Cyber Maculelê

Fernando Fiorin

Me deixa ali do lado da catedral.

O aerodeslizador pousou silenciosamente, com poucos solavancos. O piloto-robô acionou o mostrador digital afixado na parte de trás do banco de passageiros exibindo o valor da corrida. O passageiro passou o seu braço rente à tela e o seu dermochip implantado de maneira subcutânea cedeu o valor cobrado instantaneamente.

A porta do passageiro deslizou lateralmente e o mesmo desceu, avançando com desenvoltura enquanto assimilava o ambiente e buscava visualmente o contato que esperava encontrar naquele lugar.

Assim que o veículo deslocou-se novamente para cima e para frente, Zé Cotoco verificou se o seu aparelho oxigenador estava em ordem e operando. Talvez ele precisasse entrar em ação naquele ambiente hostil, e não queria ser pego de surpresa por conta de uma questão de ordem técnica que poderia ter sido contornada por mera questão de bom senso e preparo.

Ele também verificou o seu facão de batalha, marca registrada do seu grupo.

Os Maculelê eram bem organizados naqueles dias, mais bem organizados do que jamais foram nos últimos cem anos de sua história, quando o mítico Mestre Popó juntou os pretos para reafirmar o estilo de luta com bastões e ginga na antiga cidade de Santo Amaro da Purificação na velha Bahia.

E em 2045 o grupo dos Maculelê era uma força bélica e bem arregimentada, trabalhando como mercenários para quem lhes pagasse mais, estando lado a lado com os Samurais de Neon no trabalho de proteção e nas lidas dos guerreiros urbanos.

Enquanto seguia ao lado da Catedral da , um dos pontos mais antigos da cidade de Nova Sampa, capital do Brasil desde que um míssil nuclear acabou com Brasília, Zé Cotoco especulava onde o seu contato poderia estar escondido. O lugar piorara muito desde a década de vinte, quando já era um ponto decadente usado pelos desesperados e viciados para se protegerem e vigiarem, em busca de dias melhores.

Nos dias atuais essas esguias e dantescas figuras eram conhecidas como “as baratonas” e era realmente um milagre como conseguiam seguir vivas em um mundo tão hostil. Todos usavam um aparelho oxigenador de primeira ou segunda geração cedido pela antiga UNESCO, um equipamento que mais lembrava um escafandro das remotas histórias de Júlio Verne. Fora essa adaptação improvável, eles seguiam fumando crack vagabundo e comendo a comida que achavam nos lixos da cidade, sobrevivendo como podiam em uma realidade que tratava a todos com dureza e crueldade.

Zé Cotoco foi se esquivando dos tipos mais atrevidos até que encontrou o sujeito que lhe interessava.

Cabeça de Elefante era fácil de ser identificado, ele usava os restos de uma cabeça de pelúcia gigante em volta do seu aparelho oxigenador, o que conferia a bizarra aparência de um homem-elefante. O sujeito também sofria de algum tipo de mal que deixava os seus braços e pernas inchados, o que contribuía com a sua aparência irreal e paquidérmica.

Assim que reconheceu o Maculelê, o informante improvisou uma referência exagerada, o que fez o seus cabelos desgrenhados prendidos em franjas rastafári quase acertassem o homem que se punha a sua frente e esperava o sem-teto olha-lo nos olhos.

– Como vai meu homem?

– A vida é cruel com os sonhadores, . Como eu posso te ajudar irmão?

– Estou procurando um rato chamado Hēi xiēzi, você conhece esse sujeito?

– O Escorpião Negro? Já ouvi falar. Ele andou aprontando com a Madame?

Madame Cuca é uma mulher de paciência infinita, mas ela não tolera maus pagadores ou os X-9.

– Ninguém gosta de X-9 meu irmão.

– Não mesmo. E então?

– Bom, eu sei algumas coisas sim. Pagamento padrão?

– Só se a info for boa.

– Aí sim. Sente então. Esse vagabundo tá escondido num inferninho ali na Augusta chamado “Bar da Guta”. Ele alugou um quarto lá faz dois dias e se meteu ali com duas putas baratas. Mas ele não tá sozinho.

– Isso eu entendi meu velho.

– Não, copia isso, além das putas ele contratou um guarda-costas dos brabos.

– Sei. Continua.

– Pode crer sapo. Ele contratou um ronin.

– Um ronin? Interessante. Você sabe quem é o sujeito?

– Sei não. Acho que se chama Hiro Butá, é um tipo gordão, meio mulambo.

– Saquei meu velho. Agradeço muito as info. Toma aqui um presente.

