
Daniela Macioszek
Tinha que aguentar mais, apenas um pouco mais.
Todavia, aquele pedaço preso atarracava-me à garganta numa raspadura incômoda. Emitia tosses leves, tentando apelar para discrição, ainda assim aquilo se recusava a mexer e voltar para dentro, onde era seu lugar. Queria escalar seu caminho para fora à dentadas, milhares de unhas cravando-se na traqueia para que a coragem viesse por bem ou mal.
Dizia-me ter sua própria hora para sair, revelar-se, e a cada palavra que saía pela língua, voltava a fitar o homem dirigindo para ver se notara algo, se me traí antes do momento.
Nunca aparentava ter escutado algo, respondi corretamente.
Só não fazia ideia do que dizia, estava ocupada.
Suor frio escorria nas mãos que tanto passava pelo jeans surrado da calça velha trajada, o medo que percebesse a insegurança e diretamente perguntasse talvez fosse maior. Desta vez o controle estaria em minhas mãos, eu escolheria quando, como e onde. Não permitiria que fosse sua escolha, que a tirasse de mim como ameaçara, mesmo que indiretamente, tantas vezes antes, naqueles instantes em que tudo o que mais quis foi enterrar-me sete palmos abaixo da terra para não ter de mentir e evitar a decepção que certamente encontraria opostamente.
Somente de estar ali a felicidade deveria suprir toda negatividade.
Após sentir a amargura da realização do que tinha de ser dito, aguardei sete dias até a bendita data para podermos nos ver, quando escalas batiam e o terror do tempo sozinhos seria amenizado pelas horas sequentes conjuntas, ou, dependendo do resultado, músicas ecoadas distantemente pelos grudados fones na solidão.
Cogitei diversas teorias para sua morte certa naquela semana.
Poderia sofrer um acidente de carro, infartar com o estresse excessivo do trabalho, descobrir uma doença terminal, levar um tiro de um assaltante na casa nova, andar pela rua livremente e ser sequestrado, tomar muitas pílulas para dormir e acabar por ter o efeito eterno. Inúmeras aparentaram ser as madrugadas em claro, imaginando que o pior aconteceria a qualquer momento e o que guardei jamais seria revelado.
Decidi que não poderia morrer antes de saber, entalada.
Então tossi junto ao suspiro de alívio que se soltou das vias respiratórias, confuso entre a boca fechada e as narinas controladas, quando o carro prata estacionou em frente minha casa e a figura atrás do volante abaixou o vidro, exibindo um enorme sorriso enquanto instigava-me entrar no banco do passageiro. Estava bem, viera me buscar.
Entrei no automóvel e agi naturalmente, sabendo que ainda não era o momento de arruinar sua percepção de minha pessoa. Engoli a vontade de gritar.
A segurança foi embora num passe de mágica ao notar estarmos perto.
Engraçado, como mesmo planejando cada segundo, minha mente continuava perita em sabotar o construído. Não seguíamos o plano. Quando o convidei para tomar um café, calculei que nos sentaríamos graciosamente frente a frente, onde pudesse fitar o fundo de sua alma e começar o discurso treinado durante os longos banhos quentes, momento que as lágrimas estariam bem escondidas, unidas a água fervente que esquentaria o rosto e naturalmente o ruborizaria. Tinha algo entalado na garganta que precisava saber, sentimentos trancafiados há décadas que jamais ousei deixarem escapar, muitos estranhos até para mim.
Falaria tudo o que precisava, sem exceções, e aguardaria a resposta.
Aprendi anos atrás que promessas se diferenciam muito das ações.
Não eram confiáveis, melhor sequer cogitar poder contar com qualquer uma. Preparei-me para ser odiada, sabia que não teria volta após que revelasse parte de mim, no entanto, só não podia mais a esconder. Ânsia subia. Incerteza percorria as veias enquanto questionava estar ou não preparada para lidar com as consequências. Coração batia forte na garganta.
Choraria de verdade, gritaria de verdade, sentiria de verdade.
Porém, de verdade. Isto era o que importava.
Precisava desengasgar, que soubesse.
Jamais senti uma relação muito boa entre nós em anos passados, talvez por suas maneiras próprias, talvez por minha teimosia em entender que só queria meu bem, mesmo que de sua própria maneira. Lutei tanto para a conseguir, ter estes instantes felizes junto a ele, não aguentava criar mais memórias sabendo que seriam tudo o que restaria quando a encenação acabasse por se tornar obsoleta. Enxergava o que faria, como me trataria, e aceitei a distância que voltaria a aumentar entre nossas almas.
