Epifania
Nunca mais ouvia vozes na minha casa. Nenhuma voz ou gemido. Eram sempre rancorosos silêncios, silêncios de medo; abismos que nos cortavam ao meio. Um eterno silêncio com duas pessoas em casa; um silêncio que se entrelaçava com o intermitente zumbido da lâmpada incandescente posicionada sobre a mesa de jantar. Ela falhava, piscava e, por vezes, fazia seus próprios raios de luz vibrarem no ar, criando sombras sem sentido no mofo das paredes. Mesmo assim, nunca desligava. A única lâmpada acesa de casa não era o suficiente para iluminar tudo: eu vivia em sua volta, imersa na escuridão, imersa em silêncio, com medo de chegar perto demais do sol.
Não tínhamos portas em casa, apenas cortinas; não costumava me aventurar a ligar outras luzes. Elas iriam irradiar e, talvez, lançar seus raios sobre algo feio demais, algo que eu não queria olhar. Nas trevas de seu quarto, aquele ser, hipnotizado, encarava a tela de um celular. Ali, ele já não era mais meu pai. Deixou de ser. Deixou de ser. Não queria vê-lo.
Sabe, acho que ele sempre foi esse monstro. Talvez a maldade que carregava consigo estivesse apenas esperando uma desculpa para ser solta. Era uma pessoa que trazia ódio, sim. Ódio e ódio vil, sádico. Fazia-se de santo para nós, principalmente para mim. Cresci vendo-o como um homem bom; minha mãe, ao contrário, andava com um pé atras – nunca entendi o motivo de terem se casado, ela parecia detestá-lo. Mas eu também desconfiava de sua bondade. Quando era pequena, lá pelos sete anos, vi aquela figura heroica colocando algo na comida do gato de rua; no dia seguinte, encontrei o frajola morto no terreno baldio vizinho.
Na minha adolescência, passei a notar novos dos seus comportamentos bizarros. Aquele homem era extremamente paranoico, não confiava nos vizinhos, nos professores e nem mesmo nos meus amigos. Às vezes, nos churrascos em família, falava sobre “os vermelhos”, um governo secreto que o espionava, homens de preto. Também falava que iria matar um ou outro primo. Todos ríamos. Ele sempre foi um piadista. Sempre um piadista.
Quando cheguei no terceirão, trouxe uma menina para casa. Apresentei-a como minha namorada. Ele a rechaçou, empurrou-a para fora de casa, jogou-a na calçada e trancou a porta. Gritava que iria me esfaquear, seu bafo fedia a merda e cerveja. Me bateu e iria bater mais se não fosse minha mãe se metendo na frente. Aí se acalmou, ficou mansinho, abaixou a cabeça e foi para a sala ver televisão e coçar o saco. Fiquei com o olho roxo por uma semana.
Na pandemia, a relação entre os dois piorou; algumas brigas, pratos voavam e paredes quebravam. Trocou a televisão pelo vício no celular. Quando acordava para tomar café, voltando do trabalho e nos finais de semana, fazia algo naquela tela, fascinado. Nunca nos deixou ver o que, nem gostava de conversar sobre. “Falando com uns amigos”, dizia. Seu extremismo político se intensificou a partir daí: queimou todas as máscaras de casa, não deixou que nos vacinássemos, gritava com qualquer discordância. Passou a deixar livestreams tocando para todos ouvirem durante os jantares; também brigou e ameaçou vários parentes, chegando até a expulsar uma ou duas visitas da minha mãe – dizia que eram vermelhos. Nenhuma de nós conseguia falar nada sobre política, cultura, arte ou notícias; se ele nos questionasse, apenas concordávamos. E isso nos distanciava. E isso distanciava ele da realidade, criando um abismo, uma queda à metamorfose.
Um dia, encontrei mamãe desmaiada ao lado da mesa de jantar. Meus olhos refletiam a luz incandescente da sala piscando; uma pequena poça de sangue manchava o tapete. Peguei o carro do papai e levei-a para o hospital, queria denunciá-lo ali mesmo e nunca mais ver a cara do desgraçado. Ela não me deixou, disse que continuaria morando na própria casa, que nada tiraria nenhum dos dois de lá. Não entendia. Nunca entendi. Quando se recuperou, voltou para nossa casa como se nada tivesse acontecido. Acompanhei-a, não podia deixá-la sozinha com um monstro.
Poucas semanas depois, mamãe adoeceu. Pegou COVID enquanto estava no hospital. Não pudemos velar seu corpo. Propus um enterro simbólico e a família aceitou, sem ânimo. Encomendamos um pequeno caixão de madeira e nele colocamos seu vestido de noivado junto de uma foto. Meu tio e meu pai cavaram uma cova enquanto a chuva transformava em lama toda a terra na volta do quintal. Fedia. Fedia à morte. Papai não chorou. Voltamos para dentro da casa sem nada dizer. Quando os poucos convidados foram embora, cerrou-se em seu quarto, pegou o celular e emudeceu.
