Despertar

Hazel L.

“tic, tac” alertava o relógio de parede da vovó. São exatamente sete horas da noite e não me lembro do dia anterior.

Tropeço nos jornais espalhados pelo chão enquanto sigo em direção ao banheiro onde minhas maquiagens e perfumes estão. 3 dias e cinco horas e 19 segundos desde que a vi, seu semblante entristecido e seus lábios escarlate grudaram em minha mente como cola permanente. Constante. Não devo pensar nela. Assim que calço as botas, dirijo-me ao uber o qual chamei e sigo para o
velório. Os olhares pesados e tristes ao meu redor confortam-me, a garotinha com cabelos cor de ouro sentada no banco da frente lembra-me um anjo, penso que este viria me buscar. Criei coragem e cheguei junto ao caixão cor de jasmim que estava enfeitado de rosas brancas ao redor de seu corpo, este já sem resquícios de sua verdadeira pessoa. Não posso pensar nela. – que fatalidade! – anuncia uma das ministras da cerimônia parada a minha esquerda. Seus cabelos curtos e ruivos estavam acalmados por três presilhas do que pareciam ser material barato – tão jovem, ninguém merecia morrer
deste jeito – conclui a velha. Ao aproximar-me de seu rosto, coberto pelo véu, pude notar uma leve movimentação nas narinas. Estou alucinando. Sua barriga não se mexia, mas o que parecia ser um farfalhar de oxigênio deixando seu copo pelas narinas intrigou-me. Tomo a liberdade de tomar sua mão cálida, seus dedos brancos pela falta de circulação sanguínea de imediato apertaram os meus. Cambaleio apara trás estupefata pela sensação inexplicável, tropeçando em um jarro de flores qualquer que quebrou com o impacto. Seria mesmo possível¿. De repente, seu corpo putrefato senta-se sob o acochado caixão, seu rosto vira lentamente em minha direção, seus olhos negros e vermelhos ao redor encaram-me, consigo sentir a sua dor. A minha dor. Caio de joelhos assim que vejo sua face fantasmagórica, mirando minhas mãos, agora manchadas de um líquido vermelho, o mesmo líquido que agora escorre de seus olhos. Não posso pensar nela. Tento bloquear o pensamento e afastar
esse pesadelo – acorda, vamos, ACORDA – grito comigo mesma. Aos poucos paro de sentir o movimento do meu tronco, minha língua embola descaradamente, impedindo-me de proferir qualquer palavra. Um arrepio gélido toma meu corpo quando noto o cadáver se aproximando do meu rosto, rezo
para que qualquer ser me tire deste pesadelo. Em um gesto estridente, direciona sua mão esquerda aos meus olhos, arranhando a língua d’agua com a ponta das unhas. A dor agonizante dominava a minha mente por completo, seu hálito mortífero sob minha bochecha enquanto afunda seus dedos em
meus olhos faz-me acreditar na realidade, e que ninguém viria me ajudar. O salão antes cheio de amigos e familiares agora encontrava-se vazio – VÁ EMBORA!

Tic, tac, o relógio me trouxera a realidade. Desperto de sobressalto e noto que estou de novo em casa. O cheiro do café fresco aos fundos trás a sensação de alívio novamente, tudo não passava de um pesadelo. As lembranças do velório continuam frescas em minha memória. Os jornais espalhados insistem em me lembrar de sua morte. A minha morte. Ao olhar no espelho, noto que as manchas de sangue em minha boca agora respingam no chão. A morte eminente apagou as memórias, sonhos são revividos a cada dia. Meu reflexo ao retrovisor é minha última memória. Minha assombração é a minha lástima a espera de um despertar definitivo.

Uma resposta para “Despertar”.

Deixe um comentário