Web Namorada

Marjorye Goulart

Tudo começou quando me percebi sozinho. Faz muito tempo que não estou em um relacionamento, e sempre pensei que estivesse melhorando do meu último fora. Porém, sempre chega aquele dia em que você se sente terrivelmente inapto a conquistar qualquer pessoa, e começa a se perguntar o que há de errado consigo mesmo.

Bom, eu estava nesse dia. 

E nisso, resolvi fazer a pior das ideias, que é ouvir a sugestão dos meus amigos, e navegar em um site de relacionamentos que eles acharam na deep web. Para mim, que nunca tinha me aventurado na parte escura da internet, isso parecia uma tremenda aventura. E eu não tinha nada a perder. 

Pelo menos era assim que pensava. 

Logo achei o tal site, coloquei meus dados, e dei de cara com uma garota que era exatamente meu tipo. Começamos a conversar, primeiro com um papo solto, e depois algo mais sério. Descobrimos, que estranhamente, morávamos na mesma cidade. 

Falamos sobre tudo, e quando me dei conta, tinha se passado uma semana conversando com ela. Nesse ponto, já tínhamos trocado números, e sabíamos que nenhum de nós era um velho maníaco que rouba órgãos. 

Então, certo dia, ela me convidou para um encontro. Combinados de nos ver em um lugar público, um parque da cidade, para que nenhum de nós se sentisse em uma situação preocupante, encurralado em um lugar afastado. 

Assim, me arrumei, passei gel no meu cabelo, e vesti o meu melhor perfume, chegando com meia hora de antecedência. Minha ansiedade nunca iria me permitir chegar atrasado. Me sentei em um banco do parque, e fiquei esperando. 

O céu estava limpo, e o clima bom para um passeio ao ar livre, meu humor estava ótimo também. Tudo corria dentro dos conformes, até eu perceber que já havia passado meia hora. Era exatamente o horário certo do nosso encontro, e ela não apareceu. 

Decidi esperar mais meia hora, pois algum imprevisto poderia ter acontecido, e mandei uma mensagem para ela. 

A mensagem não chegou, assim como ela. Talvez algo realmente tenha acontecido, porque nessa semana que mantivemos contato, ela nunca demorou mais de 5 minutos para me responder. 

Então comecei a ficar preocupado. O ponteiro do relógio no meu pulso, se arrastava com cansaço, e nada dela aparecer. Mandei diversas mensagens preocupado, e liguei também, mas não tive resposta. 

O céu começou a ficar nublado assim como meus pensamentos, após 2 horas de espera. Parecia que uma imensa chuva cairia do céu a qualquer instante, e por isso, comecei a pensar que o melhor era eu ir para casa, e tentar vê-la outro dia. Quem sabe, aquilo era só um caso de falta de interesse por parte dela.

Algo que fere meu orgulho, mas não me mataria de admitir. 

Porém, quando me levantei do banco, ouvi passos atrás de mim. Ao me virar, vi sua figura vindo em minha direção. Ela era exatamente como estava nas fotos, uma moça da mesma idade que eu, de cabelos pretos, corpo torneado e sorriso simpático estampado no rosto. 

Ela acenou para mim feliz, e veio. 

Fiquei animado com aquilo, e rapidamente esqueci tudo o que pensava antes. Decidimos então dar algumas voltas no parque, conversando sobre coisas aleatórias. Seus papos e ritmo de conversa eram os mesmo das mensagens, o que me deu uma certa tranquilidade. 

Contudo, o céu começou a escurecer mais ainda, o que me fez perceber que já estava anoitecendo. Não sei como não notei isso antes, mas sinto que a passagem do tempo foi mais rápida naquele dia. Eu disse então que deveríamos ir para casa, e foi aí que tudo começou a ficar estranho. Ela ficou muito quieta quando disse isso, parecia não querer ir para casa.

E foi quando comecei a ouvir passos no parque. É normal ter várias pessoas andando em parques públicos, porém, aqueles passos me chamaram atenção porque o lugar estava completamente vazio. Além de nós dois, não havia mais ninguém ali, a não ser o dono daqueles passos. 

Foi então que ela me disse:

— Ele está aqui! Está vindo atrás de mim! — Disse ela assustada. 

— Quem? Quem está atrás de você?

— Ele… o meu ex. 

— Porque ele veio atrás de você? O que está acontecendo?