O Maculelê tirou do bolso um modelo slim de oxigenador, coisa de primeira.

O velho olha aquilo incrédulo, oscilante. Mas ele levanta a mão e rejeita o presente. Ele aponta para a sua cabeça de pelúcia, que se encaixa perfeitamente no seu velho oxigenador, e deixa claro que não pode deixar aquilo que já faz parte dele para trás.

Zé Cotoco o entende, é parte da identidade do velho morador de rua. Se ele deixar isso de lado acaba se esquecendo de quem é. Acaba virando apenas mais uma das baratas correndo pelas ruas da catedral, tragado pelo desespero e pelo vício, massacrado pela falta de empatia que tomou conta do mundo após a última grande guerra que quase acabou com tudo.

Resignado o Maculelê guarda o equipamento e do bolso tira um cartão negro com uma ponta dourada.

– Toma aqui então meu velho. Tem uns dois mil créditos do Mercosul aí. Dá para ti se arrumar por um tempo.

Zé Cotoco não sabe se o coitado está emocionado ou sorrindo, a maldita máscara de elefante não lhe permite ver esse tipo de coisa. Antes que o morador tenha tempo para agradecer, o guerreiro urbano segue para longe das ruas da catedral, em algum ponto em que possa chamar um aerodeslizador para leva-lo até o tal do Bar da Guta e cobrar a pedra que o Hēi xiēzi deve para Madame Cuca.

Existem aqueles que consideram Madame Cuca uma pessoa cruel, mas o Maculelê a considera bastante justa. Uma das melhores hackers de Nova Sampa, ela trabalha com informação cobrando preços e favores justos.

Hēi xiēzi é outra história. Um safado que usa o que pega, geralmente tenta levar vantagem sobre todo mundo. O tipo de pessoa que não dura muito no mundo.

Porém, o que preocupa mesmo Zé Cotoco, é o tal de Hiro Butá.

Ronins de Neon são pessoas perigosas. Dissidentes dos Samurais de Neon, geralmente são expulsos após comprometerem o seu complexo código de honra resgatado do século dezenove, quando ainda existiam samurais no mundo.

Zé Cotoco olhou para o coto do seu braço direito, recordando como perdera uma parte importante do seu corpo. Claro que ele poderia ter substituído a mão perdida por uma prótese de qualidade. Na 25 de Março existiam cirurgiões de rua, carinhosamente conhecidos como “açougueiros”, que poderia implantar um novo braço em duas horas.

Mas ele gostava de olhar para o coto e recordar que fora em um ato de arrogância que perdera tanto. Aquilo o ajudava a ser humilde, a se manter vivo. Principalmente sabendo que fora justamente um Ronin que arrancara aquele braço.

O aerodeslizador desce silencioso e a porta corre lateralmente, permitindo a entrada do Maculelê. A voz do motorista-robô, estranha e artificial, soa até a parte de trás, indagando o caminho que o veículo deve seguir.

– Para vamos senhor?

– Siga para o Bar da Guta na Rua Augusta, região central.

– Caminho traçado. Tempo de chegada oito minutos.

Conforme o veículo segue, Zé Cotoco se perde na luz pálida de neon que cobre os prédios de cima a baixo. Ele retira a máscara aproveitando o climatizador ambiental do veículo. O Maculelê fita os pedestres seguindo as suas vidas, como se nada demais tivesse acontecido no mundo nos últimos anos. Tirando o fato de que todo mundo usa aquelas máscaras bizarras para conseguir respirar.

A voz mecânica do robô faz com que o Maculelê volte ao aqui e agora, concentrando-se novamente em sua missão.

– Senhor, chegamos.

Passando o braço com o dermochip sobre o painel paga a corrida, firma a máscara no rosto e segue para a porta do bar. Assim que entra percebe que Cabeça de Elefante está correto, o lugar é um muquifo. Atravessando a zona de climatização, o capoeirista quase se arrepende de tirar o oxigenador quando sente o cheiro do lugar.

Uma mistura de cerveja velha e vômito fresco parecem dar o tom do ambiente, acompanhado com o perfume barato das garotas de programa e do suor rançoso dos clientes.

Chegando ao balcão, o Maculelê espera o bartender se aproximar para pedir uma bebida. O sujeito esfrega um copo americano trincado com o seu braço biônico de segunda linha enquanto olha para o novo cliente de maneira abertamente hostil.

– O que vai querer Senhor? Espero que não tenha vindo fazer arruaça no meu bar.

– Me vê uma dose de marvada.

– Só um segundo.

