Fernando Fiorin
“Deus, me dê forças, eu não quero morrer.”
Ângela sentia o coração batendo forte no peito, as veias saltando com o esforço e o sangue correndo quente pelo seu corpo, conforme fazia um esforço sobre-humano para seguir em frente.
O neném no seu colo berrava a plenos pulmões, protestando contra as chacoalhadas que recebia a cada passo que sua mãe dava de maneira precipitada para longe dos uivos malignos e cada vez mais próximos, que pareciam seguir atrás da mulher desesperada e sua cria.
Os gritos da criança se projetavam para a noite escura e a mulher desesperada conseguia ver a própria respiração se condensar no ar noturno frio e úmido, conforme a lua cheia e gibosa iluminava o caminho a sua volta, de vez em quando lhe pregando peças fazendo parecer que vultos corriam a sua volta dentre as árvores frondosas que se erguiam na estrada de terra que levava até o sítio em que vivia.
Maldita hora que aceitara visitar a irmã que vivia no sitio ao lado, principalmente sabendo que não teria como voltar antes do anoitecer.
Mas Claudia não andava bem nos últimos dias, depois que o galinheiro fora atacado por alguma onça ou raposa, e o bicho matara todas as aves da propriedade. Por algum motivo Ângela se lembrou dos velhos conselhos da avó Berta, que sempre dizia que se os animais apareciam mortos daquele jeito, todos deviam se recolher em casa em noites de lua como aquela.
A avó sabia de muitas coisas, mas tanto Ângela quanto Claudia foram criadas para não darem bola para aquele tipo de crendice ou superstição.
E agora ela estava naquela situação, tentando manter a manta laranja do seu filho firme em volta do seu corpinho, enquanto tentava seguir cada vez mais rápido para longe daquele som infernal que parecia emanar da própria garganta do diabo.
Os cães das propriedades vizinhas uivavam junto, aumentando a cacofonia e encorajando a fera que parecia seguir cada vez mais e mais perto da jovem mãe e do seu neném.
O cunhado de Ângela tentara a dissuadir de voltar para casa, lhe alertara do perigo de caminhar durante o crepúsculo e da noite vindoura, até mesmo mencionara a lua cheia e os seus perigos, algo que divertiu a moça e a sua irmã mais velha.
Ambas caçoaram de Tadeu que pareceu ficar magoado com aquilo e acabou dando de ombros quando Ângela insistiu. Pior que as últimas palavras do cunhado seguiam Ângela como uma sina, um alerta que agora ela percebia fora mais do que benvindo e ela desdenhou de maneira infantil e tola.
“Se eu fosse você eu não iria, nunca se sabe dos perigos que rondam essas terras em noite de lua cheia, mas quem sou eu para saber de alguma coisa? Depois não vem dizer que não te avisei.”
Maldita hora que fora desfazer do Tadeu.
Ao longe, entre um berro e outro da criança, a jovem percebeu que algo arranhava as árvores, passos que mais pareciam com algo meio que se arrastando e meio que galopando vinham em seu encontro.
Os pelos da nuca de Ângela estavam arrepiados, a boca estava seca e a respiração saia quente como se dentro dela existisse um vulcão, pronto para explodir. Ela não ia aguentar mais aquele ritmo, sentia que a qualquer momento iria desabar prostrada e indefesa.
Começou a olhar em volta em busca de abrigo, um lugar para se esconder até o perigo passar. Só havia as velhas árvores que a jovem conhecia, desde os tempos de criança, quando precisava fazer todo aquele caminho até a escola que ficava no maior distrito da região.
Talvez subir numa árvore fosse a única solução, se bem que se fosse uma raposa ou uma onça o bicho poderia subir atrás.
Mas raposa não uivava daquele jeito, onça muito menos.
De repente as histórias da avó Berta vieram novamente em sua mente, as histórias sobre coisas que se arrastavam na noite, peludas, malfazejas, vorazes e famintas por carne humana, especialmente de crianças pequenas e bebês.
A velha contara sobre o dia que o filho dos Matarazzo ficou sozinho em casa e um bicho entrou pela janela e comeu a sua cara. Ou da vez que a filha pequena dos Bozano entrou na mata e desapareceu. O corpinho foi encontrado apenas duas semanas depois, com várias partes faltando.
Ângela quando pequena morria de medo das histórias, mas adorava ouvi-las. Depois de adulta calculou que tudo aquilo era para amedrontar ela e a irmã para que ambas não ficassem perambulando na mata em volta das propriedades quando ainda eram novas.
Mas e se a velha avó tivesse razão?
E se existisse mesmo algo que rondasse a região e causasse mal às pessoas?
Mas a avó também alertara como era possível se defender de tais bestas, sendo a principal sempre ter algo de prata em sua posse.
Prata.
Prata.
Sim, Ângela tinha um objeto de prata, o crucifixo que ganhara da irmã quando se casara, um presente que a própria irmã recebera da avó Berta quando esta, por sua vez, havia se casado com Tadeu.
A jovem nunca entendera porque a irmã quisera se desfazer de presente tão valioso, mas Claudia apenas comentara que o marido achava a cruz de mau-gosto. Agora, pelo menos, ela poderia agradecer ao cunhado pela sugestão à sua irmã.
