Horror no Necrotério

Amanda Kraft

Eu havia acabado de preencher a vaga como auxiliar de necropsia em um hospital no interior de São Paulo. Não vou informar o nome da cidade, tampouco o do hospital e nem mesmo o meu próprio, por temer que algum curioso tente desvendar o mistério que me envolveu naquela primeira semana de trabalho ao ler esse relato verídico.

Sim. Verídico. E posso provar, embora faça de tudo para esquecer o que presenciei naquele lugar. Mesmo tendo deixado o emprego, com uma desculpa bem esfarrapada que não convenceu ninguém, fui-me embora dali sem arrependimentos. O olhar desconfiado de minha chefa quase me fez contar-lhe o real motivo. Percebi que ela queria, e muito, perguntar-me algo como se precisasse de uma confirmação. Tenho certeza de que o bom doutor, falou mais do que devia. Mas o meu desassossego era tão grande que lhe pedi que desse logo baixa em minha carteira. Virei as costas e nunca, nunca mais voltei, desistindo da profissão. 

Trabalhava como enfermeiro há algum tempo. Cuidar dos doentes não é tarefa fácil. Alguns pacientes costumam ser dóceis, contudo, às vezes nos deparemos com alguns bem rebeldes. Via de regra eu me dava bem com todos. O que me fez agarrar a vaga de auxiliar de necropsia é que os turnos lá costumam ser menos cansativos. O número de mortos em um hospital é quase ínfimo, comparado ao que chegam à procura de um leito. Além de que era possível eu dar uma estudada nas matérias do cursinho, sem interrupções. Trabalhar e estudar não são coisas fáceis, mas eu queria muito entrar em medicina. Meu sonho desde garoto. 

Antecipei-me fazendo enfermagem, pois não existe uma pessoa nesse país que não saiba o quão difícil é entrar em uma boa faculdade, principalmente quando não se tem muita grana. Às vezes tenta-se por anos. Mas eu não iria desistir desse sonho.

Fui apresentado ao médico legista do turno da madrugada, período que escolhi, pois eu saía às 22h30min do cursinho e seguia para o hospital. Assim podia dormir durante o dia. 

A primeira semana foi uma maravilha. Nenhum corpo. Estava com a matéria toda em dia e muito satisfeito com a minha sorte. O Dr. Campos era muito na dele. De pouca fala, gentil e educado. Na segunda semana chegou um defunto. Um senhor que morrera após quatorze dias de internação. Em princípio fora diagnosticado com enfisema, porém o quadro foi se deteriorando mesmo com o uso de antibióticos potentes.

Ajudei o Dr. Campos que muito me ensinara naquela madrugada. Estava tendo uma aula maravilhosa, guiado por sua paciência ao fornecer-me detalhes sobre fígados, rins e pulmões deteriorados. Sentia que seria um médico tão bom quanto ele.

Depois daquela autópsia eu já estava me “achando”. Dessa vez tinha certeza que entraria em medicina na USP, por estar vendo na prática como funciona um corpo humano. Foi então que a coisa degringolou.

Era sexta-feira de carnaval. Saí mais cedo do cursinho, pois quase ninguém fora à aula. Perambulei pelas ruas vendo as pessoas fantasiadas e felizes da vida, dirigirem-se para o sambódromo da cidade, que àquela hora só se ouvia a bateria da escola de samba “fervendo”. 

Entrei no hospital e, após dar um oi para as amigas da recepção, tomei o elevador para o subsolo. Até chegar à sala de necropsia, tinha-se que atravessar um corredor longo onde havia várias salas que eram usadas como almoxarifado. Em outras ficavam os equipamentos e os móveis como cama, macas, berços, etc.. Estas permaneciam sempre fechadas à chave. A iluminação era parca; uma lâmpada amarela a cada dois metros, já que o lugar não era tão utilizado assim.

Cheguei à sala e percebi que tinha um corpo em uma maca dentro do saco negro. Coloquei minha mochila na antessala, onde havia uma escrivaninha e um sofá que às vezes fazíamos de cama.

