O Vizinho Lobisomem

Ulisses Rodrigues

Esta é uma das histórias que minha avó caolha e depois minha mãe sempre contavam. Histórias e relatos antigos, passados de boca a boca como tradição de contar “causos”. Nas rodas de fogueira e em volta do fogão a lenha em noites frias de inverno, em um tempo onde os acontecimentos e o cotidiano caminhavam em rumos mais lentos. A inocência e a ignorância faziam a vida ser leve.

O ano era 1940. Província de Teixeira Soares, interior do Paraná.

    Naquele distrito rural todos se conheciam, frequentavam a mesma paróquia da Igreja de Santa Helena, suas quermesses e bailes nos finais de semana. O Padre Joca havia iniciado a nova construção do novo salão, sempre estava em busca de donativos e mão de obra grátis: para que Jesus ficasse satisfeito e salvasse mais algumas pobres almas.

    Em uma certa noite de lua cheia, fevereiro, época chamada de Quaresma. Sarrafo, um rapaz de 17 anos, voltava com sua família da missa de domingo. Logo chegaram no casebre de madeira simples e aconchegante. O terreno era pequeno, com uma horta de legumes, um galinheiro e um pequeno galpão onde o pai de Sarrafo fazia marcenaria e outros trabalhos manuais.

    Nessa noite todos estavam animados. Depois da janta, com polenta frita e macarrão caseiro, regada a capilé, a família estava prestes a deitar pois o relógio marcava quase meia-noite.

    Sarrafo sentiu vontade de fazer xixi. Como esqueceu o penico secando no quintal resolveu sair, aproveitando para fechar os porcos no cercado. A lua estava muito grande no céu e iluminava por cima das árvores até a rua de terra que passava quase em frente da casa.

    De repente algo chamou atenção do rapaz que subiu no barranco, meio que agachado, e aquilo que viu o deixou perturbado.

    “Seu” Chaminé, o vizinho que morava na curva do morro, se encontrava abaixado em meio aos pés de couve, totalmente pelado. Ele rolou para a esquerda, rolou para a direita, se debatendo. O rosto se esticou e nas mãos cresceram pelos. Uma das pernas se transformou em um rabo. A coluna se dobrou com estalos e num espasmo final o homem não mais existia. Em seu lugar surgiu um cachorro magro e pálido, com olhos fundos e vermelhos, agonizantes. Sarrafo ficou petrificado de medo e não conseguiu correr. 

Segundo as lendas contadas no mato, se alguém oferecer sal para um lobisomem ele não poderá negar e no outro dia virá buscar, confirmando sua identidade que ficará comprometida para sempre.

    Assim que aquele ser olhou para Sarrafo ele só conseguiu falar timidamente:

    – Venha buscar sal lá em casa.

    O animal saiu em disparada para sumir em seguida no meio da mata, uivando e rosnando ferozmente.

    Sarrafo voltou correndo e quando adentrou a casa gritou para todos ouvirem:

    – Seu Chaminé é lobisomem! Seu Chaminé é lobisomem!

    Seus pais, Dona Pombinha e “Seu” Sincero, se levantaram assustados e o abraçaram. A história parecia absurda e eles não acreditaram achando que o rapaz tinha visto um cachorro do mato ou um animal semelhante. Mas, naquela noite, Sarrafo dormiu nos pés de sua mãe e com o lampião aceso até o amanhecer.

    No dia seguinte, Sarrafo estava apreensivo pois os acontecimentos da noite anterior foram algo que ele nunca imaginou. Mesmo tendo ouvido histórias fantásticas e lendas sobre visagens na Quaresma, ele nunca achou que veria de perto tal aparição. E, enquanto tomava o chimarrão, pensava o que poderia acontecer.

    Mais tarde, seus pais tinham saíram de carroça para vender repolhos, pinhão e banha de porco. Sarrafo deu milho para as galinhas quando voltava pelo carreiro ao lado da casa e de repente deu de cara com Seu Chaminé segurando um pequeno pote de porcelana. Ele olhou bem nos olhos do menino e disse:

    – Preciso sal para fazer um caldo de mocotó. Você poderia me dar um pouco?

    Sarrafo, visivelmente nervoso, entrou na casa, encheu o recipiente, voltou imediatamente e entregou o pedido ao homem que agradeceu e falou:

    – Preciso te contar um segredo muito importante, mas não pode ser agora. Você tem que ir hoje na ponte do rio, exatamente a meia-noite e tudo será esclarecido. Vou te dar um saco de moedas de ouro para que você compre roupas novas para a missa de domingo.