Levando a mão ao peito, pegou o pequeno objeto de prata e o puxou com força, arrebentando o cordão de aço em que o crucifixo estava preso.
Se virando a tempo, viu das sombras algo que se arrastava para cada vez mais perto. A criatura, fosse o que fosse aquilo, parecia engatinhar sobre os joelhos e os cotovelos, quase que tentando galopar sobre os mesmos, enquanto vinha rápido na direção de Ângela e do seu filho de colo.
Seus olhos eram animalescos, negros, brilhavam na noite. Sua boca era cruel e cheia de dentes afiados e compridos. Sua face era distorcida, cabeluda, a barba parecia se enrolar com o cabelo, mal dava para saber se era uma pessoa ou um bicho.
Ângela tentou lembrar-se de alguma oração para espantar o mal, mas não veio uma que viesse à sua cabeça.
Levantou o crucifixo e mais berrou do que falou, a maior parte das palavras incongruentes e indecifráveis, mas algumas eram inteligíveis no meio de todo aquele desespero.
– Saia! Vá de retro satanás!
O brilho da prata fez a criatura titubear e protestar, seus olhos se tornando ainda mais insanos e sua face ainda mais contorcida conforme tentava flanquear a jovem por algum lado em que a joia não a protegesse. Por fim avançou, causando um susto que fez Ângela cair para trás e soltar a criança.
A fera atacou o pequeno, mas acabou acertando mais manta do que carne. Conforme a criança berrava já rouca de tanto gritar, a criatura parecia mais estimulada, rasgando ainda mais a pequena coberta laranja que envolvia o seu apetitoso alvo.
Desesperada, Ângela se levantou e pulou sobre a criatura, mal se lembrando de que ainda segurava o crucifixo.
A sua mão que segurava a joia tocou a pata da frente da criatura, o que fez com a carne onde a pequena cruz tocava soltasse um chiado de queimadura e fumaça em abundância, conforme uma úlcera se abria e ficava cada vez mais profunda e purulenta.
A criatura berrou de ódio, soltou a criança e voltou se arrastando sobre os joelhos e os cotovelos para o fundo da mata.
Aliviada, a jovem gritou algo que se lembrou de que avó dizia que devia ser gritado em situações como aquela, quando se era atacado por criaturas estranhas em noites de lua cheia.
– Amanhã você vai vir em casa me pedir uma colher de sal!
Mal gritara a frase, se arrependera.
E se a criatura fosse mesmo? O que poderia fazer a respeito? Mas agora ela precisava aproveitar o momento, a oportunidade para fugir daquele mal iminente e próximo.
Tomando um grande fôlego, pegou o filho que ainda estava no chão, deixou pra trás a manta laranja toda rasgada e correu sabendo que as suas vidas dependiam disso, ignorando o protesto do coração e dos pulmões, do corpo que ainda ameaçava desabar estafado.
Quando alcançou o sítio sentiu uma alegria que nunca imaginaria existir, uma felicidade que se misturava com angústia e impotência, com desespero e alívio.
Trancou a porta, as janelas, acendeu uma vela para a imagem de Nossa Senhora e rezou o resto da noite, mal pregando os olhos até ouvir o primeiro galo cantar, dormiu um sono solto, a criança junto, agora apagada de tanto chorar e tão exausta quanto a mãe.
Acordou com o sol alto, entrando pelas frestas da casa de madeira, e com as batidas fortes na porta da frente, seguidas da voz do cunhado.
– Ângela? Você tá aí? Tá tudo bem? Ângela?
– Já vou, Tadeu, me dá um minuto.
Olhou-se no espelho e viu que estava num estado péssimo, passou uma escova no cabelo do melhor jeito que deu e percebeu nesse momento que nem trocara de roupa, dormindo com a que usara no dia anterior.
Trocara rapidamente de vestido, jogara uma água na cara e fora até a porta.
O cunhado a esperava do lado de fora, olhar preocupado, numa cara de quem pouco dormira na noite anterior também. O seu braço esquerdo estava enfaixado, como se tivesse se ferido com alguma coisa. Quando percebeu a cunhada olhando para o curativo, deu de ombros como se aquilo não fosse nada.
– Você tá bem Ângela?
– Tô sim, Tadeu, aconteceu alguma coisa?
– Não, mas sua irmã ficou preocupada. A gente ouviu uma barulheira estranha ontem à noite, os cachorros estavam ouriçados e os bichos inquietos. Você tá com cara de quem não dormiu, tá tudo bem mesmo?
– Eu não vou mentir, Tadeu, ontem foi muito estranho mesmo. Mas se eu te contar acho que você não vai acreditar. Mas bem que você me avisou para não ir embora. Maldita hora que não te escutei.
– Eu te falei, filha, tem que ouvir os parentes.
– Eu vou passar um café, você quer?
– Eu quero sim, mas já ia me esquecendo, a Claudia me pediu para ver se você tem um pouco de sal para nos dar, acho que estamos sem. Você pode me dar uma colher emprestada?
Ângela ficou muito séria e fez sim com a cabeça.
Enquanto olhava o cunhado entrando em sua casa, não sabia o que a deixava mais perturbada, se era o pedido inusitado ou se as recordações que brotavam com força da noite anterior.
Ou do sorriso estranho que Tadeu lhe deu quando entrou em sua casa.
Com vários fiapos de cor laranja presos em seus dentes.
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