Tentei conversar, mas tinha dificuldade de fazê-lo partilhar uma palavra sequer. Desisti. Só ela me prendia aqui. Por que, então, eu não recomeçava? A porta estava aberta, mas eu continuei lá – pensei que, talvez, ele pudesse mudar. Estava até se tratando com um bom psiquiatra e recebeu folga do serviço. Poderíamos – não, deveríamos – nos ajudar. Ora, eu também precisava de ajuda.
Passei a deixar os pratos que eu cozinhava em sua escrivaninha; quando ia recolhê-los, estavam na mesma posição; metade da comida sobrava. Ele continuava scrollando o celular infinitamente para baixo, sem demonstrar quaisquer reações. Desde o funeral, sua expressão não mudou: continuava apática, melancólica, vazia. Lia, lia bastante. Parecia escrever também, mas menos. Eu tentava bisbilhotar o que havia de tão interessante em sua tela, mas ele, desconfiado, jogava-a para o outro lado. Só conseguia ver que participava de grupos de conversa com pessoas nas quais nunca ouvi falar.
O tratamento não parecia ajudar. Conforme os dias passavam, meu pai se tornava mais ansioso e ainda mais arisco – por vezes, também, violento. Sua paranoia delirante se intensificava: trancou as janelas, escondendo as chaves em algum lugar desconhecido; nas paredes, colou dezenas de folhas com a bandeira do Brasil que imprimiu. Chegou, ainda, a empilhar todos os itens vermelhos do quarto, incluindo algumas roupas da mamãe; encharcou tudo de Heineken e ateou fogo com um cigarro. Passei a duvidar que ele tomava seus remédios.
Certa vez, quando eu cheguei em casa, notei que ele havia quebrado a lâmpada do seu quarto. A única iluminação que entrava no cômodo era a fraca luz branca do corredor que transpassava o tecido da cortina. Úmido, mofado e com cheiro a comida apodrecida, o local estava tomado pela penumbra, com exceção do celular no seu colo, que emitia um brilho fulminante concentrado em seu rosto cheio de marcas de velhice. Não notou que eu havia entrado, ele continuava encarando a tela e cegando a si mesmo. Aproximei-me da cama de casal, onde ele estava sentado, e toquei em seu gélido ombro – péssimo erro. Mecanicamente, sua cabeça levantou-se igual a um boneco. Sua pele pálida realçava olhos queimados pelo brilho e, antes mesmo de conseguir me encarar, abriu sua boca, em um movimento espiral. Tentou gritar, do fundo de sua alma, tentou gritar. O grito não chegou à garganta; mas quando seus horríveis olhos chegaram aos meus, lágrimas escorreram pelo seu rosto em gotas de ódio. Ódio por mim, ódio por si, ódio pelo mundo. Vendo que não conseguiria demonstrar aquilo pelo angustiante grito, inclinou-se e sussurrou em meu ouvido, sem fechar a boca: “Espero que saiba que a culpa é toda sua”.
Culpa? A culpa é minha? Quem é você para falar de culpa? Eu poderia falar e falar sobre como você matou a mãe. Mas a coisa fica pior: desde que ela morreu, você escapou para dentro do celular e deixou sua própria filha carregando o fardo de cuidar do seu corpo asqueroso. O que há aí dentro? Há o fim do sofrimento? Porque, se há, eu também o quero. Ou, para escapar de toda a dor e responsabilidade, você as transformou em ódio? Vamos, deixe-me ver esses seus amigos que você carrega consigo, imóvel em seu quarto, sem tomar banho, comer ou viver. Me mostre esse seu novo fetiche, ou quer me dizer que ainda se masturba pensando na mamãe, e não no que vê nessa tela? O que é, velho estúpido? O que te venda do meu sofrimento e não te deixa perceber que eu também estou morrendo, que eu também preciso de amor?
No entanto, apenas uma frase sai dos meus lábios: “Me ajude, pai.” Eu arranco o celular de seu colo e fujo para o corredor ao som de gritos desesperados e balbuciantes, que agora chegavam à garganta; aquele demônio vem atrás de mim, arrastando cada membro consigo como se estivessem separados do corpo, esmagando-os no chão com fúria. Sua pele, iluminada pela luz do corredor, quase não parecia mais um tecido humano: era visceral, estriada e segmentada, repleta de agoniantes linhas amareladas. O verme me agarrou com sua mão pegajosa, cortando meu ombro com unhas que já começavam a virar garras. Empurrei-o para longe e passei para a sala de jantar com a luz acesa, onde a criatura desistiu de me perseguir. Ficou ali, escondida e aninhada no chão, tapando o rosto das luzes da casa. Não parecia humana, não era humana. Enquanto me via escapar para a rua, seus berros ressoavam e continuaram ecoando mesmo depois de lacrar a porta de entrada. A vizinhança estava tranquila; a noite azulada refletia a luz da lua cheia, ofuscada pela intensa neblina que me abraçava.
