
Amanda Kraft
Ela estava em seu leito de morte e o pequeno, assustado, segurava sua mão fria. Sabia que não tinha muito tempo, entretanto faria de tudo para alertá-lo se quisesse que o menino sobrevivesse. Ofegante, deu-lhe um objeto embrulhado em um lenço bordado com o monograma da família:
— Proteja essa pedra. Sua vida e de outros depende dela. Não a deixe cair em mãos erradas – pediu a mãe, exaurida.
— Não entendo, mamãe. Por que minha vida depende dessa pedra? – Perguntou-lhe mirando o vermelho intenso, em forma de gota, que parecia lhe queimar a mão.
— Em breve você fará treze anos e então saberá – sua voz era apenas um fio, amedrontando o menino.
— Mamãe!
A pobre deu o último suspiro diante da mais velha de suas sete filhas, que olhava apreensiva para o garoto enlutado. Uma estória lhe será contada e assim conhecerá o poder da pedra.
*
Receberam-nos com festas, procissão e repicar de sinos, assim que a comitiva do rei Dom João VI aportou em terras brasileiras. Nossa chegada causou certo rebuliço na corte. Instalamo-nos provisoriamente no Palácio dos Vice-Reis, no Convento do Carmo e na Casa da Câmara. Uma casa de campo foi gentilmente cedida para Dom João e sua família na Quinta da Boa Vista, contudo a rainha preferiu alojar-se em uma praia no Botafogo.
Um baile de gala no Palácio dos Vice-Reis, numa noite de luar exacerbado, nos foi oferecido pelo nobre Marcos de Noronha Brito para homenagear sua majestade, e, depois desse evento, o terror tomou conta de nossas mentes e corações. Toda a corte encontrava-se no recinto com seus trajes de gala. Num gesto para satisfazer a monarca Carlota Joaquina, fazendo-se clara no tocante ao desgosto de estar em terras brasileiras, Joaquim José de Azevedo presenteou-a com um colar incrustrado de diamantes, trazendo como pendente uma ingente gota de rubi, batizado de A Lágrima de Cristo.
Suspiros foram arrancados dos lábios das senhoras ao mirarem faiscante peça. A matrona inflou o peito prendendo a respiração por instantes. Curiosamente, enquanto o objeto cintilava no colo da rainha, um uivo aterrador se fez ouvir nos arredores do palácio, silenciando-nos. Pareceu-nos que um animal medonho nos espreitava no escurão da noite. Um vento gelado percorreu o recinto, apagando as chamas das velas, provocado por um deslocamento de ar repentino. Um passo pesado, arranhando a madeira, nos fez amontoar uns sobre os outros. O grito agudo feriu nossos ouvidos e um barulho surdo de algo sendo derrubado ao chão, nos petrificou. Minutos depois, alguém com extrema coragem, acendeu algumas velas revelando um corpo aos pés da regente. Sua dama de companhia sucumbira, tendo a cabeça cindida do corpo. A rainha soltou mais uma vez seu gritou agudo ao levar a mão para o colo e não sentir o peso do colar. Havia sangue em sua mão e um profundo corte em seu colo.
Houve um tumulto geral quando os convivas passaram a correr até as portas numa fuga desenfreada, sendo impedidos pelo major Miguel Vidigal, que tomou as rédeas da situação, ao bradar para que ninguém deixasse o recinto. A Regente precisou ser socorrida. O Rei mostrou-se incrédulo diante de tal ousadia. O perigo rondava lá fora. Sob os soluços das senhoras, e a revolta da Consorte, ficamos cativos até o dia clarear. Estávamos livres, assustados e a salvo, entretanto sem explicação para o fato ocorrido. Que força fora aquela que acabara com a vida de uma jovem de maneira tão peculiar? E por que levara o colar? A notícia se espalhou feito pólvora e o povo passou a nos encarar, ressabiados.
Na manhã seguinte, o Dr. Felipe Cintra foi chamado para examinar o corpo e sua narrativa nos deixou ainda mais assustados. Jamais vira algo igual em toda medicina. A jovem parecia ter sido atacada por um objeto pontiagudo, porém desconhecido. A distância entre as lacerações no que restou da cabeça, pescoço e colo, se parecia muito com um ferimento causado por garras de algum animal de grande porte. Imediatamente o assassino passou a ser chamado, nas rodas formadas pelos cantos da cidade, de A Criatura. Estórias de uma fera com corpo de homem e forma de um lobo tomou as ruas da cidade amedrontando a população.
Sem que nada mais acontecesse por dois dias, a vida prosseguiu em tons sombrios, tendo em foco as mais estapafúrdias explicações para a noite do Baile Real. A rainha, se recuperando do ataque, continuava furiosa com a falta do colar e o rei, indignado, cobrava do major o autor do roubo. Quando tudo parecia voltar ao normal, uma senhora da corte foi vista usando o colar roubado, enquanto caminhava pelas ruas de pedras. Imediatamente foi levada à presença do major e severamente interrogada. Depois de horas constatou-se que a mulher havia comprado a joia das mãos do mesmo ouvires que desenhara o colar para a Dona Carlota Joaquina. Tratava-se de uma réplica feita de zircônias e turmalina vermelha.
