Refém na RIO

Jesus Ticeiro

O ano era 2009. As vielas estreitas e os morros vibrantes da Rocinha ecoavam com as risadas, os choros e os sonhos de seus habitantes. Entre essas almas estava Lucas, um menino de 14 anos cujo talento para CS 1.6 brilhava tal qual o de muitos meninos para o futebol. Podia-se dizer que o garoto era um gênio, pois desde a sua primeira partida, teve um desempenho fora do normal para qualquer um que o visse jogando. E Lucas se divertia demais jogando. Ele havia nascido para isso.

Em contrapartida, na escola, a cada dia que passava, o som monótono da professora Cristina se transformava em um zumbido distante. O banco de escola se tornava mais desconfortável, o céu azul lá fora, visto através da janela da sala, parecia mais atraente, e os sons do teclado e mouse da lan house mais próxima cantavam uma melodia irresistível para seus ouvidos. Lucas se tornou um fantasma na escola, sua presença sendo apenas uma lembrança do que costumava em outros momentos da sua vida.

Em casa, as coisas se deterioraram. As notas de Lucas despencaram. As brigas com os pais se tornaram um ritual diário – pratos quebrados, palavras cruéis e lágrimas abundantes. Seus pais diziam que ele não sabia aproveitar as coisas pequenas da vida, que só falava de videogame e que desse jeito nunca seria ninguém. Finalmente, veio o ultimato: ele estava proibido de jogar CS.

A proibição serviu apenas apenas para alimentar a chama da rebeldia em Lucas, que, por sua vez, ao jogar escondido encontrava nos muitos mapas do jogo um lugar para extravasar todo o ódio e raiva que sentia naquele momento. Ao matar seus amigos de novo e de novo e ficar cada vez mais rápido no gatilho, ele sentia o ódio que se acumulava dentro de si se esvaindo, era algo que o impedia de fazer algo pior e que realmente o motivava.

Por isso, mais do que apenas jogar escondido, Lucas e seus amigos secretamente se inscreveram em um campeonato de bairro. Com a promessa de um prêmio substancial – 200 reais para cada membro do time vencedor – ele e seus amigos treinaram duro durante semanas no contraturno e até matando as aulas de educação física para jogar.

No dia do campeonato, um sábado à tarde, o clima na lan house estava muito intenso. Lucas nunca tinha visto aquele lugar tão cheio. Havia pelo menos umas 100 pessoas ali, algumas apostando, outras só assistindo. Antes mesmo de começar a jogar a primeira partida, o suor irritante já escorria de sua testa e na palma de sua mão.

A primeira partida foi contra os Ratos da Lan, um grupo conhecido por sua jogabilidade rápida e imprevisível. O jogo estava tenso desde o início. No mapa Dust2, Lucas se escondia na B, esperando o momento certo. Cada minuto que passava aumentava a tensão, até que um flash explodiu à sua frente, cegando sua visão. Ele podia ouvir passos, mas não sabia quantos inimigos estavam chegando. Quando sua visão voltou, três Ratos da Lan estavam em sua frente, armados até os dentes. Lucas agiu rapidamente, a AK-47 cuspiu fogo e, em uma questão de segundos, os três inimigos caíram. A vitória da primeira partida trouxe um alívio e confiança para o time de Lucas.

A segunda partida foi uma batalha de nervos contra a equipe Os Bala na Agulha. Eles eram conhecidos por sua estratégia calculada e disparos precisos. O jogo estava empatado até o último round. No mapa Pool Day, Lucas e seus amigos estavam encurralados, uma chuva de balas vindas do lado do adversário. Lucas correu através de uma cortina de fumaça, encontrando dois adversários desavisados. Ele atirou, derrubando ambos. Os Bala na Agulha foram derrotados, e a emoção da vitória estava nas alturas.

E então, a final. Lucas e seus amigos estavam contra os até então favoritos, a equipe Like a Boss. O jogo começou e logo ficou claro que essa seria a batalha mais dura. No mapa do Rio, Lucas foi deixado sozinho contra cinco adversários. Com sua equipe assistindo, Lucas se escondeu nas sombras do mapa, esperando por seus adversários.

Um por um, eles vieram. Lucas se movia como uma sombra, sua M4A1-S ecoando pelo mapa. O primeiro caiu perto do refém. O segundo, uma emboscada bem-sucedida nas beiradas do mapa. O terceiro e o quarto foram eliminados em um confronto direto, seus tiros apenas atingindo o ar. E, finalmente, o último oponente apareceu. Um tiroteio intenso se seguiu, e Lucas saiu vitorioso.

Um grito coletivo de alegria e alívio ecoou pela Rocinha naquela tarde. A equipe de Lucas tinha vencido o campeonato de forma histórica, com Lucas sendo o grande protagonista da sua equipe e carregando o time nas costas. Cada batalha, cada tiro, cada estratégia, cada ponto nas matérias da escola, cada aula de educação física perdida tinha valido a pena. Eles eram os campeões.

A vitória foi celebrada com uma noite selvagem. A cerveja fluía como um rio, as risadas eram altas e o ar estava carregado de adrenalina e felicidade. Lucas voltava para casa, a mente turva pela bebida e a vitória, quando uma limusine preta parou ao seu lado.

