Papafigo Ponto Com

Fernando Fiorin

Papa figo é uma figura lendária do folclore brasileiro, conhecida principalmente em Pernambuco, Bahia e na Paraíba. Há relatos que ele se parece com uma pessoa normal; para outros, teria unhas de ave de rapina, e orelhas e dentes de vampiro. Ele matava meninos e meninas mentirosos para chupar-lhes o sangue e comer-lhes o fígado (daí o nome, corruptela de papa-fígado). Isso porque ele sofria de uma doença rara, que lhe dava uma aparência assustadora o que explicaria suas deformidades, e acreditava que sangue e fígado de crianças o curariam.

– Wikipédia

Prelúdio

Lollyta.Egirl.ebony: gente pelamor de deus chama a polícia pra mim ele ta quase entrano

Duke.Noob: kkk quem ta entrano onde

Lollyta.Egirl.ebony: é sério moleque ele ta arranhano a porta do quarto logo ele entrão

Sasukeboylixo: que tosca naum sabe nem escreve

Lollyta.Egirl.ebony: vai se fude seu boy lixo ele vai me mata

Sasukeboylixo: quem vai te mata sua doida

Lollyta.Egirl.ebony: o papafigo mano ele ta quase entrano ja chama a policia pra mim

Duke.Noob: kkk que comedia o papafigo que viaje

Sasukeboylixo: Para de ri da mina seu lixo pode se serio

Duke.Noob: olha o gado vai la ajuda ela entaum

Lollyta.Egirl.ebony: e serio gente eu vou morre ja chamei mais eles naum vem acha que e trote

Duke.Noob: kkk entao vc se fudeu

Sasukeboylixo: F

Um

Não sei como me meti nessa.

Mentira, eu sei sim, só estou tentando me enganar, mas a verdade é que eu causei isso para mim mesma. E por isso vou morrer.

Eu escuto as unhas dele do lado de fora, elas são afiadas iguais às garras de uma onça. Não sei quanto tempo essa porta vai aguentar, parece que o bicho está rasgando ela como se fosse papelão. Isso faz com que eu me sinta igual à moça de um filme que meu pai gostava de assistir.

Nunca vi inteiro, não tenho saco para me sentar e ver um negócio que leva duas horas ou mais para acabar, mas eu me lembro da cara de desespero da mulher, quando o marido dela, acho que possuído pelo demônio ou alguma coisa assim, começa a derrubar a porta na base da machadada.

Quando eu era novinha eu rachava de rir com os filmes de terror que minhas amigas adoravam assistir. Elas falavam que eu ria de nervoso, para esconder o medo, mas agora que sou mais velha e já tenho dezesseis anos eu sei que não era isso não. Eu achava bem tosco mesmo e não via como a gente podia sentir medo daqueles negócios mal feitos.

Mas a moça do filme que meu pai gostava realmente tinha a cara do medo. Uma vez eu vi em algum lugar, acho que no Reels, que o diretor do filme fez umas coisas lá na filmagem para deixar a atriz daquele jeito. Acho que ele deixou a coitada doida ou algo assim.

Eu sei que a cara dela é a cara mais verdadeira porque é a minha cara agora. O barulho da madeira rasgando e sendo puxada, ao mesmo tempo em que eu olho em volta e não vejo para onde ir, já que na janela desse quarto tem grade e não dá para sair por lá, não me deixa outra sensação a não ser a de que eu não tenho como escapar dessa com vida.

E se eu falar que a culpa é minha ninguém vai acreditar, já que nem eu acreditava antes de mexer com essas coisas esquisitas. Eu sempre achei engraçada a palavra Folclore, para mim era tipo uma história de série nacional ruim, agora eu sei que não é bem assim.

E tudo começou faz uns três ou quatro anos, quando a história do Papa-figo começou a se espalhar na internet. Mas para mim era igual à lenda da Loira do Banheiro ou do homem do saco.

Tem coisa que a gente vê na internet e só dá risada.

Mas agora eu não estou mais rindo. A mão dele cheia de garras já atravessou um buraco e a porta vai ceder a qualquer momento. E aí eu morro.

Dois

A primeira vez que ouvi falar do Papa-figo da internet eu tinha doze anos. Estava fuçando em algum site sobre bizarrices ao mesmo tempo em que entrava nos chats para ler os absurdos que as pessoas escrevem.