O velho ourives, trêmulo, foi levado à presença do major e confessou ter feito a peça original e mais algumas réplicas. O pobre homem foi dispensado e naquela mesma noite, outro alvoroço se deu. O uivo ensurdecedor rompeu o silêncio da noite. O latido e o choro dos cães nos deixaram indefesos. A criatura rondava nossas casas e nos matinha cativos. Na manhã seguinte, o secretário de Dom João VI alardeava pela cidade que acabara de encontrar a mulher morta dentro de casa. A Guarda Real foi chamada e, para o espanto do próprio major Miguel, a senhora não era outra senão aquela que interrogara no dia anterior. A cabeça foi encontrada alguns metros longe do corpo, constatado o mesmo modus operandi pelo jovem médico.
Amedrontado, o rei esbravejou diante da falta de solução do caso. Recomendou que a população não saísse mais às ruas sob pena de prisão. A Guarda Real passou a varrer as ruas fazendo a segurança da cidade, entretanto os uivos constantes e ferozes continuavam cada vez mais próximos e urgentes a cada noite de lua cheia. As mortes pareciam ter relação direta com o rubi desaparecido, já que outras damas, oito na verdade, que supostamente haviam adquirido a peça do ouvires, acabaram degoladas em curto prazo de tempo. Mas por quê? Essa era a pergunta que todos se faziam. Foi instaurado um inquérito para saber a origem do tal rubi. Joaquim José de Azevedo foi interrogado e descobriu-se que ele achara a pedra faiscante, embrulhada num lenço bordado com um monograma, numa viela próxima à sua morada. Fascinado, resolvera presentear nossa rainha.
No dia em que a lua completaria seu ciclo, imperando majestosa e cheia no céu, acordei com um arranhar insistente na parede. Engoli em seco e assim que mirei os olhos na janela vi uma sombra gigantesca se infiltrar pelas frestas. Um tiro se fez ouvir e a fera rosnou. O tropel de passos martelava as ruas de pedra. Ouvi um baque surdo nas telhas acima de onde dormia. Ele estava ali. Mal tive tempo de me encolher na cabeceira da cama e então, o teto cedeu e ele me encarou com olhos cruéis. Era imenso, com pelos escuros e densos. Seus dentes afiados e seu corpo musculoso era mantido por pernas delgadas e um tanto curvadas, tal qual um urso prestes a abater a presa. As mãos da coisa eram enormes com garras do tamanho de meu dedo mínimo. Engoli em seco, sentindo que perderia os sentidos diante de tal terror.
— Piedade! Não tenho o que procura. – Disse-lhe num fio de voz.
Ele pareceu me entender. Uivou baixinho pouco antes da Guarda Imperial arrombar a porta da casa. Saltou pelo mesmo lugar de onde veio, me fazendo suspirar aliviado. Saí às ruas junto dos guardas, vendo a fera saltar sobre as casas, no crescente grito dos habitantes. A noite foi longa e o bicho pareceu levar a melhor, mesmo um dos guardas jurando que havia acertado uma bala em seu ombro. No raiar do dia, uma morte foi anunciada. O ourives perdeu a cabeça, assim como as damas que compraram a réplica do malfadado colar.
Depois dessa noite de tensão, a fera nunca mais foi vista por essas bandas. A consorte lamentou a perda do magnífico colar, se enclausurando em sua residência, afastada do rei. Fico me perguntando por que a fera queria tanto a pedra. Passei a travar amizade com o bom doutor, em busca de uma explicação no tocante a tal garra assassina, lhe visitando todos os dias, depois que soube de sua repentina indisposição. Parece que caíra do cavalo e o braço havia se deslocado. Agradável companhia. Homem extremamente culto. Único filho homem de uma família com sete irmãs. Perguntei-lhe, certa feita, qual sua versão para o ocorrido no que tangia a ligação com a fascinante pedra que adornou o colo da Consorte por apenas alguns segundos:
— Talvez tenha sido um presente dado à fera que não ficou satisfeita em perdê-la. – Sorriu de maneira encantadora, entretanto posso jurar que uma sombra passou por seus olhos tornando-os ameaçadores e enregelando-me. – Mas se o nobre amigo quiser minha amizade, não toquemos mais no assunto – continuou me encarando.
— Não quis ofendê-lo, amigo. Apenas pensei que com todo seu conhecimento pudesse ter uma versão para o comportamento da fera.
— Não me ofendeu. Aceita mais um cálice de vinho do porto?
Aquiesci, vendo-o sorrir. Ainda somos amigos. Nunca mais toquei no assunto, mas isso não impediu de ter minhas suspeitas, entretanto temo que algumas perguntas jamais sejam respondidas. O que o rubi representava para a criatura, terminou com a morte do ourives, pelo menos até aquele momento. Cheguei, depois de muito pensar, que talvez a pedra fosse mais que um mero rubi. Um amuleto mágico que impedisse o homem, por trás da fera, de se transformar nas noites de lua cheia. Tenho quase certeza.
Na minha terra dizem que o homem lobo, quando não mata a vítima a transforma. Algo me diz que muito em breve saberei. O novo ciclo da lua se aproxima. Penso ter ouvido um uivo ao longe. Talvez a vítima ainda queira o colar. De qualquer forma as trancas das casas começaram a ser reforçadas. Espero não ter que me desfazer do meu próprio amuleto, uma bala de prata que trago envolta no pescoço, minha herança de família.
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