Sopro Santo

Por Jessica Gonzatto

Sentir, sentia muito. Queria sentir nada. Aos 13 anos, Zanita cegou. 

Menina amarga desde o nascimento, Zanita sofria de angústia forte. Era avessa aos sentidos e aos estímulos de uma vida fria e simples. Sofria do coração: algo nas válvulas, no bombeamento. Diziam que era “de família”. Nisso, Zanita projetava culpa. Culpava a família pela coração estragado, e rezava para tentar reverter a situação. Mas ela rezava apenas para uma única Santa.

Começou no dia em que Gênova trouxe uma estátua para deixar na casa de sua mãe. A vizinha vinha frequentemente entregar simpatia ali. Dizia ela que era porque o marido era pastor e não queria isso em casa. Foi assim que Zanita entendeu que aquela Santa Anatólia não era católica nem nada parecido. Vinha não sei de onde. A curiosidade preencheu seu coração capenga, e assim a menina começou a visitar a imagem da santa à noite: guardada num armário, envolta por um pano branco. 

Para Zanita, a Santa era maravilhosa: toda emoldurada, enfeitada com pérolas, veludo, cravos. Rosto meio indistinto, talvez desgastado. A menina até fez um paralelo com suas próprias feições. A fascinação era indescritível. 

Zanita começou a confidenciar suas angústias à Santa. Um desses desassossegos era a sua situação precária: morava em um casebre frouxo e úmido no Alto dos Ausentes, extremo sul do Brasil, com mãe e avó. Avó era manca, tinha problemas de respiração e sua pele era quase transparente. Mãe, mulher de braços roliços, não cozinhava bem e vivia para cuidar de Avó. Avó só vivia porque era cuidada por Mãe. Já Zanita não era cuidada por ninguém. 

Com sussurros melodiosos, Santa Anatólia sempre respondia às preces infantis. Nem sempre concedendo bênçãos, mas sussurrando conselhos. Aconselhava dizer tal coisa, fazer outra, esconder algo da Mãe. A sabedoria da Santa cortava os desgosto de Zanita com garras afiadas. O ato de rezar era sagrado para imaginar o seu futuro e negar o passado. Era rebelde, uma porta que abria para a idade madura. Assim, ela rezava muito pelo diferente. Queria ver outras paisagens. Ou, então, nada. 

E assim foi feito. Um dia, ela nada mais viu. A Santa havia a concedido esse primeiro milagre.

A sua cegueira era incomum: um breu quase absoluto. Essa privação da visão era um novo sentido em si. Um redemoinho de sensações que ressaltava seu demais sentidos: ela ouvia mais, cheirava mais, tocava mais. Mas ver, não via mais.

Aquele dia amanheceu noite, e assim Zanita entendeu que seus olhos haviam se transformado em algo outro. Como de costume, sentiu uma angústia de existir. Do toque do lençol áspero na pele. Sentiu medo. 

Foi buscar a Mãe. Com os dedos traçando a parede de madeira esburacada, que logo se transformava em móvel carcomido, cortina furada, janela lascada. 

— Mãe? —  perguntou, lançando o tato no ar.  — Tô sem ver.  

Zanita sentiu um ombro macio, emoldurado por cabelos crespos. 

— Quê? — perguntou a voz desatenta da Mãe 

— Não tô enxergando nada. Acordei assim. 

A Mãe virou, perturbando o ar ao redor de Zanita. A respiração da mulher cheirava a cebola. 

— Caiu coisa no olho?

Seus dedos forçaram as pálpebras, fuçaram ao redor do rosto da filha. 

— Caiu nada. Acordei assim.

A Mãe soltou um estalar de boca e se afastou. 

— Reza pra Santinha que volta.

Zanita queria um abraço, mas não queria pedir. A Mãe logo foi cuidar da Avó, com o toque mais doce. A menina não viu, mas soube. Sentiu. O ressentimento desceu grosso pela garganta. O coração bombeou sangue, todo errado, fervendo, estranho. 

A mão que alisou seus cabelos de noite não era da Mãe. Era da Santa.

Zanita, terminando de comer uma dura espiga de milho, ouve passos lá fora. Uma batida na porta. É Gênova querendo deixar algo com sua Mãe. As duas conversam à porta. A voz de Gênova é esganiçada, irritante. Zanita se concentra em bater os pés contra a cadeira.