Entre uma cantada ruim de algum adulto tarado e uma história sem graça de outra pessoa desesperada por atenção eu conheci um idiota com o nickname “Não Tenho Tinder” e a amizade foi quase que instantânea, mesmo com um nick tão merda feito esse. Eu acabara de ler a notícia sobre uma jovem que fora assassinada no interior do Pará e comentei com ele, dando ênfase ao detalhe de que o assassino levou o fígado da menina embora.

Com um ar de professor ele começou a me explicar sobre o tal Papa-figo. Falou que o bicho atacava mais no norte e no nordeste, mas que graças à internet agora ele conseguia agir em qualquer lugar do Brasil. Se não me engano a nossa conversa foi mais ou menos assim:

– Tá, mas como ele consegue agir através da internet em qualquer lugar do Brasil?

– Então, dizem que ele consegue atravessar a tela do seu computador, se você deixa-lo desligado por muito tempo.

– Sério? Então eu ele não pega, porque o meu computador nunca fica desligado.

– Mas ele não ataca por qualquer motivo. Ele ataca só as crianças que não se comportam, as mais arteiras.

– Que engraçado o jeito que você fala. Mas ainda bem que não sou mais criança.

– Quantos anos você tem?

– Tenho dezessete.

– Ele também vai atrás de criança mentirosa, sabia?

– Como você é engraçado. E quantos anos você tem?

– Melhor não dizer, senão você não vai mais querer falar comigo.

– Pronto, aposto que é um velho de trinta anos querendo me comer.

– Olha as ideias. Eu tenho treze anos.

– Que novinho, você ainda é um moleque. Como sabe tanta coisa?

– O meu melhor amigo foi morto pelo Papa-figo. Desde então eu estou de olho para não me foder também.

– Para de inventar mentira.

– Não é mentira. É serio, fica esperta, não fica escrevendo besteira na internet e não tenta chamar a atenção dele.

– E como eu faria isso?

– Eu vou te falar para você saber o que não deve fazer. Mas fica esperta, NÃO FAÇA ISSO NUNCA, ou ele irá atrás de você, entendeu?

– Sim. O que eu não devo fazer?

– Nunca escreva o nome dele e depois a frase: “Vem me pegar se fores capaz” três vezes.

– Só isso? Mais fácil do que chamar a Loira do Banheiro.

– Menina, isso não é brincadeira. Por favor, me prometa que nunca vai fazer isso, estou falando sério de verdade.

– Eu prometo.

– De verdade?

– Sim, eu prometo.

– Ok, então eu vou confiar em você.

Nós falamos sobre o Papa-figo mais um tempão, ele me contou de outros casos e eu fui pesquisando e ficando impressionada, com os relatos de jovens mortos e que tiveram o fígado arrancado, mas vi também que há uma teoria de que esses órgãos são vendidos no mercado negro para pessoas ricas que precisam fazer um transplante, então para mim nem tinha nada de sobrenatural.

Era a maldade humana por trás da história.

Nós nos mantivemos amigos online por muitos anos, acho que dois ou três, mas um dia ele começou a namorar outro menino e parou de falar comigo. Creio que essas coisas acontecem depois de um tempo, nada dura para sempre. Nunca descobri o nome verdadeiro dele e nem de onde ele era, acho que devia ser do nordeste, mas nunca tive certeza, mas foi um dos melhores amigos que eu já tive.

E com o tempo eu acabei esquecendo dele e do juramento, só não esqueci de como dava para invocar o bicho, o que foi a minha desgraça.

Três

Vocês são tudo umas peida-frouxo.

A risada que eu soltei saiu tão alto que atrapalhou o jogo da galera.

Os meninos até pararam de jogar e começaram a rir, atrapalhando totalmente o nosso time e nos fazendo perder a partida online. O outro time não teve piedade da gente, caçando cada um dos avatares e dando fim neles.

Nós nem nos importamos, continuamos rindo por mais alguns minutos, mesmo depois da partida encerrada.

Gabriel, que tinha falado aquilo para mim e para Soraya começou a ficar bravo porque a gente não parava de rir da cara dele. Ele começou a ficar vermelho e fechou a tela deixando só o áudio ligado. Suas palavras soavam ríspidas e venenosas.

– Vai se foder vocês. A gente perdeu de novo.

– Grandes coisas, Gabe. A gente é tudo noob mesmo, que diferença faz?

