
Gutenberg Löwe
Maíra dividia sua vida entre antes, durante e depois da escuridão. A faca que cortou sua realidade em duas tinha coração de aço e um ronco potente e era manuseada por mãos incompetentes. Mãos que deixaram cicatrizes na própria alma da mulher.
***
Nos tempos solares, quando Maíra achava que mesmo com as dificuldades financeiras dava para ser feliz, a perda nunca passou por sua cabeça. Principalmente naquele dia especial, aniversário dos gêmeos. Em um momento, ela, o marido e os filhos esperavam o ônibus do shopping. Era domingo e o filme Procurando Dory. Raul e Júlia balançavam-se nos braços dos pais, ansiosos pelo momento em que assistiriam ao filme que todos de sua turma comentavam.
José Geraldo, cujas mãos calejadas assentaram com sangue e suor vários apartamentos e prédios na cidade, aproveitou o dinheiro de um bico para fazer a festa das crianças. Começariam com aquela sessão especial, depois viria a comemoração em casa com os amiguinhos e parentes. Preparar tudo custou uma semana para Maíra, tendo que fazer doces, salgados e bolo madrugada adentro quando voltava de seu emprego no supermercado e os filhos já dormiam.
Mas os pais, inflados como os balões escondidos na oficina de Geraldo, poderiam viver apenas do sorriso radiante que começava em Raul e terminava em Júlia naqueles instantes de espera. A celebração à noite seria apenas o marco de um dia perfeito.
Então o mundo se despedaçou.
Um barulho que lembrava um balão estourando, só que aumentado pela força divina até se tornar trovoada maldita. Gritos intensos rasgando sua garganta ou seria a de Júlia. Dor. Desorientação. Cheiro de sangue e borracha queimada.
Maíra mergulhou na escuridão que veio envolvê-la. Sonho ou morte? Não importava, era um vazio entre o que foi e o que será. Não se sinta abandonada, disse algo, ecoando por aquela infinitude impossível.
Clarões de lucidez. Paredes brancas e pessoas vestidas com roupas verdes claras. Luzes que passam rapidamente sobre sua cabeça enquanto o barulho de rodinhas ferindo o chão persiste.
Outra vez a escuridão. E assim, ao longo de dias, enquanto ela escutava a mesma voz calma e reconfortante sussurrar em seus ouvidos:
— Eu não deixaria que isto acontecesse contigo e com sua família. — Havia certa melodia naquelas palavras. E também inquietação.
Pois cada vez isto a lembrava que não sabia onde estavam os filhos. O que teria acontecido com Geraldo. Ou com ela mesma. A garganta que parecia sempre seca a impedia de conversar, e as enfermeiras evitavam qualquer exposição para a paciente.
Em outros momentos, a voz voltava, agora com sedução e alento. Maíra não tinha forças para reagir. Pelas sensações boas despertadas e por sua formação cristã, a mulher aos poucos dava-se conta de que Deus falava com ela. Só ele poderia intervir quando ela estava imersa naquela escuridão, não é? Como o pastor que sai atrás de sua ovelha desgarrada.
Como resposta a um desses pensamentos, vinham declarações enigmáticas que produziam uma coceirinha atrás da orelha de Maíra. Como essa, escutada após uma hora de gritos roucos produzidos pela coluna em chamas.
— Você não precisa sofrer assim, minha filha. Basta uma palavra e estará livre de toda a dor.
Mas sua mente não conseguia formular nada em meio às sombras que se encontrava. Quando muito consciente, a mulher conseguia apenas tentar revirar-se, mas falhava, como se o próprio corpo tivesse rebelado-se contra ela.
A primeira vez em que Maíra respondeu a qualquer uma das iniciativas de seu interlocutor misterioso foi ao descobrir o destino dos seus. Foi também o primeiro dia em que aquela voz ganhou forma.
Era um rosto daqueles de galãs de cinema: olhos azuis e grandes, boca cheia moldada em um sorriso no canto da boca, os cabelos claros caíam sobre a testa. Maíra piscou, e naquele instante, a forma mudou para uma esfera de luz calcinante que tinha um par de asas e todos os olhos do mundo.
— Posso fazer com que você se vingue daquele que destruiu sua família — disse ele, sentando-se à beira da cama. Era outra vez aquela imagem angélica.
— Meus meninos? — A pergunta ressoou no peito, ondas de um pesar crescente arrebentando-se contra suas esperanças. — Meu Zé?
— Estão todos mortos, Maíra — respondeu com a cabeça baixa. Pegou a mão dela, acariciando a pele escura. — Um atropelamento. Motorista bêbado, mas que foi solto sob fiança. Filho de uma juíza, sabe.
Os sons passaram por seus ouvidos, mas parecia que Maíra não os entendia. Ou melhor, não queria entender. O som de um balão estourando voltou à sua memória. O dia em que começaram a preparar a festa para os pequenos ou em que tudo se despedaçou?
— Embora você não tenha dito as palavras, me permita fazer algo — disse o homem com um novo sorriso.