O poste ao lado da parada de ônibus era o único que funcionava no meio do mar noturno das ruas. Um pequeno oásis: um cone de luz no meio de uma cidade engolfada pela sombra. A lâmpada piscava em frente ao terreno baldio do gato morto. Sentei-me no banquinho metálico e encarei o fatídico celular no meio do ruído de eletricidade dos cabos de energia. O que ele havia se tornado? As batidas de meu coração diminuíam, mas seria impossível tirar a imagem daquele ser paranoico e infestado por ódio gritando no meio do corredor mofado. Respirando profundamente, perguntei a mim mesma se deveria ligar o celular. Não seria mais fácil jogá-lo no meio do mato e nunca mais pisar nessa rua? Os gritos ecoavam em minha cabeça e eu apertava o aparelho com força. Eu poderia fingir que nada disso nunca aconteceu? Poderia, simplesmente, desistir e fugir dessa cidade? A umidade da névoa congelava minhas pernas. Um ímpeto de curiosidade tomou meu corpo: deveria haver algo nesse celular. Eu precisava saber do segredo que destruiu minha família, do segredo que o transformou em um monstro. Deixei de refletir e, instintivamente, liguei o celular. Pela minha decepção, o segredo que transformou meu pai em uma larva não era qualquer tipo de ritual proibido: era apenas um espelho; velhos grupos de conversa.
***
vermelhos vermelhos. todos vermelhos. o governo secreto e sua batalha contra a nação está tomando proporções cavalares. minha filha está do outro lado uma vermelha uma pena que matou minha mulher. como ela pôde? sua própria mãe. a culpa é toda dela a culpa é toda dela. Deus está do nosso lado. tive que destruir a lâmpada hoje mais cedo estão me vendo por ela estão me vendo por ela. pequenas câmeras. estão botando câmeras por toda parte. acho que minha filha é uma câmera mas não tenho certeza. preciso comprovar. ela ainda vem aqui para me dar comida. obrigado pela dica agora não mastigo mais as carnes. carnes envenenadas. vomitei e depois bebi detergente para limpar. gosto horrível. obrigado pelo vídeo muito esclarecedor me mande essa figurinha também vou mandar no outro grupo. ainda não consegui destruir aquela luz da sala. ela é a pior. o terror de minha vida. Deus acima de tudo.
***
Embarquei no universo de delírios e espelhos; um assustador reflexo me acompanhava. Aquele, então, era realmente meu pai no meio de seus grupos e conspirações. Amor? Família? Esses ideais nunca existiram, meu próprio pai me via como inimiga, invasora. Era culpada, então. Suas conspirações me culpavam pela morte de minha mãe. Não havia qualquer conciliação a ser feita. Meu pai precisava de ajuda, mas eu não pretendia estender meu braço. Sua insanidade não era desculpa pelo ódio que carregava. Arremessei o celular no terreno baldio.
No meio da neblina, vi dois faróis se aproximando. O último ônibus estava prestes a chegar e eu tinha a opção de deixar-me vagar pelo mundo até achar algum lugar próprio. Poderia ir até a rodoviária e começar uma vida nova em outra cidade. Em poucos segundos, ele parou em minha frente e abriu suas portas; o motorista me esperava entrar, não havia ninguém lá dentro. Os vidros do ônibus refletiam minha casa e, por uma fresta da janela da frente, a lâmpada incandescente dançava com a luz, em seus movimentos, passos e pulos peculiares. Ali estava ela: a casa onde nasci, a casa onde vivi, a casa onde minha mãe morreu e foi enterrada. Onde enterramos seu vestido, onde estavam suas fotos. Minhas histórias tristes, terríveis e maravilhosas, minhas paixões e dores, tudo lá dentro, dançando com as estranhas estrelas. Arrepios tomaram minha pele. Agora, um parasita consumia tudo, um parasita consumia minha vida. De repente, pude ouvir o monstro kafkiano me desafiando. Ganharia fácil assim? Entendi parte do que minha mãe queria dizer quando se negou a ir embora. Virei de costas e o ônibus partiu. Aquele tão aguardado recomeço poderia esperar.