– Mas se não jogarmos sério nunca vamos ganhar de ninguém.

– Gabe, a gente joga para se divertir, não para ganhar.

– Que papinho merda. Acho que vou procurar outro time então.

– Que time é teu, Gabe?

– Ai mano, vai se foder, na moral.

– Falando sério, faz o que achar melhor. A gente tá nessa só para passar um tempinho mesmo.

– Vocês são um bando de trouxa, isso sim. Até nunca mais.

E com isso ele saiu da chamada, provavelmente para nunca mais voltar. Minutos depois já não estava mais no nosso grupo de chat e nem no grupo do jogo. Não levou dois minutos até um de nós começar a detonar o coitado.

– Que peida-frouxo, ele saiu mesmo.

– Peida-frouxo é foda. De onde tiraram isso?

– Meu avô fala assim.

– Ele deve ser uma figura.

– Ô se é. E conta umas histórias muito loucas.

– Tipo quais?

– Ontem ele me contou uma de lobisomem que eu realmente fiquei com medo.

– Capaz!

– Tô te falando. Eu tive que dar uma desculpa para ir ao banheiro, porque tava ficando realmente assustado. O jeito que ele conta parece real mesmo.

– Real tipo o Papa-figo da internet?

– Cala a boca! O Papa-figo da internet é uma invenção merda do povo lá do Ceará! Isso é uma viagem só.

– Nossa mano, como você é preconceituoso.

– Não é preconceito! Isso veio lá do Ceará, ouvi falar que um maluco ficou doidão de crack e arrancou o fígado de um cara que morava com ele, aí inventaram essa história doida.

Eu ouvia a conversa sem opinar nada, lembrando aos poucos do que o meu amigo havia contado sobre o tal Papa-figo anos antes.

Meus amigos continuaram falando coisas absurdas e conjecturando sobre a criatura até que eu resolvi pagar de espertona e falar aquilo que jurara nunca revelar para ninguém.

– Vocês não sabem nada sobre o Papa-figo, ele é real sim.

– Tá bom e tu podeis provar?

– Eu sei como invocar ele, se alguém tiver coragem.

– Sabe nada, para de palhaçada!

– Sei sim. Quem tem coragem de fazer?

– Se você fizer eu faço também.

Dava para sentir na voz do meu amigo que ele não acreditava em mim. Mas o que me deixou com raiva e com o orgulho ferido foi a voz da minha amiga em total descaso concordando em participar.

– Eu também faço. Sei que não vai dar em nada mesmo.

Sem refletir meia vez eu digitei no chat e falei ao mesmo tempo, não pensando direito no que estava fazendo.

Papa-figo vem me pegar se fores capaz

Papa-figo vem me pegar se fores capaz

Papa-figo vem me pegar se fores capaz

Eu falei com tanta raiva a terceira vez que os meus amigos até pararam de respirar por alguns segundos, deixando o chat totalmente silencioso.

Aí um dos meninos soltou um peido, ou fez o barulho com a boca, e todo mundo caiu de tanto rir falando sem parar “peida-frouxo, és um peida frouxo”. E mudamos de assunto falando de quando iríamos jogar novamente e quem poderíamos convidar para entrar no lugar de Gabriel.

Acho que acabei indo dormir de madrugada. E nem sei por qual ensejo desliguei o computador, acho que estava com muito sono.

O meu quarto geralmente não fica tão escuro, já que normalmente eu durmo com o computador ligado ou deixo alguma luz mais fraca acesa o tempo todo. Por algum motivo o lugar parecia um breu quando eu ouvi o barulho estranho de algo arranhando a minha mesa.

Peguei o celular e liguei a lanterna.

O facho de luz iluminou bem onde fica o meu laptop, e aí eu vi aquilo que não acreditava ser verdade. A criatura estava se arrastando para fora da tela, como se aquilo fosse uma abertura para lugar nenhum, e com as garras ela arrastava o seu corpo para fora, deslizando o corpo para o chão do meu quarto, como algum tipo de parto bizarro de um ser nascido das trevas.

A luz iluminava os seus olhos estranhos, amarelados, e o seu rosto parecia uma máscara inumana com uma boca seca cheia de dentes manchados e tortos.

Apavorada, eu sai gritando por ajuda e corri até o quarto da minha mãe. Mas ela não estava em casa, de certo tinha dormido no namorado.

