Último Tapa

Gabriel Yared

Ninguém passa naquela parte da avenida Duque de Caxias mesmo, mas pra evitar qualquer X9, a gente entrava pelo portão aberto dos fundos do Hospital Geral. Os funcionários dali nunca deduravam a gente, então podíamos escapar da escola e fumar o beck tranquilo ali no pátio.

Num dia desses, tava lá nós quatro, e a Belinha tinha acabado de acender o baseado. Um funcionário passou perto, deu uma olhada na gente e fingiu que não viu nosso uniforme. Entrou pela porta mais próxima e logo esquecemos dele em meio à fumaça que começou a nos arrudiar.

Eu comecei a falar muito, nem lembro do quê. Mas a Belinha concordava com tudo, balançando a cabeça, séria, enquanto o Marquinho não segurava o riso. E o Patrick tava em outro mundo, os olhos caídos pra bem longe.

Nisso a gente mal percebeu se aprochegar uma figura. Quando vimos, já tava perto da nossa rodinha. Pálido, cambaleante e vestido só com um cobertor por cima dos ombros, unindo as pontas em frente ao peito com uma mão só; mal cobria as pernas feridas e o bilau balançando. Só podia ser um dos internos da ala de psiquiatria que de vez em quando fugiam e vagavam pelos arredores. Olhou pra mim, ou melhor, pro beck na minha mão.

— Deixa eu dar um tapa? — A voz dele era um sussurro.

A Belinha logo fico incomodada, mas o Patrick ainda viajava e o Marquinho ria, então eu nem dei moral. Dei o beck pro cara e a gente ficou olhando ele tragar. Foi uma puxada firme, que fez a ponta queimar como o sol. Parecia que ele nunca ia terminar de puxar a lombra, como se fosse a última vez que pudesse fazer isso ou como se ele fosse um saco sem fundo.

Foi aí que eu percebi a fumaça escapando por debaixo do cobertor.

Quando ele estendeu a mão pra devolver o beck (quase acabado), o lençol escapou da outra e eu consegui ver mais fumaça saindo pelos furos chamuscados, um monte deles, no peito dele. A gente nunca mais fumou no pátio do necrotério.

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