por Victor Alfons
A franquia Jogos Mortais é um fenômeno cultural e social que teve um impacto significativo no cinema de terror. Desde o lançamento do primeiro filme em 2004, a saga arrecadou mais de 1 bilhão de dólares em todo o mundo. Entre os filmes que mais trouxeram bilheteria, estão Jogos Mortais II (2005) com US$87,04 milhões, Jogos Mortais III (2006) com US$ 80,24 milhões e Jogos Mortais (2004) com US$ 56,00 milhões.
No entanto, a relevância cultural e social da franquia Jogos Mortais não se limita somente ao seu sucesso financeiro, já que a saga é conhecida por abordar questões polêmicas como justiça, moralidade, natureza humana, e críticas sociais.
Particularmente, penso que boa parte do sucesso da trama se deve justamente à forma como ela escolhe não abordar essas questões e, principalmente, pela ausência de conclusões e discussões significativas para as questões que decide tangencialmente levantar.
Contudo, a saga, ao mesmo tempo que apresenta um ponto de vista bastante preocupante sobre as questões sociais e humanas, também parece possuir breves momentos de lucidez e consciência de classe. Mas como diria o ditado: ”até mesmo um relógio parado está certo duas vezes por dia”.
Por esse motivo, neste artigo, busco examinar como a ideologia dominante é transmitida por meio da narrativa, dos personagens, da cinematografia e outros aspectos técnicos dos filmes. Por isso, dividi este texto em tópicos e escolhi falar, majoritariamente, sobre os três primeiros filmes, pois a trilogia apresenta uma estrutura com começo, meio e fim bem definidos e, como todo fã da franquia sabe, depois do terceiro filme, todos os outros filmes parecem ser feitos no improviso. Boa leitura!
A franquia Jogos Mortais
A franquia “Jogos Mortais” teve início em 2004 e é centrada no assassino conhecido como “Jigsaw”, que sequestra suas vítimas e as submete a testes de sobrevivência em que precisam enfrentar armadilhas terríveis. A ideologia do personagem principal, John Kramer, o homem por trás do assassino em série, é a de que “a vida é preciosa e que as pessoas não a valorizam”. Ele, portanto, usa seus jogos para ensinar essa lição a seus alvos. Algo bastante questionável, não é mesmo? Mas não se preocupe, como vamos ver, a saga insiste o tempo todo em justificar as ações de John e colocá-lo num status de semideus da lógica e da previsão da ação de terceiros, uma espécie de Kira norte americano, que, ao invés de ser um garoto ingênuo e sexy, porém incrivelmente inteligente, que acabou de sair do ensino médio, é um senhor de idade que acumulou muitos traumas na vida e decidiu que chegou a hora de punir o mundo (mas somente as pessoas que merecem) – o que prova que a idade não necessariamente traz mais sabedoria para um sujeito.
Em todos os filmes, os espectadores são apresentados a uma série de personagens que são colocados em situações extremas de sobrevivência como uma forma de engajar a plateia em uma verdadeira espécie de torture porn, afinal, os personagens sendo testados são todos pessoas horríveis, desprezíveis, cometedores de atos horrendos, verdadeiros monstros em pele humana. Há, portanto, um distanciamento. O público aceita e até torce para ver os atos de tortura extrema em tela, pois as pessoas sendo torturadas, de certa forma, merecem o seu destino.
No primeiro longa, um fotógrafo chamado Adam Stanheight e um oncologista chamado Lawrence Gordon acordam em uma sala suja e escura, com uma gravação que os informa que eles estão em um jogo mortal criado por Jigsaw. Eles têm de encontrar uma maneira de escapar antes que o tempo acabe, mas descobrem que têm que sacrificar partes do próprio corpo para se libertar das armadilhas que os prendem. No final, descobrimos que John Kramer, o homem que eles acreditavam ser um cadáver no quarto do banheiro, é o verdadeiro Jigsaw e, depois de Dr. Gorden cortar a própria perna e atirar em Adam, ele sai da sala deixando Adam para morrer.