Retornei à porta de entrada, com as chaves de casa em minhas mãos. A densa névoa continuava refratando a iluminação noturna, e a fresta na janela fazia atravessar um fino raio de luz alaranjado da lâmpada incandescente, cortando o canto do meu rosto em dois. Sem ouvir mais barulho algum, destranquei a porta e entrei.
Tudo estava perfeitamente sob os conformes. Meu lar, familiar e tranquilo. A sala era iluminada apenas pela triste lâmpada alaranjada, que agora tamborilava com estalos e faíscas. Nunca esteve tão fraca. A mesa de jantar estava posta seguindo minha rotina e, por um breve momento, a normalidade da situação me deu alívio. Nem mesmo notei a luz quebrada do corredor, a intensidade da escuridão ou a densidade da névoa que entrava pela porta recém-aberta. Poderia até mesmo achar que a perseguição tinha sido apenas um sonho; isso se não fosse o cheiro. O forte cheiro à esterco e violência. Cheiro do lamaçal que acompanhava o enterro de minha mãe; como se o cadáver estivesse apodrecendo com sua roupa de noivado, manchado pela monstruosidade de meu pai. Talvez tenha sido um vulto. Pela janela, era seu corpo lá, desenterrado? Não sei, jurei que via seu cadáver. Aquele cheiro, aquele cheiro de morte; aquele cheiro de morte voltou. Silêncio. Continuava fitando a janela. Paralisada em frente à lâmpada incandescente, o único som que me acompanhava eram aqueles estalos. Do canto do vidro, no quintal dos fundos, um rosto surgia.
“A família é o que temos de mais importante, querida. Eu vou consertar tudo. Só me devolva o celular.” Apenas seu rosto era visível, o rosto de um inseto, sem olhos, sem orelhas, apenas boca. A loucura se apoderava de mim; enquanto isso, a cabeça ia se levantando, deixando seu corpo nu e grotesco, cheio de segmentos larvais, preencher a janela. Um de seus braços – se é que ainda poderia chamar de braços, estavam mais para tentáculos – carregava o vestido desenterrado. “Veja, mamãe está aqui com a gente. Ela não iria querer que brigássemos.” Me obriguei a vê-lo, me obriguei a ver aquele monstro. A criatura não poderia se aproximar. A sala era um local seguro: ele teme a lâmpada incandescente. Sim, sim. Ele teme aquela luz. A casa está ao meu favor. Repeti isso a mim mesma algumas vezes, até um de seus membros tentaculares calmamente se enroscar na maçaneta e abrir a porta dos fundos. Seu corpo gigantesco se contorceu na entrada fazendo passar cada membro individualmente, até ficar de frente a mim, separado pela mesa e lâmpada. A luz continuava piscando mais e mais forte, respingando faíscas. A criatura arremessou o vestido que segurava em minha direção, que caiu na mesa da sala; o simbólico cadáver de minha mãe me vigiava, em cima do prato de janta. Aqueles buracos sem olhos do terrível rosto também pareciam me encarar. Ele esperava, imóvel, como se sorrisse. Os piscares da luz se tornavam menos frequentes: a lâmpada começava a desistir e apagar de vez, mas as faíscas choviam ainda mais intensamente. Quando a luz se apagasse, seria meu fim. A estrela alaranjada não poderia mais me proteger.
Escuridão.
Ah, aquela lâmpada. Aquela velha lâmpada e todas as visões que ali estavam contidas. Estava lá, piscando e dançando durante toda agressão e todo o ódio. Realmente era uma câmera. Era minha testemunha. Eu pensava que minha morte viria com o calar-se da luz, sem saber que aquela lâmpada era uma estrela prestes a morrer. E quando uma estrela dez vezes mais intensa que o sol morre, ela não quer só apagar: quer uma explosão final milhões de vezes mais ostensiva que o brilho de toda sua vida. Seria injusto uma estrela tão linda não conseguir gritar. E ela gritará. E seus gritos irão, para sempre, ressoar. Nos poucos segundos que estive na completa escuridão, senti o bafo à cerveja da criatura e os sons grotescos do seu corpo se movendo – os segmentos maciços e pegajosos se contraindo e expandindo, tentando me alcançar. Poderia apenas imaginar sua presença em frente ao meu rosto, e tudo que iria fazer em seguida.
Curto-circuito, ignição; supernova: a morte de uma estrela. O fogo se espalhou por entre nossos rostos, mergulhando em seu corpo asqueroso, mergulhando em meu corpo melancólico, mergulhando no vestido de mamãe e nas paredes mofadas. As chamas do ódio invadiram meu lar. E dançaram – e gritaram – conosco. Daqui, só restarão as cinzas de uma família despedaçada pelo horror. No meio de luzes rubras, a fumaça viaja ao luar; ao som de gritos e risadas distantes, a vizinhança, embalsada pela neblina, continua em silêncio.
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