A porta se abriu, revelando um interior luxuoso e um homem misterioso, sentado no centro. Seus olhos brilhavam com uma luz estranha e um sorriso assustadoramente cativante enfeitava seu rosto.

“Parabéns pela vitória, Lucas,” ele disse, sua voz tão suave quanto veludo, mas com um traço de perigo oculto. “Me chamo Mefisto. Sou o dono de uma equipe de eSports profissional. Tenho observado você. Seu talento é inegável.”

Lucas, ainda embriagado pela vitória e a bebida, escutou com um brilho nos olhos. O homem continuou: “Estou disposto a lhe oferecer a oportunidade da sua vida. Dinheiro, fama, e a chance de viver seu sonho, jogando CS para sempre.”

“O que eu preciso fazer?” Lucas perguntou, com uma antecipação evidente em sua voz.

Mefisto deu um sorriso largo, quase predatório. Ele pegou uma caneta e um contrato com letras elegantes. A ponta da caneta era afiada como uma agulha.

“Basta assinar este contrato, Lucas. Mas, a propósito, é um contrato especial.” O homem explicou, “Não usamos tinta comum.”

Lucas olhou para a caneta, confuso, e então entendeu. O homem queria que ele assinasse com seu próprio sangue. O álcool em seu sistema e a promessa de um sonho realizado fizeram a decisão por ele. Ele pegou a caneta, picou o dedo e assinou o contrato. O sangue vermelho vivo em contraste com o pergaminho pálido.

“Excelente,” o homem murmurou, pegando o contrato e a caneta. Seus olhos brilhavam de satisfação e malícia, mas Lucas estava muito embriagado para notar. “Seja bem-vindo ao seu novo futuro, Lucas.”

Então, a porta da limusine se fechou e o veículo deslizou para longe, deixando um Lucas atordoado para trás, sem saber que acabara de vender seu futuro ao diabo em pessoa.

Quando Lucas acordou, algo estava terrivelmente errado. Sua visão estava embaçada e pixelizada, seus movimentos lentos e desajeitados. Ele estava em um ambiente estranhamente familiar, mas alienígena ao mesmo tempo. Era um lugar que ele conhecia bem: o mapa do Rio no CS 1.6. No entanto, ele não estava olhando através de uma tela de computador. Ele estava lá, no jogo.

Lucas começou a se movimentar, sentindo o corpo estranho em que estava. Ele estava vestido com um terno barato e suas mãos estavam amarradas com cordas digitais. Um sentimento de desespero começou a se instalar quando ele percebeu a terrível verdade. Ele era um refém, aprisionado dentro do jogo.

A primeira vez que os jogadores apareceram, Lucas sentiu uma pontada de esperança. Talvez eles pudessem ajudá-lo. Mas essa esperança rapidamente se transformou em horror quando um jogador, por pura diversão, virou a arma para ele e disparou. A dor era intensa, real, e Lucas caiu no chão, antes de ser ressuscitado no mesmo lugar.

A realidade de sua situação começou a se instalar. Ele estava preso, condenado a ser um mero peão no jogo que amava. As horas se transformaram em dias, os dias em semanas, as semanas em meses. E os meses se transformaram em anos.

Lucas tentou inúmeras vezes escapar, correndo para o limite do mapa, saltando em precipícios, gritando por ajuda. Mas cada tentativa era inútil. Ele sempre acabava de volta ao mesmo lugar, de mãos atadas, esperando o próximo grupo de jogadores aparecer. Cada tiro, cada explosão, cada morte era um lembrete constante de sua prisão.

A ironia da situação não escapou a Lucas. Ele, que havia sonhado em fazer parte do mundo dos eSports, agora estava preso dentro dele, e não como o herói que sempre sonhou em ser, mas como um refém impotente. Era a cruel piada do destino. Seu sonho se tornou seu pior pesadelo e não havia nada que ele pudesse fazer.

Do lado de fora, no mundo real, o corpo de Lucas seguia um caminho diferente. Guiado por Mefisto, Lucas se tornou um estudante exemplar. As notas melhoraram e, anos mais tarde, ele se formou em administração. Foi contratado por um banco espanhol e rapidamente subiu a escada corporativa até se tornar um executivo respeitado, trazendo um orgulho que ele mesmo jamais traria para a sua família e girando a roda do sistema melhor do que faria se tivesse tido a chance de desenvolver seu talento.

Enquanto isso, Lucas, o verdadeiro Lucas, estava preso em uma vida digital, condenado a ser um mero refém. Conforme os anos passaram, ele se acostumou com sua situação. A angústia inicial e o desespero constante deram lugar a um tipo estranho de resignação. Ele havia aceitado seu destino, não por escolha, mas por falta de opções.

O jogo havia se tornado realidade. O mapa do Rio, com suas vielas estreitas, pontes e áreas escondidas, se tornou seu novo lar. Ele até encontrou algum conforto na familiaridade do mapa e na previsibilidade de sua rotina, por mais dolorosa que fosse. O terror de ser um refém e a constante ameaça de morte se tornaram partes normais de sua existência. Em meio à violência constante, Lucas até encontrou paz e pequenos momentos de felicidade, como quando podia jogar futebol sozinho no pequeno campo do mapa. Aqueles momentos de paz eram breves e efêmeros, mas Lucas finalmente aprendeu a valorizar as pequenas coisas da vida.

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