
Matheus Peixoto
O dragão meio-morto era um pensamento
Que lhe irrompia todas as manhãs,
Fincava suas garras, guinchava e lutava.
— W. B. Yeats, “Michael Robartes and the Dancer”.
Chegava sem avisar. O monstro. Podia surgir pela manhã, depois de uma noite mal dormida e cheia de pesadelos — apertava tanto o próprio maxilar, que o sentia dolorido ao acordar —, ou pela noite, se precedida por um dia de apreensão. Esgueirava-se pelas sombras de sua curta existência. Embora contasse apenas nove anos em seus dedos fininhos, o pavor acompanhava-o desde sempre, pelo que se lembrava. Vivia constantemente em alerta, receando fazer alguma coisa errada. De todo modo, seu monstro, pois ele era só seu, assomava com sua presença temerosa invariavelmente nos piores momentos, quando se sentia mais vulnerável e angustiado. Geralmente isso acontecia após presenciar alguma briga feia de seus pais — algo era bastante comum —, quando seu irmão mais velho ou algum colega o atormentava ou, ainda, se as duas circunstâncias acontecessem. Nesse caso, era bem pior e o Uivante, como nomeara o nome do bicho, mostrava-se inclemente.
Desta vez, ele chegaria à noite.
O dia despertou nublado e sorumbático. Ele acordou com o clamor de um trovão, que perdurou por vários segundos e ecoou por toda a cidade. Não sentiu medo, entretanto. Pelo contrário, visto que o estrondo acabou sufocando as ofensas que seu pai e sua mãe trocavam àquela hora da manhã. Não gostou de pensar que essas discussões eram como um trovão para ele e o sufocavam; ai dele, se se descuidasse e expressasse isso em voz alta… Sacudiu a cabeça, era melhor nem pensar o que poderia acontecer.
Espreguiçou-se. Sem conseguir se conter, coçou uma das feridinhas rosadas em uma das mãos. Sangrou. Era cheio dessas coisas, que descamavam e doíam: apareciam nos pés, nas costas e no couro cabeludo. A pomada que precisava passar havia acabado, e seu pai esquecia de comprá-la, repetia “amanhã eu compro” há mais de duas semanas. Além disso, o tratamento demandava visitas frequentes a uma psicopedagoga. Ele a achava meio estranha, com suas inúmeras perguntas um tanto pessoais. Passados seis meses, sua mãe disse que ele não voltaria mais ao consultório, pois a terapia não surtira os efeitos esperados. A terapeuta respondeu-lhe contundentemente, o que desagradou sua mãe e a fez sair irada da sala, puxando-o com força. Apesar de tudo, ele gostava de desenhar e de brincar com os joguinhos esquisitos quando ela pedia. De qualquer forma, não havia nada que pudesse fazer a respeito.
Levantou-se, finalmente, e foi até a janela. Distinguiu somente os contornos dos prédios vizinhos: o mundo exterior, assim como o interior, estava toldado por nuvens cinzentas. Ao longe, relâmpagos fendiam o céu violentamente. De repente, começou a chover. Os pingos d’água caíam pesados. Logo mais, as ruas da cidade estariam alagadas, como de costume, o trânsito estaria péssimo e sua mãe ficaria estressada no carro. Nesses momentos, seu irmão, que usualmente estava com fones nos ouvidos, seus trovões pessoais, colocava uma música num volume alto suficiente para abafar a voz colérica da tempestade materna.
A porta foi aberta de rompante. Era sua mãe e, ao vê-lo de pijama, repreendeu-o:
— Você ainda ‘tá assim, menino? — entrou no quarto, vasculhou a cômoda e pegou seu uniforme escolar. — Uma chuva dessas, menino… Se arruma logo, criatura! — sem esperar, ela arrancou seu pijama e o vestiu depressa. — Agiliza, escova os dentes e calça os sapatos, não vai dar tempo comer aqui.
Ele correu para o banheiro e se trancou, caso contrário, seu irmão entraria e o aborreceria com suas piadas maldosas. Pegou a escova e pôs o creme dental. Evitava encarar o espelho: o reflexo multiplicava os pedacinhos que formavam sua casca feiosa e magrela.