O primeiro filme pode ser considerado uma obra prima do terror dos anos 2000, pois tinha uma estética bastante subversiva e bastante única para época, fazendo uma montagem característica com flashes da armadilha piscando na tela a cada segundo junto da música alta e agoniante, criando cenas horrorosas e memoráveis até os dias de hoje. Entretanto, ao longo da saga, esse estilo de montagem hip hop sangrento acaba perdendo o seu efeito simplesmente por ser repetida à exaustão nos 8 filmes subsequentes. É quase como se ela fosse se tornando irônica ao longo do tempo, a ponto de perder o seu sentido original já no segundo filme.
De qualquer forma, a franquia continuou e rendeu e, a cada novo filme, mais histórias, personagens e subplots eram criadas para justificar as ações do assassino e colocando John Kramer em um status de semideus da previsão e da lógica, que sempre tem um novo aliado secreto para ajudar a continuar com o seu plano de testar a humanidade no seu jogo sádico mesmo após a sua morte no terceiro longa.
Apesar da obra ter várias histórias e personagens interessantes, como Amanda Young, a discípula de Jigsaw que aparece com mais protagonismo no segundo e no terceiro filme, gostaria de focar este artigo nas vítimas de Jigsaw e seus aprendizes ao longo dos 9 filmes e tentar analisar quais seriam os padrões encontrados na justificativa de cada uma das mortes, pois isso pode nos dizer um pouco mais sobre a ideologia dos assassinos da saga, incluindo John Kramer, e, por que não, dos produtores por trás da obra e da sociedade que produziu esses filmes.
Para isso, vou fazer um pequeno resumo de cada filme e listar as vítimas mostradas ao longo de cada um e o motivo de terem sido escolhidas para os Jogos Mortais, para depois fazer análise para ver se conseguimos encontrar padrões que revelem alguma coisa sobre o viés por trás da franquia.
Tarefa difícil, não? Então considere ajudar a Última Página a crescer por meio do nossa campanha no Catarse:
Apoie a literatura brasileira com a Última Página! Conheça o projeto no Catarse!
As vítimas
Vamos começar nossa análise com um levantamento de todas as vítimas da franquia até o momento:
Jogos Mortais
No primeiro filme da franquia Jogos Mortais, Jigsaw faz as seguintes vítimas:
- Dr. Lawrence Gordon – escolhido porque teve um caso extraconjugal com uma de suas estudantes de medicina e por falta de empatia com seus pacientes;
- Adam Stanheight – foi escolhido por ser egoísta, desrespeitoso com a privacidade alheia, arrogante e desonesto. Ele trabalhava espionando outras pessoas e ocultava informações cruciais para favorecer seus próprios interesses;
- Zep Hindle – escolhido para havia perdido sua empatia e compaixão e estava disposto a cometer atos violentos para satisfazer seus desejos pessoais. As falhas de caráter de Zep incluíam sua personalidade sadística e sua necessidade de se sentir poderoso;
- Amanda Young – escolhida porque é uma viciada em heroína e, portanto, “não valoriza a vida”;
- Paul Leahy – Tentou cometer suicídio e, portanto, não valoriza a vida;
- Mark Wilson – Fingia estar doente para enriquecer às custas de outras pessoas;
- Jeff Ridenhour – Razão de ser escolhido desconhecida.
Além desses personagens, Jigsaw também sequestra a esposa e a filha do Dr. Gordon e as mantém reféns para incentivar Gordon a jogar o jogo. No entanto, eles não são escolhidos para jogar diretamente. No primeiro filme, também vemos outras vítimas
Jogos Mortais II
Agora veja a lista de vítimas de Jogos Mortais II:
- Michael Marks – escolhido devido à sua luta contra o vício em drogas, o fato de ser um informante e sua associação com o detetive Eric Matthews;
- Daniel Matthews – filho do detetive Eric Matthews. Foi sequestrado gratuitamente para forçar seu pai, o Detetive Eric Matthews a se envolver com Jigsaw.