    O homem se virou nada mais foi dito. Logo desapareceu no carreiro deixando o rapaz com a pulga atrás da orelha.

    Assim que seus pais voltaram das vendas, cansados desse dia de busca por sustento, o rapaz os ajudou a alimentar os cavalos e guardar todos os mantimentos. 

    Ficou em silêncio. Nada comentou sobre o ocorrido, tampouco sobre o estranho convite que lhe fora feito pelo cão em forma de homem.

    As horas passaram e Sarrafo pensou o que faria pois no fundo ele sabia que algo de ruim poderia acontecer caso aceitasse enfrentar tal aventura. No entanto ficou tentado pela proposta de moedas, roupas novas e pela curiosidade das respostas que o homem amaldiçoado poderia contar.

Com o calor veio a chuva forte. As nuvens negras cobriram o céu tornando a noite um labirinto de ventos e raios que se alternavam, fazendo a estrada amolecer em lama e pedras soltas.

Assim que seus pais dormiram o rapaz teve uma ideia: correu, pegou o capote de couro e o chapéu de caça de seu pai e seguiu morro acima caminhando sem tropeço até o local do encontro.

Eram quase 11 horas e o rio estava cheio. A correnteza se fazia acelerar e devorava a chuva que caia. A ponte era estreita, feita de corda trançada e madeira. Construída para durar.

Assim sarrafo preparou uma estrutura improvisada: cortou um galho de árvore e vestiu o capote, encostando-o na entrada da ponte. Finalizou o disfarce com o chapéu,  para,  em seguida, se esconder no mato e observar o que aconteceria.

Por volta da meia-noite a chuva ainda se mantinha forte e os pingos gelados faziam goteiras nas sobrancelhas do pobre rapaz que tremia mais de medo do que de frio.

Uma ou duas vezes ele pensou em abandonar o plano, voltar correndo para se esconder embaixo das cobertas e esquecer de tudo que passava em sua cabeça. 

Podia procurar o Padre Joca e rezar uma missa, pensou. Isso talvez ajudasse aquela alma perdida a se libertar da maldição. Também pensou que poderia procurar o Delegado Epaminondas e contar sobre o que havia visto mas possivelmente o homem não seria preso por ser um lobisomem. Pensou em chamar seu pai com a espingarda e comprar uma bala de prata para acabar com o suplício desse senhor sofredor que uivava e se rolava entre pés de couve nas noites de lua cheia.

Não! Não… nada disso daria certo, já era tarde demais para fugir em desespero. Só restava aguardar ali escondido no canto da ponte em meio ao mato molhado, torcendo para não se borrar todo. 

– Por Jeová, assim teria que ser!

Eis que surge uma sombra negra no lado oposto da ponte. Sarrafo sentiu novamente sua espinha gelar em aflição. Se abaixou mais ainda, quase se jogando ao chão. Sua respiração estava ofegante e ele tentava não produzir um som sequer para não ser visto.

A sombra veio caminhando lentamente em direção ao boneco montado e quando chegou em frente a estrutura, sem dizer uma só palavra, sacou uma garrucha cromada e desferiu um tiro certeiro na direção do peito do capote, derrubando-o para dentro do rio.

Em seguida voltou pelo mesmo caminho oposto, sumindo na escuridão da noite. Até hoje nunca mais se ouviu falar do Seu Chaminé por aquelas bandas.

E a vida continuou seguindo seu curso. ATÉ A PRÓXIMA LUA CHEIA.

3 respostas para “O Vizinho Lobisomem”.

  1. Parabéns vc conseguiu fazer eu voltar a infância ate senti o cheiro da sopa do fogao de lenha da minha vozinha Otília que sempre contava varias histórias iguais a essa👏🏻👏🏻👏🏻muito bom mesmo altamente rico em detalhes👏🏻👏🏻👏🏻vou aguardar i próximo.

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  2. Seu Chaminé… não queria ser descoberto. E vida que segue. Se eu escutasse essa história quando era mais jovem, me borraria todo kkk. Parabéns!

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  3. Muito obrigado a vcs do pela oportunidade e incentivo , estou promovendo o blog em minhas redes sociais e logo mais novos contos ! Um abraço

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