— Se apressa, mané! — o irmão gritou, batendo na porta.
Cuspiu, bochechou rapidamente e saiu; não sem levar uma bofetada na fronte. Dolorido e com raiva, calçou as meias brancas e o tênis preto. Impacientes, seus pais aguardavam-nos dentro do carro, na garagem do condomínio.
— Pegou seu lanche? — a mãe perguntou, e ele respondeu que não. — Ah, pois vai comer só no recreio, seu irmão ‘tá vindo.
O pai ligou o carro, o filho mais velho entrou e a família saiu. O ar continuava fustigado pela chuva e pelos trovões. O pai sintonizou o rádio no jornal matutino e, pouco depois, a mãe recebeu uma ligação importante de seu escritório. O irmão, já usando os fones, abriu a mochila e dela tirou um pacote de batatinhas. Começou a comer, sem lhe oferecer. Em certo momento, uma mensagem no smartphone chamou a atenção do rapaz. Aproveitando-se de sua distração, ele esticou o braço para pegar um salgadinho, e levou outra bofetada. Então, puxou o pacote das mãos do irmão e os dois começaram a brigar; batatinhas espalharam-se pelo banco traseiro.
— Olha a bagunça aí, não vão sujar meu carro! — resmungou o pai.
Exaltada com a confusão, a mãe gritou:
— Será possível, eu estou no telefone! — ela se virou e bateu com tanta força no filho mais velho, que ele sangrou devido ao atrito das unhas dela. — Que coisa irritante! Oi, desculpa…
O rapaz virou-se para sua janela, escondendo as lágrimas; um fiozinho rubro escorria lentamente de seu braço. O resto do percurso foi feito em um silêncio opressor. As notícias diárias haviam acabado, bem como o telefonema da mãe.
Chegaram ao colégio atrasados. A chuva perdurava e, como não levaram nem guarda-chuva nem capa, encharcaram-se. Na hora do recreio, ele não lanchou, uma vez que os pais esqueceram de dar-lhe algum dinheiro e sua conta na cantina fora suspensa por pagamento atrasado. Não ia pedir ao irmão e também ficou com vergonha de, novamente, recorrer a um colega ou a um dos professores. Por isso, ficaria sem comer até mais tarde.
No segundo turno, a professora de Português realizou um teste de leitura com a turma. Ela chamava cada um dos estudantes para a frente e escrevia no quadro uma palavra, que deveria ser lida em voz alta. Na sua vez, ele se dirigiu timidamente ao lugar designado. Detestava esses momentos. Enquanto a professora determinava sua sentença, ele se lembrou de uma aula de Matemática.
Ele pediu três vezes para o professor explicar a mesma função estudada, dado que não estivesse entendendo o conteúdo. Seus colegas, contudo, inquietaram-se e, quando o alarme soou, todos aplaudiram e saltaram, ao mesmo tempo, de suas cadeiras, comemorando e gritando coisas como, “Até que enfim!” e “Já não aguentava mais!” Nesse dia, ele permaneceu na sala chorando sozinho.
— Pronto, leia — a professora disse, arrancando-o da memória ruim.
Ele olhou para o quadro e viu a palavra. Viu, mas não a leu propriamente. Tinha dificuldade para ler e escrever e isso o fazia sentir-se um tonto perante os demais. Na sua família, seus avós e tios censuravam seus pais alegando que, com nove anos, ele passava da idade de aprender. A mãe culpava a “incompetência da psicopedagoga”; ele ouvia tudo calado em algum cantinho da casa.
ϽONIFANAÇ
Para ele, simplesmente não fazia sentido. Uns burburinhos propagaram-se no ar e gotículas de suor formaram-se em sua testa.
— Turma, silêncio, por favor, vamos respeitar o amigo! — a professora advertiu. — Tenha calma, leve seu tempo… — encorajou-o. Nervoso, ele fez uma nova tentativa.
