Ester verifica os papéis um momento antes de os guardar.
– Pois não, irmã? Em que posso lhe ser útil?
– Eu queria… eu queria lhe contar…me confessar talvez…
– Claro irmã, serei toda ouvidos. Eu sei que esse deveria ser o ofício de um padre, mas nossa pequena comunidade nem mesmo isso tem, então farei o que estiver ao meu alcance para lhe orientar.
– Hoje…enquanto estávamos…no rio…
– Sim, irmã?
– Você falou…mas…mas eu não fechei os olhos…
– Entendo.
– Eu… eu queria entender.
– Veja irmã, eu sei que aquilo pode ter lhe assustado. É normal que haja dúvida em tomar uma atitude tão firme, parece ser drástico demais. Só quero que você saiba que, às vezes, somos instrumentos de algo maior, a Graça do Senhor muitas vezes só é alcançada assim. Precisamos seguir em frente com a certeza de cuidar de nossa comunidade para que nenhuma degeneração do inimigo nos alcance.
– Mas…ela pediu por piedade…eu estava pensando…
– Sim?
– Estava pensando se…haveria outra maneira… ela era tão jovem… assim como eu.
– Você a achava bonita?
– Não sei… acho que… sim?
– Entendo.
Ester se levanta com um suspiro, dá a volta na mesa e vai até a porta, trancando-a com a chave. Ada treme levemente apesar do calor.
Ester fecha a janela lateral de seu escritório, enquanto volta ao seu lado da mesa, ela abre uma gaveta e tira duas tiras de couro com presilhas.
– Ada… irmã. Preciso que você confie em mim agora.
– O quê você vai fazer? – Ada tem seus olhos marejados, o medo a faz suar.
– Muitas vezes, o inimigo é sutil em seus atos, nos tentando, testando a firmeza de nossa fé. Eu quero que saiba… – É a vez de Ester conter sua tristeza, ela morde o lábio inferior. – Vou fazer tudo para que sua alma seja salva.
Lágrimas escorrem em silêncio pelo rosto de Ada.
– Por favor, irmã. – As palavras de Ester são doces quando ela se aproxima. – Coloque os braços no repouso da cadeira.
Ada hesita e Ester posiciona um de seus braços na posição correta, em seguida passa com firmeza uma tira de couro, prendendo-a.
– Irmã… – Pede Ada. – Está muito apertado.
Ester leva o dedo entre os lábios, pedindo silêncio, seus olhos agora mostram firmeza. Ela posiciona o outro braço e o prende com a segunda tira.
– Irmã. – A voz de Ester é dura, ela senta na mesa de frente à Ada. – Me conte, por que levamos aquela ovelha perdida até o rio?
– Ela… ela usava roupas inadequadas… Despertava o desejo nos homens daqui… isso é errado… a mulher…
– Sim, irmã?
– A mulher é o pecado que desvia o caminho dos homens. Desvia a pureza dos corações da imagem de Deus.
– Isso. Muito bem. – Ester sorri, mas sua voz continua firme. – Me conte, qual era o nome daquela libertina?
– Renata… Renata Almidorim…
– Sim, isso mesmo. Vocês passaram um tempo juntas, não é mesmo irmã?
– Sim… eu pensei… pensei que eu podia guiar ela… ensinar à ela o que você me ensinou irmã. Nós duas viemos de outras comunidades. Achei que ela só precisava de orientação.
Ester se levanta, acenando pensativa, ela vai até o seu armário e pega um pequeno saco preto, algo de metal faz barulho enquanto ela o deposita na mesa.
– Irmã. – Ester olha com rigidez para Ada. – Você sentia desejo por essa Renata?
A pergunta confunde Ada, que continua a chorar. Sem entender, ela mantém o silêncio.
– Você gostaria… – Ester faz o sinal da cruz antes de continuar. – De tocar a pele dela? De sentir o corpo dela?
– Não, irmã. Nunca.
A aversão no rosto de Ada parece convencer Ester que solta um suspiro de alívio.
– Que bom irmã, isso é tudo que que mais quero acreditar. – Ester diz com alguma doçura. – Veja, o desejo e o prazer são os maiores inimigos de Deus. Eles são sutis, ardilosos em nos desviar do caminho de luz que é o amor de Deus.
Acenando com a cabeça, Ada concorda esperançosa.
– Mas… – Ester desembrulha o pacote sobre a mesa, objetos pontudos e cortantes se espalham na superfície. – Eu preciso saber se o que você diz não é uma mentira.
Ada volta a chorar, soluçando agora.
– Não irmã, Ester… por favor… eu nunca senti desejo… nunca…
– Calma, calma. – Ester alisa os cabelos de Ada e enxuga uma de suas lágrimas com a mão. – Vou te contar um segredo: uma vez veio um homem que se dizia padre aqui, é verdade. Ele falava a Palavra e tentou nos enganar, mas eu fui mais esperta, mas inteligente que o inimigo. Ele se revelou para mim, porque eu sei fazer que me mostrem a verdade.
– Por favor…eu faço qualquer coisa…
– É simples, deixa eu explicar…
Com uma das pequenas facas, ela rasga a camisa de Ada, mostrando a pele entre os seios, inconscientemente, a língua umedece o lábio inferior.
– O padre…ele não conseguiu resistir ao desejo. Eu vou fazer algumas coisas…vou ficar atenta se você vai mostrar algum prazer. Se você for pura, como eu quero acreditar, nada vai acontecer.
– E se eu falhar? – O choro de Ada é incontrolável.
Ester fecha os olhos. Uma lágrima escorre em seu rosto enquanto ela pensa na resposta.
– Vamos precisar tirar esse desejo nojento, blasfemo de seu corpo. A dor…a dor vai guiar sua alma para a Luz novamente. Assim como foi com Cristo, assim como foi com a alma perdida da Renata hoje a tarde.
Alguém tenta abrir a porta e interrompe Ester.
– Quem é? – Ester pergunta irritada.
A resposta é um machado rompendo o trinco e escancarando a porta. Renata aparece com roupas masculinas, completamente sujas de sangue.
– Renata! – Ester diz admirada. – Você sobreviveu, pela graça de Deus. Veio iniciar uma nova vida no caminho do Senhor?
– Vim. – Renata responde com fúria – Vim enfiar o machado na sua cara, vaca maldita, assim como fiz com suas cordeirinhas lá embaixo.
Os homens da cidade não acreditaram na cena apocalíptica que encontraram no dia seguinte. Não bastando os corpos mortos no térreo, uma das moças da Associação estava amarrada, em estado de choque. Ela alegava que o corpo despedaçado à sua frente pertencia à irmã Ester, porém estava irreconhecível. Uma família relatou ter oferecido ajuda a uma moça que parecia ter caído no rio, mas não sabiam dizer seu paradeiro.
O incidente marcou Nova Jumará, mas não foi o fim da Associação.
Depois que os gritos pararam, uma das moças se aproximou da irmã mais velha.
– Precisa ser assim? – A moça pergunta.
– Sim. – Responde a irmã Ada. – Precisamos usar sempre o fogo.
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