- Xavier Chavez – traficante de drogas. Foi escolhido por Jigsaw devido à sua profissão de traficante de drogas, por sua conexão com o detetive Eric Matthews e por falhas morais que incluem uma propensão à violência, sua tendência a colocar suas próprias necessidades acima das necessidades dos outros e sua falta de empatia e compaixão pelos outros
- Jonas Singer, Addison Corday, Laura Hunter, Obi Tate e Gus Colyard – escolhidos porque foram injustamente incriminados pelo De Eric Matthews. A escolha de Jigsaw para incluí-los no jogo estava ligada à injustiça que sofreram e à corrupção de Eric Matthews como policial.
No final, é revelado que Eric é só parte de um plano geral de John Kramer de testar de Amanda Young, trama que é resolvida no filme seguinte.
Jogos Mortais III
O terceiro filme da franquia é com certeza um dos mais elaborados e, embora decepcionante para muitos, é um dos que eu, pessoalmente, acho mais divertidos, justamente por conta do final inacreditavelmente pessimista e sangrento. É, sem dúvidas, o filme mais sanguinário da franquia e deu o tom para os filmes posteriores.
Esse episódio é um dos mais marcantes, pois marca a morte de John Kramer e causa uma reviravolta que só vai complicar a franquia desnecessariamente ao longo dos anos, transformando o roteiro em um grande novelão, com cada vez mais “verdades secretas”.
A seguir, como discutido, a lista de vítimas fatais do terceiro filme. Neste filme, tanto John Kramer, quanto Amanda Young estão testando vítimas, com a diferença de que Amanda está criando “armadilhas impossíveis” (como se as do próprio John Kramer fossem algo justificável) e por isso deve ser testada novamente. Entenda:
- Troy – Teste feito por Amanda. Escolhido porque é um criminoso reincidente que, apesar de ter passado a maior parte de sua vida na prisão, não mostrou nenhum remorso ou vontade de mudar seu comportamento criminoso
- Detetive Allison Kerry – Teste de John Kramer. Foi escolhida porque tinha uma obsessão mórbida pela morte. Ela frequentemente analisava as cenas do crime com uma atitude quase entusiástica, o que perturbava alguns de seus colegas.
- Dra. Lynn Denlon – Teste de John Kramer. Foi sequestrada por Amanda Young e teve que manter John Kramer, que estava em péssimo estado de saúde e quase morrendo, vivo enquanto outro jogo acontecia. Sua armadilha estava conectada ao monitor cardíaco de John e detonaria se ele morresse ou se Lynn se movesse fora do alcance. Foi escolhida porque traía o marido e negligenciava a própria filha;
- Jeff Denlon- Teste de John Kramer. Perdeu o filho em um acidente de carro e ficou obcecado por vingança, a ponto de negligenciar a filha ainda viva. Teve que passar por vários testes, liderando-o até o homem responsável pela morte de seu filho.
- Danica Scott – Teste de John Kramer. Foi a única testemunha da morte do filho de Jeff, mas se recusou a testemunhar contra o motorista bêbado que acabou recebendo uma sentença branda. Foi presa nua em uma sala refrigerada e seu corpo foi pulverizado com água gelada em intervalos regulares. Jeff teve que escolher entre salvá-la ou deixá-la morrer.
- Juiz Halden – Teste de John Kramer. Era o juiz que presidiu o caso da morte do filho de Jeff. Foi escolhido porque deu uma pena muito branda para o assassino do filho de Jeff.
- Timothy Young – Teste de John Kramer. Era o motorista bêbado que matou o filho de Jeff em um acidente de carro. Foi preso em uma armadilha que torcia lentamente seus membros e sua cabeça. Jeff tentou salvá-lo, mas falhou.
- Amanda Young – Teste de John Kramer. Sobreviveu a um dos jogos de Jigsaw e se tornou sua aprendiz. Foi escolhida, pois manipulou as armadilhas de Troy e Allison e deixou Eric Matthews para morrer;
- O próprio John Kramer – Jeff foi instruído a matar John ou perdoá-lo pelo sofrimento causado a ele e sua esposa. Jeff escolheu matá-lo, mas descobriu que sua filha Corbett havia sido sequestrada. Ele tem que passar por outro jogo para salvá-la. John morreu devido a ferimentos causados por Jeff e Lynn morreu devido à armadilha de Amanda detonando.