Ela lava os pratos do café-da-manhã. Resto de aveia, grãos, pão velho e mate. Sua concentração é quebrada pelo grito da Avó, seguido por um estouro de coisa caindo no chão e insultos repentinos. Zanita paralisa, ouvindo a Mãe se desculpando com Gênova:

— É a idade…

Zanita tem nojo de idade. Uma de suas muitas rezas é nunca ficar velha. O barulho da Avó xingando se mistura com tosse e algo sendo varrido. Antes de bater a porta, Gênova resmunga sobre uma “velha chata, coroca”. Zanita sente raiva da mulher, mas não consegue discordar. A Avó é grossa e faz questão de dar trabalho.

A Santa, com um toque molhado no braço de Zanita, sussurra que esse será o futuro dela, se não tomar jeito. A menina estremece.

O travesseiro foi o suficiente para sufocar a velha. O abraço que recebeu da Santa foi uma recompensa gratificante, cheirosa de cravo e canela. A ideia de uma longa juventude também.

Mãe chorou muito. As facas afiadas haviam sumido da gaveta. Os espetos também. A Mãe estaria se protegendo de si mesma, sussurrou a Santa. Zanita captou um tom de zombaria na voz-sopro da Santa. Não compreendeu. Nunca vira na Mãe uma mulher com individualidade. Só ocupava o espaço de serviços, trabalhando dia e noite. 

Zanita pensou na possibilidade de ter julgado mal a mãe, e logo ficou amarga de novo. Desejou não tê-la por perto, com toda a sua humanidade. Uma mulher com corpo, dor, suor e saliva. O sopro da mãe era acebolado, nada nela era suave.

Como fazia muito frio em Alto dos Ausentes, Avó foi velada na sala por dois dias e duas noites. Não deu mau-cheiro, como havia acontecido com o Pai de Zanita, anos atrás. O corpo do Pai tinha se transformado em um bicho em ebulição, jorrando cheiro ruim e impedindo qualquer um de respirar direito por meses. Era toda a podridão dele fugindo, disse a Avó. 

E, assim como Pai, Avó foi levada em um caixotão de madeira, carregado para dentro da neblina por um grupo de gente. Zanita nada viu, nem sentiu. A vida continuou.

Há semanas, a Mãe vinha saindo de casa durante o dia e voltando tarde. Zanita fazia a sua comida, arrumava sua cama e remendava as roupas já curtas. À noite, a menina ouvia o Minuano batendo nas persianas, além de palavras cochichadas em algum lugar do casebre. O medo vinha, constante. O coração apertava, descompassado. Era quem?

É madrugada. O sono cola a boca de Zanita, que acorda de supetão e rasga a mordaça dos lábios secos. Abre os olhos cegos. Tenta escutar. Sussurros, cânticos. Um lamento urgente vindo da sala. O vento uiva pelas frestas e gela a espinha da menina. Ela levanta da cama, que protesta com um rangido. O cântico pausa. 

A reza retorna. Zanita segue pelo escuro em direção à lamúria. Vai reconhecendo a voz da Mãe. Parece acompanhada de eco, de outros choros femininos. Ainda assim, Zanita sabe que a Mãe está sozinha na sala. Essas outras vozes não têm corpo. A teoria da menina é comprovada pelo cheiro de coisa podre e pelo eriçar dos pelos. Alguma coisa não devia estar ali.

Zanita se abaixa atrás de uma caixa de lenha. A Mãe reza contra um fogo que queima as veias e é bombeado pelo peito. Contra a rebeldia. A Mãe reza contra a Santa Anatólia.

O ódio animalesco espalha-se por baixo da pele da menina. Sente um peso gelado ao seu lado — é a Santa, uma mera sombra, mas com presença de gente. A entidade emana uma ira ainda mais destrutiva. Uma raiva milenar, titânica, imensurável. Alheia às duas presenças, a Mãe continua a reza, entoando sobre como ela lutou desde pequena contra essa Santa, que mais é demônio, e perdeu. Outras vozes sibilam em eco. Quem são? 

Zanita sente a garganta fechar. São as garras da Santa que a puxam para perto. Sua bochecha de é apertada contra um colo aveludado, num gesto de amor ou desespero. O sussurro da Santa contrasta com esse veludo. Palavras afiadas, de morte, vingança. As frases não fazem sentido total, mas um estupor toma conta de Zanita. Ela sente o ar retornar. O abraço era bruto, mas sedutor. A Santa não queria mais a Mãe viva, e a filha também não precisava mais dela. 