Decepção levantaria seu olhar quando eu vomitasse.
Fingiria que não era parte dele, não me conhecia mais, não me permitiria visitar ou ser visitada. Renunciaria qualquer coisa minha que o pertencesse, qualquer vínculo.
Fora o que tentei evitar estes anos todos.
Engoli cada comentário, evitei brigas catastróficas e enterrei tantos sentimentos que temia abrir a boca para exalar o bafo da podridão de seus corpos em decomposição. Não quis incomodar porque sabia que o perderia, estaria deixando o amor escapar entre os dedos desesperados pelo pouco de atenção conquistada. Não queria ser um incômodo. Já tinha tantos mais. Só queria paz. Chorei sozinha para não ter que lidar com as perguntas e forcei-me a parar lembrando ter de manter a postura e aguentar como adulta. Cresci. Recusei-me a explodir e ainda recusaria dar este gosto aos arranhados, teriam que aguentar minutos, já fizeram pior.
Tomei um gole da garrafa d’agua que trazia no porta-luvas.
Morna, azeda e não o suficiente para desvincular o pedaço de sua escalada.
Olhava o relógio no rádio sintonizado em números noutra língua e o garrote entorno pescoço intensificava a pressão, só poderia respirar pelas pesadas passadas acima. Abri a boca e respirei fundo quando notei o ódio acumulado, olhei fora da janela, evitando pensamentos desnecessários antes da hora, conversas que levariam ao inevitável.
Aproveitaria. Sim, eu aproveitaria.
Aqueles últimos momentos de felicidade seriam os que guardaria, era minha obrigação, como agente responsável pelo caos a se instalar, garantir que tivesse os melhores possíveis. Assim, quem sabe, sua reação fosse amenizada ao ver que tentei.
Virei-me para o semblante alegre, cabelos escuros, curtos em sua tentativa de esconder os fios que perdiam o tom da juventude, aqueles cinzentos que a barba por fazer denunciava. Observei-o com a camiseta que ganhara de mim e não pude evitar imaginar se seria jogada fora mais tarde, repousaria eternamente com pedaços de fralda descartáveis, papel higiênico usado e restos de comida velha. Então a queimação voltou a subir e tive de segurar-me para não jorrar seu conteúdo, prendendo as palavras mortas até que aceitassem voltar para o túmulo.
Finalmente ultrapassou os limites do suportável.
Começou a rir de piadas que não ouvia, cantar junto a canções das quais não sabia a letra, tentar me inserir num mundo ao qual não pertencia. Aqueles momentos tão ternos, que doeriam tanto horas mais tarde, após dizer-lhe o preparado e dormir com o cair do sono no travesseiro úmido do choro incessante por vir com as memórias dos tempos onde ainda amava a versão que inventara de mim, aquela da qual poderia se orgulhar.
Soube que não aguentava mais, não poderia continuar com a farsa.
Observei fora do corpo enquanto o carro parava e o homem deslizava para fora, ordenando que fizesse o mesmo. Passos de distância de um restaurante diferente do meu.
Fazendo-me, como fizera antes, adequar-me aos seus planos.
Detestava cada segundo, cada som do tênis no piso.
Detestava o sentimento de ódio crescente, marejar precoce dos olhos necessitantes de colírio quando segui e saí do ninho de metal. Detestava ouvir a voz cintilante ao lado, em seus últimos momentos de alegria. Detestava que a detestava, que não sabia, que me forçava a ser algo que eu mesma forjara. Detestava como não entenderia quantas vezes tentei mudar para lhe agradar mais. Detestava que sequer se importaria caso o contasse desta parte, de como fui infeliz, quanto odiei a mim mesma e rezei ser alguém diferente, apenas para manter a aparência perfeita, seu modelo ideal. Detestava a forma como deixaria de prestar o apoio que tanto orgulhava-se em oferecer agora que mais precisava, no momento em que todo o mundo desabava diante de meus olhos e somente pedia por um abraço. Detestava desistiria de me amar quando esta supostamente deveria ser sua única obrigação no mundo.
Detestava como me abandonaria outra vez.
Detestava o sentimento de engasgo.
– Tem algo que preciso te contar!
Saíram antes que pudesse evitar, até mesmo notar, a menos de metros da porta do estabelecimento e automaticamente chamando atenção da figura receosa. Preocupado, porém sem quebrar a postura, franzindo as rugas na testa, questionou:
– O que aconteceu? Qual o problema?