É um final de trilogia excelente, na minha opinião, mas ele tem um tipo de dissonância cognitiva. É quase como se o filme justificasse as ações de John Kramer, pois ao menos ele criava armadilhas com chances reais de se escapar, diferente de Amanda ou qualquer um dos outros seguidores dele nos filmes posteriores.
A partir do terceiro filme, a plot se torna uma bagunça, com cada vez mais flashbacks sendo adicionados para justificar as ações de John Kramer e nenhuma tentativa de discutir os mesmos temas dos três primeiros filmes, então vou tentar ser breve e levantar somente as principais vítimas.
O resto da trama principal
A partir de Jogos Mortais IV, a saga começa a “requentar” uma fórmula que vai se repetir ao longo dos seis filmes posteriores, isto é, o atual seguidor de Jigsaw faz armadilhas para novas vítimas enquanto é testado em um jogo que John Kramer preparou antes da morte no terceiro filme, provando que ele é um semi-deus da lógica e da previsão mais habilidoso que L, N ou Light Yagami.
Jogos Mortais IV começa com a autópsia do corpo de John Kramer. Dentro do corpo, há uma fita informando que os jogos vão continuar. Jigsaw ganha um novo seguidor, Mark Hoffman, cujo arco só irá terminar em Jogos Mortais 3D, o sétimo filme da franquia, em é revelado que o Dr. Lawrence Gordon, o médico que cortou o próprio pé no primeiro filme, também é um seguidor de Jigsaw, que testa Mark Hoffman mais uma vez, levando-o, finalmente, à morte e fechando a Odisséia de flashbacks improvisados.
Por esse motivo, a seguir vou só colocar um levantamento das vítimas feitas nos filmes posteriores ao terceiro, ou seja, após John Kramer morrer, e não vou entrar em detalhes sobre a trama de cada um dos filmes.
Jogos Mortais IV
Analisando a trama de Jogos Mortais IV, as vítimas do filme são:
- Trevor: razão de ter sido escolhido desconhecida, mas o filme dá a entender que é porque ele toma ações precipitadamente;
- Brenda: escolhida por ser uma cafetina;
- Ivan Landsness: escolhido por ser um estuprador violento;
- Rex: suspeito de abusar fisicamente de sua filha;
- Eric Matthews: Um detetive que é mantido refém desde Jogos Mortais II;
- Art Blank: advogado escolhido por defender pessoas que são culpadas;
- Jeff Denlon: Um dos protagonistas do terceiro filme;
- Daniel Rigg: escolhido por conta da sua obsessão em salvar outras pessoas, o que faz com que tome ações precipitadas e equivocadas;
Jogos Mortais V
As vítimas em Jogos Mortais V são:
- Seth Baxter: escolhido porque assassinou uma mulher;
- Ashley Kazon: escolhida porque fez um relatório de acidente para encobrir um incêndio criminoso em que oito pessoas foram mortas;
- Charles Salomon: escolhido porque ocultou seu conhecimento sobre um caso de incêndio criminoso em que oito pessoas foram mortas;
- Luba Gibbs: escolhida porque forneceu licenças de construção irregulares em troca de subornos;
- Peter Strahm: escolhido por sua obsessão em resolver o caso de Jigsaw.
Jogos Mortais VI
- Eddie – escolhido porque é um agiota;
- Hank – fumava muito, apesar de um histórico de problemas de saúde;
- Allen – escolhido porque trabalhava para William Weston;
- Debbie – morta pelo dispositivo que atirou uma lança em sua cabeça, pois não conseguiu desativá-lo a tempo.
- Aaron, Gena, Dave e Josh – mortos por tiros de espingarda no carrossel, já que William só poderia salvar dois deles (Emily e Shelby).
- William Weston – Escolhido por recusar o seguro de saúde para pessoas com condições terríveis e tratáveis.
Razão de estarem no jogo: Todos estavam envolvidos direta ou indiretamente com a empresa de seguro de saúde Umbrella, que tinha práticas questionáveis ao negar coberturas de tratamento médico para clientes com base em motivos espúrios.
Jogos Mortais 3D
No filme Jogos Mortais 3D (Jogos Mortais VII), as vítimas e o motivo de terem sido escolhidas são:
- Dina – namorada de Brad e Ryan, que os traiu.