— Ele vive me perseguindo, nós terminamos tem um tempo, mas ele não quer aceitar.

Fiquei sem saber o que dizer. 

— Eu não posso ir pra minha casa, ele vai me perseguir. 

Foi assim que disse o mais improvável. 

— Porque você não vem pra minha?

— Você deixaria? 

— Sim.

— Mas a gente se conhece tão pouco. 

— Mas não tem problema não, melhor do que ficar com um maluco atrás de você.

— Sim, obrigada. 

Então segui na frente, pensando que naquela estranha situação, eu tinha me dado bem. Olhei para trás, para ter certeza de que ela me seguia, e pensei ter visto seu rosto com um estranho sorriso. Parecia algo cínico. 

Mas deve ter sido só minha impressão. 

Na metade do caminho, tomamos um banho de chuva, e por isso, chegamos ensopados. Ela pediu para pegar uma ducha, e eu emprestei uma roupa seca. Quando saiu, com o cheiro do meu sabonete em seu corpo, senti um friozinho na barriga. 

Depois fui tomar meu banho, para tirar a roupa molhada do corpo. E lá no banheiro, encontrei minha toalha usada. De certo ela não tinha achado outra, e acabou usando a minha. Mas o estranho foi ver uma mancha de sangue nela. 

Como não queria ser rude, só coloquei a toalha para lavar e peguei outra. Ao sair do chuveiro, procurei por ela no quarto e na sala, e não a vi. Escutei um estranho som vindo da cozinha, e quando cheguei lá, a encontrei sentada no chão, rodeada por vários pacotes abertos de bolachas e salgadinhos, todos vazios. A panela de macarrão do almoço também estava vazia ao seu lado.

Ela estava comendo tudo o que via pela frente, e tomando o refrigerante que tinha na geladeira. Mastigava os alimentos todos juntos com a boca aberta, revelando em cada mordida, como tudo se tornava uma bola sem forma ou cor envolta em sua saliva. Restos de comida caiam ou escorriam pelo seu rosto e chão, e ela os lambia indiferente à minha presença. 

— O que é isso? 

— O que é isso o que? — Respondeu ela entre mastigadas. 

— Se você estava com fome, podia ter me falado, eu ia colocar comida pra ti. A gente podia pedir algo juntos. 

Ela ficou calada me observando. Não dava para saber o que sentia ou pensava. 

De repente, sua feição que até agora era neutra, se transformou em um estranho riso. Ela começou a rir, primeiro em tom baixo, que depois foi aumentando, até se tornar uma gargalhada. 

Foi aí que eu percebi o que tinha feito. Tinha deixado uma estranha entrar na minha casa. Uma estranha que tinha conhecido na deep weeb. 

Fiquei com medo, e saí dali. Não conseguia mais vê-la mastigando tudo o que tinha na minha casa e rindo como louca. Fui para o meu quarto, e lá me tranquei. 

Tentei me acalmar, e me cobri fechando os olhos. Os sons de embalagens sendo abertas, depois de um tempo passou, talvez porque a comida tinha acabado. 

Um inusitado silêncio entrou no ar e se instalou na minha casa. Nada, nem o menor inseto parecia poder se mover. Assim também estava eu, petrificado na cama. 

E foi quando comecei a ouvir o estranho som de alguém do outro lado da porta. A sombra de seus pés na linha de luz debaixo da porta, indicava que realmente havia alguém ali. A princípio só ficou parada. 

Mas logo os arranhões começaram. 

As unhas roçavam na madeira lentamente, sempre no mesmo sentido. 

Era algo que queria entrar. 

Não tive coragem para chamar o nome dela e pedir que ela parasse. 

Estava completamente imóvel. 

Fiquei assim por algum tempo, e pela primeira vez na vida, rezei. Foi a única oração feita com sinceridade, e ela, apesar de não fazer o som dos arranhões parar, me tirou a consciência, e eu peguei no sono. 

No dia seguinte, quando saí do quarto, depois de reunir o tanto necessário de coragem, encontrei minha casa completamente revirada. Parecia que ladrões tinham entrado ali e mexido em tudo. Todavia, não haviam levado nada. 