Olhei em volta desesperada, procurando um esconderijo e quando vi a criatura saindo pela porta do meu quarto, vestida de forma esfarrapada e exalando um cheiro horrível de algo podre e ferroso, entrei sem pensar no quartinho de despensa, que só tem uma janelinha pequena com grade e a porta com um trinco simples.

Bati a porta, chaveei com duas voltas e comecei a olhar em volta procurando alguma coisa para usar para me defender. Olhei para minha mão e vi que ainda segurava o celular. Liguei para o um nove zero em busca de ajuda. O aparelho tocou algumas vezes até que uma voz cansada do outro da linha falou algo como:

– Emergência?

E quando contei a história ele riu e desligou na minha cara.

Quatro

Atrás de mim a porta se rompe, e a criatura se aproxima com olhos famintos e insanos.

Olho a minha volta, buscando um último recurso contra o ser que ergue as suas garras de rapina contra o meu rosto, e vejo um martelo largado sobre uma das cadeiras guardadas ali que só usamos para as visitas. Pego aquele negócio pesado e miro a cabeça do bicho, baixando-o meio sem jeito, sentindo na mão e no braço o golpe certeiro que atinge o olho esquerdo da besta.

O som que sai daquela garganta é uma mistura de urro com lamento, mais parece uma ave furiosa do que gente, e a criatura titubeia para trás, aparentemente vertiginada pela dor e pela surpresa.

Um alento de esperança acende em mim uma faísca que me bota em ação e eu busco novamente uma saída, e agora eu vejo o buraco onde outrora ficava um ar condicionado, sabe-se lá porque teria um naquele quarto e que fora tapado com gesso. Eu bato no gesso grosso com o martelo e ele racha, deixando entrar um pouco do frio da noite.

A umidade me diz que só preciso atravessar por aquele espaço e logo terei uma chance de fugir do monstro e buscar alguma ajuda.

Enquanto abro espaço para a salvação mentalmente tento imaginar para onde correr e conseguir assistência. Minha tia mora a duas quadras daqui e talvez ela esteja em casa. Ou um ex-namorado que mora a duas casas de distância, acho que ele ainda gosta de mim, não sei se ao ponto de me salvar.

Passo a perna esquerda e noto que estou vestida com o meu pijama de unicórnio, o que parece uma coisa absurda a se ponderar em situação tão desesperadora, mas eu me sinto com vergonha de sair na rua daquele jeito.

Esforço-me para tentar passar a segunda perna, mas então o pior acontece.

Garras engancham em minha panturrilha e eu sinto uma dor lancinante, ao ponto de me fazer gritar alto em desespero. Um último pensamento tenta me dar alguma esperança imaginando que alguém pode ter ouvido o meu grito e está vindo me salvar.

Mas enquanto devaneio e me forço para fora, a criatura, muito mais forte e resoluta do que eu, me puxa de volta, quase como se eu fosse um brinquedo ou uma criança de colo.

Ele está sobre mim agora, sinto a perna latejando até a altura da coxa, do lado em que foi rasgada. Porém, logo esqueço essa dor, pois percebo o bicho puxando minha camiseta e rasgando o tecido na altura do ventre. Sinto asco e indignação, achando que a essa altura o desejo da besta seja outro, mas ela mostra que não mudou de ideia do que quer comigo.

Suas garras fincam na parte direita do meu ventre e puxam com força, fazendo um rasgo tão grande que eu sinto como se o mundo perdesse o foco e uma dor que nunca senti na vida, que corre da raiz dos meus cabelos até o meu ânus, e deixa claro que já não tenho nenhuma chance.

A última coisa que consigo ver, graças à luz da cozinha e à luz do poste do lado de fora do buraco na parede, é a criatura arrancando algo de dentro de mim, escuro e macio, e o enfiando na boca.

O som que ela faz ao mastigar poderia deixar-me enojada, se eu ainda estivesse conseguindo pensar direito. Sinto um pouco de frio, a dor parece se espalhar como um cobertor e aos poucos ir esvanecendo e finalmente meus olhos vão perdendo o foco, permanecendo apenas o som do mastigar incessante.

Logo nem isso percebo mais, o que significa que minha vida chegou ao fim. No último instante não deixo de sorrir pensando que, se tivesse levado o conselho do meu amigo a sério, ainda estaria viva.

Infelizmente esse foi o último conselho que eu tive a chance de ignorar.

Sem dúvida o mais importante da minha vida.

Fim

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