- Brad – Cometeu crimes para suprir as necessidades materiais de Dina;
- Ryan – Cometeu crimes para suprir as necessidades materiais de Dina;
- Evan, Kara, Dan e Jake – um grupo de skinheads racistas, escolhidos justamente por esse motivo;
- Bobby Dagen – escolhido por mentir para ficar famoso dizendo que sobreviveu a uma das armadilhas de Jigsaw;
- Nina – publicitária que publicou mentiras na imprensa;
- Suzanne – advogada de Bobby Dagen, que ajudou o personagem a esconder suas mentiras;
- Cale – melhor amigo de Bobby Dagen. Foi escolhido por ajudar Bobby a mentir;
- Joyce – escolhida por ser muito consumista e lucrar (mesmo que sem saber), das mentiras de seu marido, Bobby Dagen;
- Jill Tuck – morta por Mark Hoffman;
- Mark Hoffman – sucessor e ex-cúmplice de John Kramer, é capturado por Dr. Lawrence Gordon e é deixado para morrer acorrentado em um banheiro, como parte do legado de Jigsaw.
As continuações
Depois de Jogos Mortais 3D, os outros dois filmes da franquia dão continuidade a história, mas, diferente dos outros longas, não se passam um imediatamente após o outro, mas anos depois dos eventos do sétimo filme.
O primeiro filme, Jigsaw, revela o verdadeiro primeiro ajudante de John Kramer, o legista Logan Nelson, que aparece em outros filmes. O segundo, “Espiral – O Legado de Jogos Mortais”, considerado por muitos um “reboot da franquia”, aborda a corrupção dentro do departamento de polícia, com um novo assassino usando métodos semelhantes aos de John Kramer (o assassino Jigsaw) para punir policiais corruptos e expor suas ações ilícitas.
Vamos, então, à lista de vítimas e motivos de cada um desses filmes:
Jigsaw
Lista de vítimas e motivos:
- Homem desconhecido (primeiro jogo) – o motivo não foi revelado no filme;
- Carly – causou a morte de uma mulher asmática quando roubou a bolsa dela, que continha o inalador;
- Ryan – causou um acidente de carro fatal na juventude, matando dois amigos e outro motorista, e colocou a culpa em seu amigo para evitar punição;
- Anna – sufocou seu bebê em um acesso de raiva e incriminou seu marido, Matthew, que depois cometeu suicídio no hospital psiquiátrico.
- Mitch – Vendeu uma motocicleta com freios defeituosos para o sobrinho de John Kramer, que morreu em um acidente.
Espiral – O Legado de Jogos Mortais
Lista das vítimas em Espiral – O Legado de Jogos Mortais e os motivos de terem sido escolhidas:
- Detetive Marv Bozwick – escolhido por ter dado falso testemunho no tribunal e ter permitido que criminosos escapassem da justiça;
- Detetive Fitch – escolhido por ter assassinado um homem que o insultou durante uma abordagem policial;
- Peter Dunleavy – escolhido por ter atirado em uma testemunha para proteger outro policial corrupto;
- Capitã Angie Garza – escolhida por ter ajudado a instituir a Lei do Artigo 8, que permitiu que vários policiais corruptos escapassem impunes;
- Marcus Banks: escolhido pelo seu papel encobrindo a corrupção policial no departamento;
- Ezequiel “Zeke” Banks: escolhido por envolvimento em conspiração para encobrir corrupção policial, por reter informações de seus colegas e por sua recusa em trabalhar com outras pessoas.
Padrões identificados
Após analisar cuidadosamente a lista de vítimas em todos os jogos, podemos identificar alguns padrões e os motivos recorrentes pelos quais os personagens são escolhidos para serem testados. A partir disso, conseguimos elencar alguns comportamentos que a franquia considera condenáveis e, portanto, digno de ser punido. São eles:
Falhas Morais e Comportamentais:
A maioria dos personagens escolhidos como vítimas apresenta comportamentos considerados imorais, antiéticos ou socialmente inaceitáveis, como traição, vício em drogas, mentiras, desrespeito à privacidade dos outros, comportamento criminoso, e até mesmo assassinato.