Olhei no celular e não vi mensagens dela, e decidi bloquear seu contato. A minha experiência foi terrível, e não queria que acontecesse de novo. Depois disso, arrumei minha casa, e voltei para minha rotina. Ninguém me perguntou como eu estava, porque não estavam verdadeiramente interessados sobre mim, então não contei a ninguém essa história. 

Mas, o que eu pensava ser uma história já terminada, voltou a me perseguir uma semana mais tarde. Estava no trabalho, e como qualquer dia, descia o feed do instagram nos intervalos em que não aparecia ninguém para atender. 

Foi quando uma mensagem de um número desconhecido chegou: 

Oi, porque você não entrou mais em contato? 

Sinto sua falta ^~^

Assim que li a forma que o texto estava escrito, eu soube que era ela. Devia ter pego outro número para tentar algo, e eu não estava nem um pouco afim de reviver os momentos trágicos que tive. Por isso, fui logo bloquear o tal número. Mas antes que conseguisse, recebi outra mensagem:

Você fica ótimo usando essa blusa preta do seu uniforme. Combina com esse relógio novo. 

Quando você sai do seu turno? 

Aquilo me apavorou. 

Olhei para todos os lados procurando alguém me observando, mas nada vi. 

Eu realmente estava com um relógio novo, que ela nem tinha visto. E usava a blusa preta do serviço. 

Só então consegui contar para alguém o ocorrido, e felizmente, consegui pedir para o meu chefe me liberar mais cedo. Por precaução, não bloqueei o número, fato do qual me arrependi meia hora depois quando subi no ônibus. 

Meu celular vibrou.

Você está com pressa?

Porque saiu mais cedo?

Merda. O medo me invadiu de novo, e meu coração parecia que iria explodir dentro de mim. Tentei me sentar no ônibus, mas todos os assentos estavam ocupados, por isso me sentei no chão mesmo. Algumas pessoas preocupadas me perguntaram se estava tudo bem. Sei que estavam bem intencionadas, mas quando olhava para seus rostos, só via aquele cínico sorriso dela. 

Estava vivendo o inferno na terra.

Dei graças quando finalmente cheguei em casa, e pude me jogar na minha cama. Tranquei a porta e verifiquei a tranca três vezes. Depois tranquei-me no meu quarto, sem conseguir comer ou dormir. Deixei meu celular na cozinha, bem longe de mim, porque não parava de receber mensagens daquele número. 

Não queria mais ler as tais mensagens, mas de alguma estranha forma, conseguia ouvir o aparelho vibrando lá em cima da pia. 

Acabei por dormir depois das 3 horas da manhã, quando meu corpo cedeu ao cansaço. 

No dia seguinte estava com medo de sair do quarto. Com medo do que poderia encontrar ali fora. Contudo, não havia nada de estranho. 

Quando finalmente tive coragem para ver meu celular, havia mais de 500 mensagens daquele número. Não tive vontade de ler todas, mas as duas últimas apareciam no indicador da tela inicial do aparelho. Estas, meus olhos comeram antes que eu pudesse impedi-los.

Foi legal brincar com você.

Mas agora tenho que ir.

:*

Assim que suas últimas palavras percorreram meu pensamento, a televisão se ligou na sala. 

Estava passando o jornal com um monte de notícias terríveis sobre casos cabeludos de mortes e sumiços (o normal de todo o jornal). 

Porém, houve uma notícia que me chamou atenção. Minha perna perdeu força à medida que a repórter ia dando as informações sobre o caso de sumiço de uma jovem, que tinha desaparecido há duas semanas. 

Ontem tinham encontrado o corpo dela, descobrindo que a mesma tinha morrido de fome, após ter ficado perdida em uma floresta. Conforme o relato da família, ela tinha problemas de saúde mental, e gostava de caminhar para se sentir melhor. A casa da família era em uma área rural, e ela acabou não voltando de uma de suas caminhadas. 

Os legistas viram que ela estava morta a pelo menos uma semana.

E foi quando a imagem da garota apareceu que eu tive certeza. 

Era ela. 

Meu corpo inteiro gelou e comecei a suar frio. 

A foto era exatamente igual. 

Não soube o que pensar.

Me senti sem chão, como uma criança quando descobre que sua fantasia infantil sobre o mundo é uma mentira. 

Depois comecei a chorar. 

Até hoje não consigo me relacionar, pois no rosto de quem eu converso, vejo aquele sorriso cínico, e logo me lembro dela, e de seu nome. 

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