Possibilinautas — a história de Maria

Gutenberg Löwe

Um zumbido baixo, elétrico, envolvia os dois ocupantes da sala. O ozônio presente no ar parecia estalar a cada segundo, provocando um arrepio nos cabelos deles. Do lado de fora, os freios de um ônibus guinchavam e o som de buzinas ecoavam naquele princípio de noite — o mundo seguia alheio aos momentos precedentes ao evento que poderia mudar completamente sua história.

— O homem pode ter sido o primeiro a viajar no espaço; mas no tempo, será a mulher — disse o Professor, abraçando Maria. Era um gesto meio travado por conta da roupa de proteção que ela vestia.

— Não tenho palavras para agradecer pela oportunidade — disse ela quando o homem se afastou. O laboratório era meio estreito, então a máquina geradora de possibilidades ocupava a maior parte do cômodo com todos aqueles fios, tubos e resistores.

— Os agradecimentos são todos meus. — Ele era um homenzinho que estava sempre rindo. O terno preto e sóbrio contrastava com aquela imagem.

A possibilidade de uma viagem através dos três eixos — tempo, espaço e possibilidades — deixava-o ainda mais risonho. Porém algumas coisas ainda o faziam fechar o cenho e uma estava passando por sua cabeça naquele momento.

— Mas precisamos compartilhar nossas preocupações — disse ele, erguendo um dedo diante de Maria. Ela assentiu meio sem jeito pela rigidez do traje. — Nunca solte a âncora de possibilidades. Se você perdê-la, também a perco.

Aquela deveria ser a milésima vez que tinham a mesma conversa. O professor repetia aquele conselho sempre que podia. Durante os testes com as sondas possíveis, ele vivia dizendo que estava complicando a vida das pessoas sempre que perdia um drone.

Diferente do que muitos pensaram por anos sobre a viagem no tempo, o mais difícil era o fato de que era necessário entender a existência de um terceiro eixo: as possibilidades. Era bem como uma explosão de fogos de artifício, criando desdobramentos a cada decisão. Uma realidade possível com cada uma delas. Por isso, as sondas desaparecidas nunca iriam atrapalhar a linha tempo-possível de Maria e do Professor. Ao menos, não daquelas versões deles.

— Tomarei cuidado — disse Maria, caminhando para dentro da máquina geradora de possibilidades. Maria gostava mais do nome curto, motor possível, mas o professor torcia o nariz para aquelas simplificações.— Sempre tomo. Além do mais, ficarei pouco tempo fora. Essa primeira viagem será de apenas um minuto relativo, certo?

— E quase três horas para você. Tempo mais do que suficiente para que algo dê errado.

— Você se preocupa demais. Qual é mesmo a taxa de perda dos drones-possíveis?

Ele deu de ombros e afastou-se do motor possível. A câmara servia apenas para iniciar a reação. Todo o processo da viagem seria realizado através do traje e da âncora de possibilidades. Um tanto frágil, verdade, mas os dois estavam trabalhando no limite do orçamento. Antes, o Departamento de Física contava com alguns bolsistas em vários níveis de formação — vários deles responsáveis pelo auxílio na construção da máquina —, entretanto, os cortes atingiam mesmo as promessas mais revolucionárias.

— Viagem possível iniciando-se em cinco segundos — disse o Professor detrás do painel de controle. Um LED acendeu-se no capacete de Maria, e seu coração disparou diante da antecipação.

Ligar aquela máquina derrubaria a rede elétrica do bairro, talvez da cidade inteira. Era bem mais fácil e econômico mandar apenas as sondas, mas ambos estavam ficando inquietos. O protocolo para testes com humanos ainda estava distante — talvez nem chegassem a ele, caso os repasses continuassem minguando —, mas Maria e o Professor acabaram aceitando os riscos de fazerem aquele pequeno salto. Afinal de contas, era apenas mais uma possibilidade.

A contagem regressiva vinha na contramão da respiração e batimentos cardíacos da primeira possibilinauta do mundo. Uma parte dela imaginava as múltiplas variáveis que cercavam os próximos instantes: em algumas delas, morreria com alguma explosão; em outras não seria capaz de concluir a viagem. Naquelas em que retornasse com sucesso, o projeto dela e de seu mentor transformaria o mundo — ainda que não do jeito que todos esperavam que a viagem no tempo, espaço e possibilidades poderia operar.