O sujeito pega o copo que estava esfregando, puxa uma garrafa de cachaça sintética e serve uma dose generosa. Assim que enche o copo ele o coloca no balcão, na frente do capoeirista. Zé Cotoco pega o copo e o vira de uma vez, sentindo a cachaça descer queimando o seu esôfago. Ele coloca o copo no balcão e faz sinal para que o bartender sirva-lhe mais uma dose.

O capoeirista se prepara para indagar o sujeito, sabendo que vai ter pouca sorte ali, num lugar em que discrição vale ouro. No entanto a sorte sorri para o Maculelê. Olhando casualmente para cima, ele vê o seu alvo subindo as escadas que levam ao primeiro andar onde, provavelmente, ficam os quartos.

Virando-se para o bartender como quem não quer nada, Zé Cotoco aponta para cima e questiona-o em sua voz mais despreocupada.

– Por acaso tem algum quarto livre, por, digamos, duas horas?

– Acredito que sim. Você quer alguém para acompanha-lo?

– Tem um catálogo no quarto?

– Tem sim.

– Eu vou dar uma olhada lá então.

– Tudo bem. Vou te arranjar um lugar no fim do corredor, pode ser?

– Claro.

O capoeirista estende o braço e espera o atendente implantar a informação no seu dermochip. Assim que ele paga os valores do quarto e da bebida já consumida, um sinal na tela led do balcão avisa-o de que pode seguir para o quarto, indicando também o número.

termina de beber a cachaça, levanta-se e segue com passos despreocupados a escada subindo de dois em dois degraus.

Andando calmamente ele percebe o sujeito gordo usando uma armadura oriental na frente de uma das portas. O guarda-costas, com cara de poucos amigos, bebe saquê em uma garrafa de vidro, enquanto encara um quadro muito feio pendurado na parede da frente. Sua armadura tem ideogramas japoneses brilhando em neon, com exceção de um que fora arrancado na parte esquerda do peitoral.

Na cintura ele tem uma katana, a espada que dá a distinção a todo samurai ou ronin e que, diziam as lendas, teriam pertencido a algum antepassado do século XIX.

O Maculelê segue com passos firmes, se aproximando do ronin e sentindo o seu cheiro forte de longe. O guerreiro urbano oriental sente a movimentação ao seu lado e se vira puxando uma pistola do coldre.

Ele sorri ao notar que o seu adversário é um Maculelê, sem dúvida menosprezando o seu oponente. A sua voz sai um pouco pastosa, demonstrando estar um tanto embriagado.

– O que tu quer negão? Vaza daqui.

– Você é o Hiro Butá?

– E se eu for?

– Estou procurando por Hēi xiēzi. Ele tá aí dentro?

– E se estiver?

O Maculelê sorri para o ronin enquanto prepara-se para entrar em ação.

Armas de fogo são coisas perigosas e os ronin não se importam de usar uma durante uma briga. imagina que eles pouco se importam com códigos de honra, desde que o seu inimigo caia morto.

Ele atira assim que o capoeirista se desloca em sua direção, tentando acerta-lo na cabeça. Mas, mesmo a queima-roupa, o Maculelê consegue levantar o facão e parar a bala com a parte chata da lâmina, o que deixa o seu inimigo estupefato. O idiota, se desse mais uns tiros, talvez tivesse a chance de acertar um adversário tão perigoso.

Mas o coitado não terá essa chance.

Zé Cotoco ginga lateralmente e desfere um chute lateral, acertando Hiro na cabeça. O ronin cai para o lado, a garrafa de saquê voa para longe e estoura no chão, produzindo um barulho de vidro se estilhaçando para todos os lados.

Sem tempo para perder com o guarda-costas, o Maculelê desfere um golpe de piedade no pescoço, cortando uma artéria importante.

De maneira fluída Zé Cotoco chuta a porta que estava atrás do ronin, que agora se afoga no próprio sangue, e essa se abre de forma ruidosa, quase se soltando do batente. Hēi xiēzi está deitado em uma cama, seminu com duas mulheres assustadas, olhando para o capoeirista e para o corpo atrás dele apavoradas.

Zé Cotoco sorri para o homem apavorado e lhe aponta o facão, deixando gotas de sangue pingar pelo tapete do quarto, formando uma trilha rubra.

– Muito bem, Escorpião Negro, você sabe quem me mandou e por qual motivo. Agora só resta saber se o senhor vai pagar o que deve ou se devo tomar o que o senhor deve à força. Saiba que não me importo com a forma de pagamento. Por bem ou por mal eu vou receber o que o senhor deve.

E eu torço para que o senhor faça a pior escolha.

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