A Mulher com o Cajado

Amanda Kraft

Ela jamais confirmava. Ria e dizia que eu deveria ser escritor, pois meu sonho era maluco demais. Que se passasse por algo como eu descrevia, enlouqueceria. Com o tempo pediu-me para não mais falar sobre ele. Os sonhos deveriam ser esquecidos. Não passavam de “peças pregadas” por nossas mentes. Ela está feliz. Não sei se finge. O fato de todos terem se esquecido dele me diz que ela provavelmente não está mentindo. Às vezes eu mesmo duvido se realmente vivi tudo aquilo. Confesso que está cada vez mais difícil lembrar-me de todos os fatos. Talvez eu realmente deva pôr no papel aqueles momentos, em uma tentativa de exorcizar essas cenas que me confundem e amedrontam. 

Estávamos fazendo trilha, testando a moto nova do Saulo. Ele seguia à frente. Eu vinha em sua cola, porém um pouco mais devagar, trazendo a Guta na garupa, quando um vento gélido nos açoitou. Olhei para cima e o tempo continuava firme no azul ensolarado. Buzinei para ele, pois uma sensação estranha me assolou. Saulo parou à minha frente, a contragosto, logo que passamos por um mata-burro. Senti um solavanco na moto e o grito de Guta quase me ensurdeceu quando ela pensou que fosse cair. Foi aí que percebemos que a paisagem verde mudou drasticamente. A estrada de terra tornou-se esburacada e as árvores jaziam desfolhadas e enegrecidas à nossa volta. O sol perdera a força, deixando quase tudo cinza, sem vida. Ao longe havia uma torre soltando uma fumaça densa e preta. Talvez fosse ela a culpada de o lugar estar coberto de fuligem.

Guta pulou da moto e Saulo, assustado, veio até nós, questionando o que acabara de acontecer. Estávamos transtornados. Era-nos impossível prosseguir com as motos. Deixamo-las encostadas em um tronco forte e olhamos ao redor. Só havia um caminho a seguir. Ficamos bem próximos uns dos outros, em silêncio, enquanto seguíamos contornando os buracos do que parecia ter sido uma estrada algum dia.

Seguimos em direção à torre na esperança de encontrar alguém que nos dissesse que lugar estranho era aquele e como viemos parar ali. Esse fato estava bem claro em nossa mente. Caminhamos lentamente, sentindo-nos oprimidos, circundando os buracos do caminho. A Guta, um tanto tagarela, estava calada. Assim que chegamos ao que parecia ser a entrada de uma cidade, avistamos um velho maltrapilho. Trazia um sobretudo roto e longo no corpo, que um dia, muito distante, fora azul turquesa. Estava de costas para nós, porém, quando nos pressentiu, virou o suficiente para vermos seu perfil. “Vão embora” disse ele, fazendo-nos estacar assustados. Ele se afastou e, embora temerosos, resolvemos continuar nossa busca.

Avistamos casas nas ruas sujas. Pareciam ter sido abandonadas há tempos. Pensamo-las desabitadas. Não deveria viver ninguém naquele lugar. Não naquelas condições onde a fuligem negra caía do céu sem parar, maculando o lugar. Mas estávamos enganados. Foi a Guta que viu olhos a nos observar das janelas imundas. Agarrei sua mão quando ela soltou um gritinho assustado. O medo nos envolveu. Saulo seguia à frente e quando decidi, num ímpeto, voltar pelo mesmo caminho, uma sirene se pôs a tocar de forma estridente e ensurdecedora. Olhamo-nos em pânico. Ouvimos risadas por detrás das portas. Algo estava prestes a acontecer. Sentíamos em todos os nossos poros. 

Guta gritou, levando a mão aos ouvidos. Saulo me encarou com olhos arregalados, esperando que eu nos salvasse. Mas do quê? De quem? Assim que esse pensamento assomou minha mente, ouvimos um tropel alto vindo próximo de onde estávamos.

Tínhamos que sair dali. Peguei a mão de Guta e disse para meu amigo correr. As portas das casas abriram e vimos pessoas saindo delas. Pareciam-se com o mendigo que encontramos na entrada. Suas roupas também eram rotas, mas o que mais nos aterrorizou foi observar que eles eram excessivamente brancos. Cheguei a pensar, em um átimo, que a fuligem que cobria o sol era a culpada por serem assim. 

Guta berrou ao ver alguns homens se aproximarem de nós, nos cercando. Eles riam. Mas não foi isso que nos chocou e sim seus olhos. Eram negros. Totalmente negros como olhos de demônios. A fuligem pareceu aumentar, satisfeitas com nossa sina. O tropel cresceu e homens, armados de foices e facas, vinham em nossa direção.