Segui curioso para ver de quem se tratava. Era um jovem. Reparei de imediato na tatuagem, duas asas estilizadas, que ele trazia em cada peito. Senti um imenso pesar por uma vida tão jovem ter sido ceifada. Olhei no prontuário e li que esteve internado após ter sua moto atingida por um carro desgovernado. Com certeza o motorista do carro deveria estar bêbado. Se o rapaz tivesse sobrevivido, teria sérias complicações.

Ainda era cedo para o Dr. Campos chegar. Voltei para a antessala e sentei no sofá, relaxado e pensativo. Passado um tempo, estava encarando o teto quando algo chamou minha atenção. Pensei ter visto um rapaz passar pela sala, em direção à maca onde estava o corpo. Levantei do sofá, pronto para dar uma bronca no meliante, principalmente por me sentir culpado de não ter ouvido a porta do elevador se abrir.

Olhei no corredor e pasmem, não vi ninguém. Franzi o cenho e fui até o corpo. Pensei que talvez fosse algum novato trazendo alguma papelada. Estava tudo como antes. Voltei ao sofá e me sentei, intrigado. Olhei para o relógio que ficava pendurado em frente às gavetas mortuárias e vi que já eram 11h30min. Peguei uma apostila e então notei o rapaz entrando novamente na sala. Encaramo-nos e aí veio o arrepio do medo. Seus olhos negros, fundos e sem esclera me encaravam com ódio. Suas roupas eram sujas, cheias de fuligem, bem como partes de seu rosto, extremamente branco, sob luz de led da sala.

Virou-se e, num ímpeto, fui atrás dele que passou a correr pelo corredor em direção ao elevador. Porém, não entrou nele, dobrou para a direita onde ficava a escada de acesso aos andares superiores.

— Ei, maluco! Não pode entrar aqui sem autorização. — gritei ao vê-lo galgando os degraus de dois em dois, enquanto as luzes automáticas passaram a acender sob sua presença.

Ele não parou para responder. As luzes se apagaram e pensei em ir atrás dele. Cheguei a colocar um pé no degrau, subindo dois lances, até que a luz acendesse novamente. Acendeu, porém, deixara de ser uma luz branca para torna-se algo amarelo, que mal iluminava tudo. Meus olhos se arregalaram quando mirei as paredes decrépitas ao meu redor. Havia pichações nelas com tintas negras já esmaecidas, manchas de um tom escurecido e salpicos de algo grudento que há muito escorrera ali.

Engoli em seco, fechando e abrindo os olhos várias vezes, diante daquela alucinação. Como era possível? O prédio em que eu trabalhava era novo. Aquelas paredes brilhavam de tão claras que eram. Então o que acontecera? Desci, ainda de costas, os dois lances que subira, sem tirar os olhos dos degraus empoeirados e manchados. A luz não se apagou. Manteve-se com aquele amarelo doente, agoniante.

Virei-me bruscamente, dobrando a direita pelo corredor que me levaria até o necrotério e estaquei horrorizado. Todo ele encontrava-se exatamente com a escadaria. As paredes descascando, com manchas de umidade, pichadas e mal cheirosas. O chão faltava vários pisos por onde nasciam matos negros. Tateei a mão no bolso traseiro do meu jeans, onde sempre deixava meu celular. Gosto de tê-lo à mão. Liguei-o e percebi que não havia sinal de internet, porém, ele funcionava. Apertei o play e passei a filmar aquele corredor. As portas estavam com as maçanetas quebradas e, a maioria delas penduradas no batente, como se alguém estivesse aflito para encontrar algo lá dentro.

Uma delas estava escancarada e pude ver leitos hospitalares velhos e enferrujados, berços destruídos, todos cobertos pela ferrugem. Nesse momento pensei que teria um enfarto ou um A.V.C, tal qual a força com que meu coração bombeava o sangue para minha cabeça.

Dei alguns tapas em minha face, achando que poderia ter cochilado no sofá e que poderia acordar daquele baita pesadelo. Mas não acordei. Agucei os ouvidos e ouvi um som baixo, prazeroso, como se alguém estivesse lambendo os dedos depois de uma refeição deliciosa de frango com batatas fritas. Quem comeria em um lugar sujo e fétido como aquele?