De todo mundo, para aquele voo de testes Maria já tinha uma ideia de para onde ir: o momento em que havia nascido.

A mãe havia dado a luz a ela e morrido no processo. Maria não seria capaz de fixar uma possibilidade em que a mãe sobreviveria àquele dia — os sistemas ainda eram muito rudimentares para esse tipo de precisão —, mas confiava na sorte de poder encontrar um cenário positivo. Os anos como doutoranda e depois professora e pesquisadora na UFJF foram para conseguir experimentar aquilo. Uma vida inteira dedicada à possibilidade de encontrar-se ao menos uma vez com sua genitora perdida.

Finalmente chegou o momento, e os últimos segundos se aproximavam mais rápido.

Quando a contagem terminou, um tranco acompanhou a explosão de luzes. Diante dos olhos de Maria surgiu uma infinidade de caminhos possíveis, cada um deles se multiplicando ao infinito na menor fração de tempo que existia.

Os dados implantados em sua bússola possível a direcionavam através daquele caos imenso, puxando Maria para a data fixada. Era uma coisa estranha que não haviam conseguido apreender quando usavam os drones: ao mesmo tempo em que ela sabia que seu corpo viajava também parecia que não se movia.

Com outra explosão de luz e calor, agora causada pela reentrada em uma linha fixa de causalidade, Maria viu-se no hospital. Ela mesma não seria vista; parecia que qualquer possibilinauta — esse termo tanto Maria quanto o professor amaram — tornava-se um tanto espectral para os residentes de determinada realidade. Enquanto estavam presos à âncora de possibilidades não havia qualquer chance de interação.

— Cuidado, ela está em estado grave — disse um médico à medida em que corriam com uma paciente na maca. Passaram como se ela nem existisse.

Não uma paciente qualquer. Sua mãe. Ela reconheceria aquele rosto que memorizou das fotografias em qualquer lugar. A expressão da mãe era de dor e suas respirações longas e sofridas. Maria foi atrás deles.

Em um silêncio agoniante, ela observou os procedimentos que pareciam cada vez mais complexos, mas sem trazer qualquer efeito prático. Havia uma tristeza na realização de que ela poderia romper a casualidade do tempo e espaço, porém, ainda não conseguir realizar o único ato que mais importaria em sua vida. Apenas travava os dedos enluvados e torcia para ter encontrado um cenário em que a mãe sobrevivia.

Um alerta apareceu em seu traje, indicando que a viagem possível estava para se encerrar. Maria não deveria mexer nas configurações de navegação fora do ponto de ancoragem. Em todos os testes, nunca haviam conseguido fazer aquilo funcionar. Verdade que em alguns casos era mais problema da programação das sondas possíveis do que no sistema de navegação.

A possibilinauta queria mais tempo ali. Sabia que não era sua única chance de ver a mãe, mas queria aproveitar cada segundo possível. Além disso, a ideia veio como justificativa para seu atrevimento, vou descobrir se conseguimos controlar a viagem desse lado.

A pesquisadora começou a digitar os comandos no traje, aumentando seu tempo. Queria apenas alguns minutos a mais. Coisa pouca para o mundo, contudo, inestimável para ela. Só mais cinco minutinhos, lembrou-se das manhãs em que não queria ir para escola. Como desejava a mãe nesses dias!

FALHA CRÍTICA, acendeu-se em vermelho no visor. ÂNCORA DESCONECTADA.

Merda! 

O palavrão veio junto de uma descarga de adrenalina para manter o medo afastado. Se antes ela estava teclando rápido, agora fazia em uma velocidade que não parecia possível. Tinha pouco tempo para reconectar-se ao ponto de ancoragem antes que se perdesse.

Sua imagem oscilava entre o ambiente real daquela realidade e o espaço possível em que existia, segura e inalcançável. Eram aparições quase imperceptíveis, mas que revelavam-na como um flash para quem olhasse em sua direção.

— Um anjo — disse sua mãe, estendendo os dedos em sua direção. Sorria.

Aquelas palavras contiveram o desespero de Maria por um instante. Depois aumentaram-no como se fosse um catalisador. O pai havia contado que sua esposa, pouco antes de morrer, vira um anjo. Ele não estava na sala de operações, tinha ficado preso no trânsito, e ouviu aquilo da boca de uma enfermeira.

Talvez a mesma que segurava a mão da mãe de Maria que olhava fixamente para a filha deslocada no fluxo de possibilidades.