Profissões e Papéis Sociais
Muitos personagens são escolhidos por causa de suas profissões ou papéis na sociedade, especialmente se estes papéis estiverem associados a corrupção, imoralidade ou injustiça, como detetives corruptos, traficantes de drogas, agiotas, advogados que defendem pessoas culpadas, e pessoas envolvidas em esquemas de seguros de saúde.
Falta de Valorização da Vida
Uma característica comum a muitas vítimas é a falta de valorização da vida, seja a sua própria ou a dos outros. Este padrão se manifesta de várias maneiras, como vício em drogas, comportamento suicida, assassinato, e negligência para com os outros.
Retribuição e Justiça
Outro padrão recorrente é o tema da retribuição e justiça. Muitos personagens são escolhidos porque cometeram atos de injustiça ou porque foram injustiçados. A ideia de punição e retribuição é central para a franquia.
Abuso de poder
Várias das vítimas em Jogos Mortais são indivíduos que ocupam posições de autoridade ou poder e os utilizam de maneira prejudicial ou injusta. Por exemplo, o detetive Eric Matthews, que incriminou inocentes, e William Weston, que recusa seguro de saúde para pessoas com condições sérias e tratáveis.
Desonestidade e falsidade
Muitas vítimas são punidas por suas ações “desonestas” ou “falsas”.
Por exemplo, Bobby Dagen, que mentiu sobre ter sobrevivido a uma das armadilhas de Jigsaw para ganhar fama, ou Anna, que sufocou seu bebê em um acesso de raiva e incriminou seu marido.
Negligência e falta de consideração pelos outros
Algumas vítimas parecem ser escolhidas por negligenciar os outros ou por serem egoístas.
Por exemplo, Jeff Denlon, que fica tão obcecado por vingança que negligencia sua filha ainda viva.
Vício
Muitas das vítimas são escolhidas devido a algum tipo de vício, seja em drogas, como Amanda Young e Michael Marks, ou comportamental, como Allison Kerry, que tem uma obsessão mórbida pela morte.
Abuso de confiança
Algumas vítimas são pessoas que abusaram da confiança que lhes foi dada, como Art Blank, o advogado que defendia pessoas culpadas.
Violência
Algumas vítimas são escolhidas por terem cometido atos de violência, como Ivan Landness, que é um estuprador violento, e Xavier Chavez, um traficante de drogas que é retratado como sendo um homem muito propenso à violência naturalmente.
Corrupção
Algumas vítimas são corruptas de alguma maneira, como Luba Gibbs, que forneceu licenças de construção irregulares em troca de subornos, ou os detetives Marv Bozwick e Fitch, que deram falso testemunho e cometeram assassinato, respectivamente.
Papel na morte de outros
Algumas vítimas são escolhidas por terem causado a morte de outros, como Carly, que causou a morte de uma mulher asmática ao roubar a bolsa dela, e Timothy Young, que matou o filho de Jeff em um acidente de carro.
Ações antiéticas no trabalho
Algumas vítimas são punidas por comportamentos antiéticos em seus trabalhos, como Ashley Kazon e Charles Salomon, que encobriram um incêndio criminoso, e o Dr. Lawrence Gordon, que teve um caso extraconjugal com uma de suas estudantes de medicina.
Complacência com o mal
Algumas vítimas são escolhidas porque foram complacentes com o mal feito por outros, como Suzanne e Cale, que ajudaram Bobby Dagen a esconder suas mentiras, ou Danica Scott, que se recusou a testemunhar contra o motorista bêbado responsável pela morte do filho de Jeff.
Desumanização
Algumas vítimas são punidas por desumanizar outros, como Evan, Kara, Dan e Jake, um grupo de skinheads racistas.
Falha em valorizar a segunda chance
Algumas vítimas são escolhidas por não aproveitarem a segunda chance que receberam, como Troy, que continuou a cometer crimes apesar de passar a maior parte de sua vida na prisão.
Ganância
Algumas vítimas são escolhidas por sua ganância e egoísmo, como Brad e Ryan, que cometeram crimes para satisfazer as necessidades materiais de Dina.