ϽO NI F ANA Ç
Agora, os símbolos pareciam dançar no quadro. Cerrou os punhos e mordiscou os lábios. Percebendo que a tensão tomava conta dele, a professora adiantou-se, antes que a turma saísse do controle, e falou com serenidade:
— Tudo bem, sem problema. Está escrito “confiança”. Esse é um sentimento que cada um de nós precisa cultivar dentro de si, como uma sementinha que plantamos e aguardamos uma longa estação até que ela brote e se torne uma árvore grande e forte, cheia de flores e de frutos. Entendeu? — ela perguntou fitando-o nos olhos. Ele respondeu com um sorriso acanhado e apressou-se de volta a seu lugar, ansioso pelo alarme sinalizando o fim das aulas.
Como seu turno terminava mais cedo, ficou esperando pelo irmão na saída. A chuva havia cessado, todavia, o céu continuava nublado. Eles voltariam de carona com a mãe de um dos amigos do irmão, visto que seus pais faziam revezamento semanal. Quando chegaram ao condomínio, ele levou vários murros de vingança pelo que havia acontecido mais cedo e foi trancado só de cueca do lado de fora do apartamento. Não importou o quanto bateu na porta e o chamou, o irmão não abriu. Só o fez depois de quase uma hora, porque ele foi até uma vizinha, uma senhora gentil, e pediu para telefonar avisando a sua mãe. Isso fez com que ele levasse mais uma bofetada ao entrar.
A mãe chegou por volta das 18h:30, fez um sermão demorado e proibiu o filho mais velho de jogar online por uma semana, ele saiu da sala praguejando e bateu a porta do quarto, furioso. Lá pelas tantas, o pai ainda não havia chegado nem atendia às seguidas ligações da mãe, que gritava impropérios pela casa. Cansado, ele escovou os dentes, pôs o pijama e deitou-se para dormir.
Acordou de madrugada, após um pesadelo agoniante, a mandíbula comprimida e as costas suadas. Ofegante, ousou encarar a escuridão que o envolvia. Eis que, dos recônditos mais inescrutáveis, seu monstro retornou, “Estava demorando”, pensou conformado, pois o Uivante nunca ia embora. Não. Ele vivia espreitando-o maliciosamente, esgueirando-se por meandros cuja mera percepção é incapaz de compreender.
O Uivante tinha cabeça de serpente, corpo e patas dianteiras de leão, patas traseiras de bode e cauda de anquilossauro. Era uma criatura realmente execrável, que alguém só encontraria em seus pesadelos mais terríveis. Porém, essa não era a pior parte. Antes fosse! O bicho não fora nomeado à toa: sua barriga emitia um ruído pavoroso e ensurdecedor que mais se assemelhava aos uivos tenebrosos de uma alcateia faminta ou aos gemidos de uma centena de moribundos.
O temor apossou-o vez quando o Uivante subiu em sua cama e, encarando-o com seus gélidos olhos reptilianos, pressionou seu peito com suas pesadas patas leoninas. No entanto, mesmo sufocando e tremendo, ele permaneceu imóvel, porquanto receasse o que aconteceria caso o afrontasse. Mas a criatura continuou apertando-o e, para seu horror, pôs sua língua fina para fora. A peçonha gotejava sobre o lençol. Aproximou a cara de sua face. Quando a bifurcação asquerosa estava prestes a penetrar seus olhos, ele gritou, enfim. Gritou muito, na tentativa de abafar os ruídos grotescos provindos da barriga odiosa. Esta foi a primeira vez que ele decidiu enfrentar o Uivante: estava exausto de submeter-se a seu jugo cruel. Por isso, gritou e agitou-se bruscamente, derrubando o monstro da cama.
Subitamente, a luz do quarto foi acesa. Era seu irmão, o semblante assustado. Logo depois veio a mãe.
— O que aconteceu?!
O irmão deixou o quarto. Seu coração palpitava ansioso. Até o pai, que nunca se levantava nessas ocasiões, apareceu. O irmão retornou com um copo d’água e o entregou à mãe, que estava sentada na cama ao seu lado. Bebeu tudo.
— Eu disse que devíamos ter comprado o abajur naquele dia… — queixou-se pai. — Vem dormir com a gente, então, eu levanto cedo — falou e saiu, seguido do filho mais velho.
Aninhou-se no colo da mãe, que o colocou no braço e o levou. Sentiu-se aliviado. Porém, olhando para trás, ele viu uma ponta de cauda que mais parecia uma maciça clava óssea desaparecer debaixo de sua cama.
FIM.
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