— Me desculpe — sussurrou. Acenou para a mãe e logo depois o salto possível ocorreu.

Sem uma âncora para guiá-la, a possibilinauta estava à deriva naquele universo desconhecido. Dentro do traje, ela tinha oxigênio suficiente para sobreviver algumas horas. Talvez um dia. Mas do que aquilo importaria? Assim como alguém que se perde no meio do Atlântico, Maria não seria encontrada por ninguém.

Uma força a puxou com violência para baixo. Uma ancoragem forçada? Havia aquela teoria de que a viagem no tempo era inofensiva porque o universo corrigia as imperfeições e alterações. A pesquisa de Maria e do professor acreditava que isso era causado pelo fluxo de possibilidades já que nunca iriam alterar realmente suas próprias linhas do tempo. Será que esse tipo de coisa também impedia que se vagasse por aí entre as coisas que poderiam ser?

Antes que uma ideia se formasse em sua cabeça, a viajante rompeu de novo a barreira quântica. Maria apareceu diante de um trio de crianças. Ela flutuava sobre as cabeças deles, meio espectral, meio material. Parecia que alguma coisa dera errado com aquela parte do traje também.

Antes que ela pudesse tentar fazer qualquer coisa, as crianças ajoelharam-se diante dela. Trouxeram as mãos aos rostos, como se rezassem, e murmuraram algumas coisas em uma língua que Maria não reconhecia. Lembrava uma espécie de brasileiro arcaico, mas o sotaque era muito estranho.

Outro puxão.

Mais uma vez a possibilinauta cruzou o vazio entre o que existia e suas inúmeras realidades. Sua visão ficou meio embaçada, estrelas e criaturas impossíveis vislumbradas por alguns instantes. Quando voltou a enxergar direito, Maria conferiu o nível de oxigênio do seu traje. Estava acabando. Mais algum tempo e ela morreria sufocada. Tinha que fazer algo. Quando se está dentro de todas as possibilidades que existem no universo (ou seriam até universos?) não custa nada tentar.

A ideia era cortar completamente o processo que permitia a viagem possível. Na sua cabeça, a pesquisadora imaginava que aquilo a lançaria direto na possibilidade em que estivesse. Talvez um choque de realidades a destruísse no mesmo instante? Ou não fosse possível parar em um só lugar? Precisaria tentar ou apenas a morte seria sua certeza.

Assim que mais uma atração possível a removeu daquele nexo possível, Maria se preparou para desligar o sistema de viagem. Teria apenas uma chance e tinha que fazê-la valer sem pensar no preço daquilo.

Respirou fundo, sorvendo o máximo possível do oxigênio restante. A explosão de cores e energia aconteceu. A pesquisadora desligou o sistema de navegação e caiu direto no chão. O traje amorteceu a queda, mas ainda doeu bastante.

Maria conseguiu sair em um local árido. Despiu-se do traje, conservando consigo apenas um único elemento de toda aquela tralha tecnológica. Sem saber onde ou quando estava, ela escolheu caminhar em direção oposta ao sol.

No terceiro dia, à beira da morte e da loucura, encontrou-se com a civilização.

***

Maria já estava vivendo entre aquele povo havia cinco anos. Aprendera bastante da língua deles, principalmente depois que casou-se com um carpinteiro. Yosef era um bom homem, marido exemplar e temente aos preceitos de YHWH. Ela tentava ajudá-lo, pois em vez de permitir que a matassem, ele a levou para casa, trouxe de volta sua vida.

Ela estava voltando para lá, trazendo consigo as cabras que forneciam o leite para o filho deles, quando a aparição materializou-se acima dela. Uma luz espectral o envolvia, deixando sua imagem pouco delineada.

Maria conseguia discernir sua forma, no entanto. O povo daquela época pensaria ser um anjo, como sua mãe, no entanto, Maria sabia a verdade. Fazia algum tempo que não a via, mas tinha ajudado a desenhar aquele modelo específico de traje de proteção. 

— Voltaremos para te buscar — disse a figura em um clarão momentâneo antes de desaparecer. — O Professor não se esqueceu.

Era outro possibilinauta.

Era uma esperança vazia.

Mas ainda assim, ela apertou o pingente que trazia escondido sob as vestes. Era menor do que um seixo, porém, continha um isótopo criado especificamente para ser um GPS possível. O caminho para casa que alguma versão dela talvez tivesse a sorte de encontrar pulsava devagar entre seus dedos.

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