Fracasso em agir corretamente
Algumas vítimas são escolhidas por falharem em agir de maneira justa e correta, como a Juíza Halden, que deu uma pena muito branda ao assassino do filho de Jeff.
Cumplicidade
Algumas vítimas são escolhidas por serem cúmplices em atos errados, como Suzanne e Cale, que ajudaram Bobby Dagen a esconder suas mentiras.
Destruição da própria saúde
Algumas vítimas são escolhidas por destruírem a própria saúde, como Hank, que fumava muito apesar de ter problemas de saúde.
Que ideologias conseguimos identificar nos filmes?
Com base em tudo que vimos até agora, podemos dizer que a franquia Jogos Mortais reflete uma variedade de ideologias, revelando muito sobre nossa sociedade e nossos medos coletivos.
Aqui estão algumas das ideologias mais proeminentes retratadas na série:
Punitivismo
O punitivismo é a crença de que a punição por crimes deve ser severa e inflexível. Em Jogos Mortais, essa ideologia é evidente na forma como John Kramer trata suas vítimas, buscando punir comportamentos imorais ou antiéticos através de meios violentos e brutais.
Moralismo
O moralismo é a tendência de fazer julgamentos morais estritos, frequentemente aplicando um conjunto rígido de princípios éticos. Na franquia, John Kramer apresenta um forte moralismo, punindo aqueles que ele vê como moralmente corruptos.
Idealismo
O idealismo, em seu sentido mais amplo, é a crença na perfeição moral e na possibilidade de alcançá-la. John Kramer, em sua busca distorcida para “curar” suas vítimas de suas falhas morais, reflete uma forma pervertida de idealismo.
Neoliberalismo
O neoliberalismo é uma ideologia que enfatiza a autonomia individual, a propriedade privada e a liberdade de mercado. John Kramer parece adotar essa ideologia, responsabilizando as pessoas individualmente por suas ações e negligenciando as condições socioeconômicas que podem influenciar o comportamento humano.
Individualismo
O individualismo, semelhante ao neoliberalismo, enfatiza a autonomia e a responsabilidade individual. John Kramer, ao responsabilizar seus alvos por suas ações sem considerar o contexto mais amplo, reflete essa visão de mundo.
Utilitarismo
O utilitarismo é uma doutrina ética que valoriza a maximização da felicidade geral, muitas vezes custe o que custar.
Embora distorcido, John Kramer adota uma abordagem utilitarista, sacrificando algumas vidas na esperança de inspirar uma mudança moral em outros.
Fatalismo
O fatalismo, a crença de que todos os eventos são predeterminados e, portanto, inevitáveis, também é retratado na franquia Jogos Mortais
John Kramer parece acreditar que suas vítimas estão destinadas a enfrentar suas armadilhas como uma consequência inevitável de suas ações passadas.
Social Darwinismo
O Social Darwinismo, uma ideologia que aplica a teoria da evolução de Darwin às sociedades humanas, é evidente na forma como John Kramer seleciona suas vítimas. Ele parece acreditar que aqueles que não conseguem superar suas armadilhas não merecem sobreviver.
Absolutismo Moral
O Absolutismo Moral é a crença na existência de princípios morais universais e absolutos. John Kramer parece aderir a essa visão, aplicando sua própria versão distorcida de justiça àqueles que ele acredita terem violado esses princípios.
Determinismo
O determinismo é a crença de que todos os eventos, incluindo o comportamento humano, são determinados por causas anteriores. John Kramer pode ser visto como um determinista, na medida em que ele acredita que os pecados passados de suas vítimas inevitavelmente levam a sua captura e punição.
Existencialismo
O existencialismo é a filosofia de que os indivíduos são livres e responsáveis por suas próprias ações. Essa ideologia pode ser vista na maneira como Kramer coloca suas vítimas em situações em que elas devem fazer escolhas de vida ou morte.
Conservadorismo
O conservadorismo é uma ideologia que valoriza a tradição e a ordem social. A ênfase de Kramer na punição e na responsabilidade moral pode refletir uma visão de mundo conservadora.
Maquiavelismo
O maquiavelismo é a crença de que os fins justificam os meios. Kramer, ao infligir dor e sofrimento em nome de uma “cura” moral, demonstra uma forma distorcida de maquiavelismo.