Problema? Não deveria ter problema!
Eu não deveria ser um problema para você!
Deveria poder contar tudo sem medo de me abandonar.
Deveria poder ser eu mesma em sua presença e ainda receber seu amor, seus olhares de carinho, o toque quente da palma a me agarrar nos abraços apertados que tanto suportaram minhas últimas lamúrias. Deveria poder contar com você sem temer pela vida.
Deveria poder te contar com um sorriso, não lágrimas, no rosto.
Quero escutar que entende, me ama, está aqui para mim.
Não quero ser um fardo, sua maior decepção.
Enquanto penso, o quanto mais quero falar, mais penso nos anos engolidos e na fúria habitante dentro da casca monstruosa criada para suprir suas necessidades da perfeição. Sinto o estômago dobrar em dois e pernas tamborilando enquanto meu almoço aparenta querer sair para fora da boca enquanto puxo ar inexistente, levando as mãos ao pescoço para tirar as correntes que se fecham, o colar que jogo longe ao impedir a transpassassem doas palavras.
Engasgo com o pedaço de mim que se lançava fora.
Entupia a garganta como uma espinha de peixe surpresa, incapaz de ser retirada por si. Desejava ter pinças para arrancá-la, que fosse junto a língua. Subindo, o pedaço insistia em prender-se, lentamente destruía a carne, forçando com que a tosse seca, comprida, como ferina, aumentasse as transpassadas e sufocasse com as vãs tentativas de existir coletivamente. Havia algo destruindo meu interior. Algo grande, pesado, atroz.
Tossi profundamente na tentativa de sentir algo.
Senti gosto de sangue e desesperava-me.
Encaro o pavor nos olhos da figura masculina, inicialmente sem saber como reagir, ademais, logo corre ao meu encontro. Imploro por ajuda, qualquer que fosse, e só reparo a receber quando experimento os apertos entorno da barriga na singular manobra de salvamento. Ao terceiro aperto, o embaralhado pula para fora da garganta, arrebentando as cordas vocais no caminho de fuga, abrindo por força bruta a mandíbula incapaz de conter o volume.
Veias que o seguravam rompem pelo impacto, soltando-o de mim.
Diante de meus olhos, dentro dum líquido escuro viscoso, bate meu coração em meio ao asfalto. Negro, espichado e rugoso. Morto-vivo liberto do caixão.
Incontroláveis, os tubos de sangue que o sustentavam dançam abertamente pela boca esganiçada, cheiro de defunto livre para escapar, junto a enxurrada gosmenta do licor preto que um dia tingida vermelho. Água do breu enche rapidamente os pulmões que não mais funcionam e a carcaça que um dia chamara de corpo caiu junto ao peso, que, apesar de já estar ali antes, deu-se por notar somente agora. Bater a cabeça sempre me pareceu algo que doeria mais, posso ver que não passara de outra falácia do medo.
Imagino que minhas últimas imagens fossem o chão do estacionamento, todavia, o corpo rola e tossidas finais ecoam no resquício do pavor. Sozinhos, os olhos pousam sobre o rosto desalentado do homem que me tem nos braços de aço.
Chora como jamais me permitiu presenciar, grunhidos emitidos no vazio.
Esforço-me para compreender o que me pedem, querem que engula o coração outra vez, que o engasgo fosse permanente para que continuasse viva, poder repor o soro pútrido com injeções e medicar tudo de volta ao normal. Doeria muito, o tempo se esgotara.
Matei tantos sentimentos que decidiram se vingar.
Zumbis do que um dia foram voltaram-se finalmente contra mim. Demorei muito e perdi minha chance, a única chance, por segundos que optei por tentar engolir.
Olhei o semblante já em luto e fiz um desejo terminal.
Desejo que aquelas bolhas da baba tingida nas tosses de encerramento de minha vida transmitam a mensagem que não pude, cumpram o destino antes que fosse em vão, que a verdade chegue aos seus ouvidos de uma forma ou outra. Durante os instantes restantes antes da pontada lancinante de dor tirar-me desta realidade, juro ver seus lábios abrindo um sorriso, sinto as mãos firmes passarem pelos fios de meu cabelo enquanto a voz almofadada garante que sabia há tempos e esperava que revelasse por conta. Jamais me abandonaria. Me ama.
Percebo, tarde demais, nunca ter corrido o risco da desgraça.
Sou uma decepção puramente a mim mesma e agora estou morta.
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