Sim. Fétido. Até hoje sinto o cheiro de coisa podre, pungente e viciante daquele lugar. Tapei o nariz com o antebraço e segui por aquele corredor estranho, tomando o cuidado de não meter o pé nos muitos buracos que havia ali, enquanto mantinha a filmagem. 

Cheguei à minha sala que pensei pertencer ao meu trabalho. A porta estava apenas encostada, deixando à vista uma fresta de uns quinze centímetros por onde saíam aqueles sons prazerosos. Meu estômago embrulhou com o cheiro acentuado que emanava dali. A todo o momento o horror não me abandonava. Queria muito deixar aquele lugar, porém não havia saída. Se seguisse adiante, sabia que me depararia com um grande salão onde ficavam os equipamentos de Unidade de Terapia Intensiva, assim como os monitores cardíacos, e instrumentos cirúrgicos. Naquele momento, era o único lugar onde não queria estar. 

Espiei dentro do que se transformara minha sala. O corpo no saco preto, para meu espanto, ainda estava lá. Arregalei os olhos, quase fazendo com que saltassem das órbitas, ao ver aquele rapaz estranho ao lado do morto, abrindo o zíper com um imenso prazer. Havia uma mulher baixa, de cabelos desgrenhados, feito uma bruxa de desenho animado. O sorriso de dentes tortos, escurecidos e pontiagudos que ela desferia para o rapaz, já teria me feito sair correndo, aos gritos, daquele lugar.

Contudo, estaquei diante do que presenciei, quase derrubando o celular que simplesmente se apagou, sem vida. Mal percebi o que fazia ao colocá-lo de volta no bolso, sem desgrudar os olhos daquela cena macabra, que ainda se encontra cravada na retina de onde nunca mais se apagará. A velha segurava um bisturi sujo nas mãos trêmulas de excitamento e passou a introduzi-lo no peito do rapaz, tirando uma fina fatia de pele no exato lugar onde a tatuagem de asas fora desenhada. A boca do rapaz chegou a salivar diante do ato.

Ela ergueu no ar e cheirou a pele, passando a língua pelos lábios. Mordeu um naco e deu o restante para o rapaz que sorvia com um prazer indescritível. Eles riram como loucos que eram e a velha passou a enfiar o bisturi meio cego, no peito do morto. O jovem saiu de perto dela para logo voltar com um objeto redondo, feito uma politriz de maquita, que soltava uma luz vermelha quando girava. A velha pegou o objeto das mãos do garoto e cravou no peito do de cujus, serrando as costelas e o esterno. Agarrou o coração e o mordeu como se comesse uma manga suculenta. O rapaz tomou de suas mãos e também se fartou.

Nesse momento, para meu azar, meu estômago convulsionou. Botei para fora o lanche que havia comido naquela noite. Nesse momento ouvi passos pesados na escada ao fundo do corredor. Talvez meu estômago tenha me denunciado já que o jovem e a velha desgrenhada se deram conta da minha presença. Eu estava cercado. Tinha certeza de que morreria ali e seria comido por eles. Fechei a porta entreaberta, segurando-a com toda a minha força, ao ouvir a correria e os gritos de ódio dos meus algozes, que passaram a esmurrá-la pelo lado de dentro, dispostos a se libertarem.

Do corredor que vinha da escada, surgiu uma criança esfarrapada, com os olhos negros iguais aos daquelas pessoas macabras, salivando ao notar o vômito no chão.

Eu estava desesperado, tentando segurar a porta, enquanto o garoto vinha a galope para cima de mim. Sim. Ele andava usando as mãos e os pés, feito um animal. Parou perto de mim e cheirou o ar. Eu não sabia o que ele faria, pois minha atenção estava concentrada em não deixar a porta se abrir e aqueles dois sair.

O garoto encarou-me com olhos arregalados e passou a lamber o vômito ainda quente. Eu quase pirei naquele momento, sentindo o estômago embrulhar novamente.

Depois que ele se fartou, sorriu e mordeu minha perna direita. Senti uma dor excruciante quando o fez. Gritei, horrorizado, sabendo que meu fim estava próximo.

Uma mulher surgiu pela esquina da escada e ralhou com o menino em uma língua estranha. Ele me soltou e pareceu amedrontado. Ela o agarrou pela camisa, dando-lhe um tapa no rosto. Eu ainda segurava a porta que se aquietara em minhas mãos.