Viramos e corrermos por ruas à procura de um esconderijo, mas não havia nada. As casas onde não havia pessoas nos encarando, felizes, traziam as portas fechadas. Outras não passavam de construções deterioradas, com paredes tombadas, sem a mínima condição de nos esconder.  

Corríamos, porém eles não tinham pressa. Vinham no tropel de botas duras batendo ritmadas no chão compactado. Guta, nesse momento, trazia os olhos horrorizados e manchados de lágrimas. Olhei para a torre. A única certeza que tinha era de não pegar o caminho que levava até ela. Esse pensamento me acalmou, contudo, passamos a ouvir gritos de dor e desespero. Pareciam vir dela. Isso nos abalou sobremaneira. O que diabos queimava incessantemente ali?

Na corrida desenfreada por nossas vidas, entre ruas que iam e vinham numa ciranda sem fim, avistei uma igreja. Senti uma centelha de esperança ao notar que ela parecia não pertencer àquele lugar. Conservava-se bela e digna. Gritei para que Saulo nos seguisse, já que em nenhum momento soltei a mão de Guta.

Os homens brancos, de alguma forma, intuíram-me. Os gritos que vinham da torre ficaram mais altos, sobrepujando a sirene, agora, rouquenha. Já não havia mais risos nos rostos que nos seguiam. Isso fez com que eu corresse mais rápido, arrastando Guta comigo. A liberdade estava próxima, eu a sentia em cada célula do corpo. Mas o destino às vezes é cruel. Saulo tropeçou e caiu. Isso bastou para que o líder da turba o agarrasse. Dei um passo à frente, porém Guta me impediu.

Saulo gritava nas mãos férreas dele. Seis homens se juntaram ao líder, batendo facas nas palmas, intimidando-nos, enquanto encaravam a mim e à Guta. Estávamos tão perto da liberdade. Meu amigo agora esperneava, sendo arrastado para longe de nós. Aquele maltrapilho, creio que o mesmo que encontráramos na entrada no lugar, devido ao longo casaco turquesa, deu um passo atrás, satisfeito com seu prisioneiro. Minha vontade era ir atrás de Saulo, entretanto, se o fizesse meu fim seria o mesmo. Seus gritos e seu olhar desesperado me paralisavam naquele chão. Tinha plena certeza de que ele seria levado para a maldita torre e Deus sabe o que lhe aconteceria ali. O homem deu um passo em minha direção, ameaçando-me. Nesse momento a porta da igreja se abriu e dela saiu uma mulher, com vestes brancas, cabelos prateados e um cajado nas mãos. Olhou ferozmente para o líder, batendo o cajado de forma ritmada no chão, silenciando a turba e a sirena.

— Saiam daqui. Já têm o que querem.

O líder encarou-a malevolamente, porém obedeceu, não sem antes olhar fixamente para mim com aqueles olhos terrivelmente negros.

— Que lugar é esse? — perguntei a ela — Como saímos daqui?

Olhei para trás e vi que eles se afastavam, caminhando de ré, no intuito de nos intimidar. Pareciam ter medo da mulher com o cajado. Saulo já havia desaparecido. Talvez tivesse desmaiado, pois já não ouvia mais seus gritos aterrorizantes. Naquele momento, releguei a situação para o fundo de minha mente. Só pensava em como salvar Guta do mesmo fim, implorando, se necessário, à nossa salvadora.

— Vocês estão sete vezes além do seu mundo. — disse com uma voz profunda, ainda batendo o cajado no chão. — Corram para dentro da igreja e não voltem nunca mais.

Obedecemos, e assim que a adentramos, senti um solavanco e então o mundo que conhecíamos voltou para nós. Guta chorava e me abraçava. A moto de Saulo desaparecera. A minha estava caída ao lado do mata-burro. Voltamos para casa em silêncio. 

Foi difícil relembrar. Sinto que faltaram alguns detalhes em meu relato. Mas o importante está aqui. Não sei quanto tempo ainda me resta dessas lembranças. Não sei que lugar era aquele e nem quem eram, e o que queriam aquelas pessoas. No silêncio da noite, agradeço à mulher que nos libertou, porém rezo para que me livre logo de vez dessas lembranças malditas. Já não aguento mais reviver o olhar aterrador de meu amigo. Seus gritos ecoam nos meus sonhos. Não ando mais de moto. Vendi a minha por temer que, de alguma forma, ela me levaria para lá novamente. Nas ruas ando apressado. O sorriso cruel do maltrapilho de olhos negros ainda me persegue.

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