Humanismo Secular
O humanismo secular é uma ideologia que enfatiza a razão, a ética e a justiça, enquanto rejeita a sobrenaturalidade. Embora distorcida, a missão de Kramer de forçar os outros a valorizar suas vidas pode refletir uma visão de mundo humanista secular.
O que podemos concluir?
A franquia de filmes Jogos Mortais, liderada pelo personagem John Kramer, apresenta uma visão singular da justiça e punição que destaca a intolerância em relação a falhas morais e comportamentais. As vítimas são cuidadosamente selecionadas com base em padrões de comportamento que ele considera inaceitáveis ou degradantes, mas que podem perfeitamente serem consideradas normais no mundo contemporâneo, como vício em drogas e até mesmo depressão e “falta de gratidão” por uma segunda chance na vida.
Essa abordagem ao julgamento moral, entretanto, é perigosa e irracional, especialmente quando consideramos a complexidade da condição humana e a multiplicidade de fatores que moldam o comportamento e as escolhas das pessoas. A penalização por falhas morais ou comportamentais não leva em conta as circunstâncias que podem ter levado a pessoa a tais atos, como condições socioeconômicas, doenças mentais, entre outras.
Esse sistema de pensamento propagado por John Kramer na franquia Jogos Mortais ecoa ideologias contemporâneas, como o punitivismo e o neoliberalismo. O punitivismo, em particular, defende a ideia de que o crime deve ser punido com severidade, independente de suas causas subjacentes. Essa visão, além de simplista, ignora os complexos problemas sociais que frequentemente levam ao crime.
Por outro lado, a franquia Jogos Mortais também pode ser interpretada como uma extensão da ideologia neoliberal, na qual o indivíduo é visto como o único responsável por suas ações e seu bem-estar. John Kramer, ao condenar seus alvos baseando-se exclusivamente em suas ações, ignora as forças estruturais que moldam o comportamento humano. Essa visão individualista, no entanto, ignora o fato de que somos seres sociais, cujas ações e decisões são influenciadas por uma variedade de fatores além de nosso controle imediato.
A franquia Jogos Mortais, porém, não é totalmente desprovida de crítica social. Em Jogos Mortais VI, por exemplo, o filme tece um comentário sobre o problemático sistema de saúde norte-americano. Este parece ser um breve momento de lucidez em meio a uma série de filmes que frequentemente apela para um moralismo simplista e retributivo.
No entanto, a representação de John Kramer como quase herói é preocupante, especialmente em filmes posteriores da franquia, onde suas armadilhas e planos ultrapassam sua morte, tornando-o quase onisciente. Esse culto à figura de John Kramer é, no mínimo, surreal e talvez seja essa loucura que faça parte do apelo da franquia.
Ainda assim, a franquia poderia aprofundar-se mais em seus temas. No último filme, Spiral, embora o tema central seja a corrupção na polícia, essa inovação é ofuscada pela necessidade de se manter uma estética que já se tornou ultrapassada. Para mim, pessoalmente, foi uma grande chance desperdiçada.
E, embora a franquia Jogos Mortais possua uma visão de mundo complexa, refletindo aspectos das ideologias dominantes que oferecendo momentos de “crítica socia foda”, seu idealismo moralista e a glorificação exacerbada de seu protagonista são, no mínimo, problemáticos. Afinal, a humanidade e a moralidade não são tão simples como a franquia parece sugerir nos seus momentos mais interessantes.
Em outras palavras, a saga parece, na verdade, não querer dizer nada. Os produtores estavam mais interessados em fazer armadilhas malucas do que em propor um debate filosófico interessante ou instigante, e isso, para mim, é um desperdício e que gera problemas para a obra como um todo.
Ao não querer dizer nada com a sua obra, os produtores acabam simplesmente reproduzindo ideologia dominante na tela, de uma maneira acrítica, que, em muitos momentos, retrata as ações de John Kramer como quase divinas, com o personagem sendo tratado basicamente como um Deus a partir do quarto filme. E isso tudo, amigas e amigos leitoras da última página, é um verdadeiro desperdício de tempo e sanidade.
Deixe um comentário