— O que faz aqui, seu imundo? Esse lugar não é para você. Vá embora antes que te peguem.

— Eu trabalho aqui! Mas está diferente…

— Você não trabalha em Arret Além. Não gostamos de vocês. Saia logo daqui.

— Eu não sei como sair — respondi choramingando. Não tenho vergonha em dizer, depois de todo aquele horror.

— Vá para a escada e quando colocar pé no primeiro degrau feche os olhos. E nunca mais volte aqui. — ordenou com aqueles olhos negros, cheios de ódio.

Não esperei mais um segundo. Corri, meio mancando, pois onde o garoto me mordera estava latejando sobremaneira.

Assim que pus o pé na escada e fechei os olhos senti uma leve tontura. Cheguei a oscilar e isso me fez abri-los, já que tinha a sensação de que me estatelaria no chão. Agarrei-me à parede e vi que ela se encontrava imaculada como eu a conhecia. A luz estava novamente mais forte e os degraus limpos.

Mantive-me agarrado à parede, deixando o ar sair aos poucos. Mal percebi que o tinha prendido. Finquei os dois pés no chão e virei o corpo, aos poucos, ainda escorado na parede e foi com muito alívio que vi o corredor que levava até o necrotério limpo e ascético. Por mais que eu não quisesse, lágrimas gordas rolaram por meus olhos. Nesse momento o elevador abriu e, ainda assustado, vi o Dr. Campos o deixar e vir em minha direção, com o cenho franzido.

— O que aconteceu a você, rapaz? Está tudo bem? — questionou, curioso, ao ver-me de olhos arregalados.

— Eu… eu… estou bem.

— O que faz aqui? Parece que viu um fantasma? — sorriu de forma carinhosa, ainda mantendo o semblante preocupado.

— Eu não sei o que vi, doutor. Só sei que não estou me sentindo bem.

— Vamos para a sala. Quer um copo com água? Acho que está precisando.

Eu o segui, ainda sentindo o coração martelar no peito, disposto a saltar para fora. Entrei na antessala e vi minha mochila em cima da mesa, onde a deixara fazia… Incrédulo, ao olhar para o relógio, constatei que era ainda 11h37min. Passaram-se apenas sete minutos, quando para mim parecia que tinha estado horas naquele lugar medonho. Poderia eu ter tido um pesadelo macabro?

— Não sabia que tínhamos um corpo. — comentou Dr. Campos, olhando-me interrogativamente, já que sempre anunciava antes mesmo que ele perguntasse.

— Sim. Chegou há pouco. Um rapaz. Acho que foi um acidente.

Quando o doutor abriu o zíper encarei, incrédulo, as asas tatuadas em seu peito jovem e definido. Havia pontos de sangue nela, como se ele houvesse raspado no asfalto ao ter caído da moto. Entretanto quando a vi da primeira vez, a pele estava lisa, perfeita. Um pequeno risco escuro dividia seu peito ao meio, quase imperceptível, porém eu sabia que fora por ali que a velha tirara o coração e se e alimentara dele. Senti náuseas ao lembrar-me deles fatiando e se fartando.

A tontura se abateu sobre mim e fui amparado pelo Dr. Campos que me levou até o sofá, enquanto me encarava, desconfiado, mantendo os braços cruzados no peito.

— Quer me contar o que aconteceu? — ordenou, com o cenho franzido.

— Doutor, eu posso ir embora? Não estou em condições de lhe acompanhar. Acho que peguei alguma virose. Por favor…

Ele anuiu sem dizer palavra. Peguei minha mochila e deixei aquele lugar sem olhar para trás, mancando. Ao chegar em casa, quase enlouqueci ao erguer a barra do meu jeans, após me deixar cair no sofá, e ver a arcada perfeita dos dentes tortos do menino cravada em minha perna, pontilhadas de sangue e querendo infeccionar.

Até hoje trago a cicatriz e a filmagem no meu celular que comprovam que estive em outro lugar, Arret Além. Onde diabos fica isso, não sei. Só rogo a quem rege esses universos, que nunca mais me encontre nesse lugar maldito.

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