O murmúrio do ambiente cessa. Cheiro de pavio de vela. Com um estrondo de barro quebrando, a Mãe destrói a imagem da Santa. Um pedaço atinge o rosto de Zanita.

Ela levanta. A circulação retorna furiosa às pernas, dobradas tanto tempo. A menina-besta não sente nada além da ira e vê apenas o breu agitado pintado de corpos estranhos. Os dedos conectam com os cachos da Mãe. Descem até o molhado da sua boca e encontram a língua. Contra engasgos e arranhões, Zanita continua com a mão enfiada na garganta da mulher. Cada vez mais fundo, cada vez mais fácil.

Ela quer agarrar o coração da mãe para saber se é tão estragado tanto quanto o seu.

Os dias mesclaram-se nas noites. Meses se passaram. Uma nova imagem da Santa descansa no altar, feita pela própria Zanita. A imagem não é de barro: tem cabelos, pele de verdade, roupa. Tudo de verdade, herdado de família. Herdado do corpo insepulto da Mãe.

Zanita costura um vestido novo. Se pudesse ver, enxergaria pontos de sangue tingindo o tecido bege, culpa da agulha que pinica seus dedos. Não importa. Um choro a distrai — som urgente, próximo como se fosse ali fora. Ela espera o sussurro da Santa, mas não vem. O barulho retoma: um uivo de dor, todo torto. Voz de mulher. 

Zanita vai até a porta. Inspirando fundo, ela identifica o ar noturno. Um uivo de animal. Cheiro de fogueira, vindo de algum lugar distante. Um vento gelado confunde a direção do murmúrio, que parece estar mais alto e distorcido. O choro é meio grosso, meio fino. Meio metálico, meio animal. Arrepiada, Zanita fecha a porta e todas as janelas. O som não é de bicho. É de coisa ruim, pior que ela.

Mesmo com o uivo medonho, ela tentou dormir. Tentou abafar com travesseiro, cobertas, tudo. Agora, já faziam três noites que não conseguia. Por vezes, ela ouvia sussurros da impaciência da Santa pelos cantos, mas ela andava quieta e não oferecia ajuda. Até que a menina finalmente conseguiu reconhecer: quem chorava eram as vozes de Mãe e Avó. O som ameaçava uma vingança. 

Zanita fecha os ouvidos contra o choro, sentindo a angústia preencher sua vida de novo. O coração descompassa, ameaçando ceder. O casebre, ocupado pela lamúria, parece minúsculo.

Tocando no rosto, Zanita sente a pele magra chupada para dentro. Os ossos rangem. Sem poder sair para obter comida, ela não aguenta mais o tormento ensurdecedor. Perdida nas horas, ela chora. Sente a presença pesada da Santa acima da sua cabeça. Era como uma estátua de madeira maciça que espera alguma fraqueza para despencar da parede. A pressa da entidade era palpável. Zanita tenta se concentrar. O que se faz para acabar com isso? Precisa rezar? Pedir algum perdão? Mas para quem…?

Ela ouve as vozes mais distintas. A Avó parece falar sobre suas pernas, sempre doloridas. Parece pedir perdão por ter abandonando um filho. Clama pelo marido, desaparecido no matagal há anos.

Zanita levanta o corpo e cola o ouvido na janela. Ouve grilos, corujas. Ouve também o lamento da Mãe, que pede perdão por ter roubado uma panela de ouro. Chama pelo nome de outra mulher que Zanita não reconhece. Irmã, amiga? A Mãe logo emenda um pedido de vingança pela sua morte, amaldiçoando a filha a queimar para sempre.

As vozes continuam, cada vez mais perto. Um cheiro enjoativo de carne azeda penetra no quarto. Finalmente, Zanita começa a rezar. Deseja ser surda. 

A resposta da Santa vem imediatamente e Zanita é envolta num abraço de sombras. O medo e o cansaço vão embora, mesclados numa languidez indizível. O lamento tortuoso vai diminuindo de volume, até finalmente cessar.

2 respostas para “Sopro Santo”.

  1. Avatar de LEANDRO MACHADO DA SILVA
    LEANDRO MACHADO DA SILVA

    Muito bom

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