Ele puxou o braço de Maíra, mole como macarrão, até tocar a mão com os lábios. Um calor agradável brotou dali, escorrendo pelo restante do corpo. Ainda sorrindo, o homem levantou-se, esticou as mãos e, enquanto os membros quase atrofiados sentiam vida nova, enfiou suas mãos através do tórax dela. Atingiu a coluna, colocando-a em chamas, os dedos moveram-se ali, produzindo cócegas.
Em um momento, Maíra ergueu o braço para pedir que parasse, no entanto, foi ela quem ficou imóvel. A surpresa a paralisou, vendo a mão erguida depois de tanto tempo caída ao lado do corpo. Recuou o braço, levando-o ao rosto para tocar a pele áspera.
— Aceite isso como boa vontade. — Então desapareceu, deixando Maíra sozinha.
***
Sua alta veio alguns dias após a visita, sua súbita recuperação e todos os protestos de seus médicos. Os melhores prognósticos dados eram de uma paraplegia, mas a opinião deles era que Maíra morreria sobre uma cama, tão rígida quanto uma estátua. Por isso se recusaram a permitir sua partida.
Contudo, o volume de obrigações de Maíra — encontros com policiais, advogados e até repórteres — acabou forçando a decisão. Para evitar que aquilo causasse mais problemas e perturbações na rotina hospitalar e levando em conta que a paciente não apresentava qualquer problema, a liberaram.
Assim começou a luta de Maíra pela justiça, a única coisa que podia desejar naquele mundo no qual perdera tudo de importante. Embora a dor física tivesse desaparecido, o abismo em seu coração era impossível de ser preenchido. Ela tentava, prestando atenção em cada parte do processo. Uma distração que visava um objetivo maior.
O responsável pela morte de sua família estava preso desde o dia do acidente. Por mais incrível que fosse, não estava bêbado, mas sua tentativa de fugir sem prestar socorro acabou colocando-o em prisão preventiva. Os advogados de Maíra, dois jovens idealistas, trabalhavam dia e noite para montar o caso da melhor maneira possível.
Enquanto isso, a mulher vagava na escuridão, ancorada na realidade com seu terço, presente da avó quando da sua primeira comunhão. Em vez das orações, passava as contas vermelhas murmurando os nomes dos filhos ou do marido. No silêncio da casa esvaziada, chorava pedindo a Deus punição para o desgraçado. No fundo de sua mente, ouvia um eco — como se fosse resposta aos pedidos. Estremecia ao lembrar dos delírios no hospital. Mas nunca deixava de perguntar: e se?
***
O julgamento veio depois do que pareceu uma eternidade. Durante todo esse tempo, os jovens advogados garantiam que Maíra teria justiça com aquele processo.
— O trabalho de meses inteiros cria um enredo vencedor — disseram várias vezes.
E não estavam errados. Longe disso, na verdade. Mas não aconteceu do jeito que esperavam: a defesa conseguiu provar não apenas que o acusado tinha problemas mentais — uma forte depressão à época do acidente, obrigando-o ao uso de remédios pesados — como que o veículo sofrera pane mecânica, resultando na fatalidade.
Resultado? Declararam-no culpado de homicídio culposo. A pena distribuiu-se entre uma reclusão numa clínica, cestas básicas e trabalhos comunitários. Uma indenização também seria paga à família — isto é, a Maíra.
Durante as semanas que antecederam aquele momento, ela se mantivera firme como as colunas que José Geraldo erguera durante toda vida. No entanto, acabou estremecendo com o veredito. Ela ainda segurava o terço quando ouviu aquelas palavras vazias. Mas o aperto era mais frouxo do que nas primeiras horas desde o início da sessão.
— Não podemos perder a esperança — disse um dos advogados, arrastando-a para fora. Como se não tivesse mais controle sobre seu corpo, aceitou aquela interferência.
Naquele momento, Maíra vislumbrou a presença do homem do hospital. Ele usava um chapéu escuro e levantou-o para ela em cumprimento. Asas flamejantes e olhos infinitos surgiram quando Maíra piscou. Depois, não havia nada.
— Temos instâncias superiores para recorrer — continuou o advogado.
— Sim, temos. — Deixou o terço cair, esquecido sob os pés que deixavam o fórum.
***
O homem apareceu para ela no terceiro dia. Não bateu à porta ou tocou a campainha. Apenas surgiu no meio da cozinha da mesma forma como
— O que eu preciso fazer? — perguntou Maíra, encarando os olhos amarelos dele.
— Apenas dizer aceitar.
— E o que acontecerá comigo? — com minha alma quis perguntar, mas conteve-se.
— Tudo tem seu preço. Ele pode fazer no varejo, mas costumo trabalhar mais no atacado. Pela vida de um, quero a de alguns.
Maíra abaixou a cabeça, olhando os pisos que José Geraldo assentara com cuidado. Aquela casa fora feita durante os fins de semana e intervalos entre o trabalho em uma construção e outra. Não tinha mais que brigar com os gêmeos por ficarem sujando-o após ela ter ficado o dia inteiro limpando a casa.
— Não vamos mais perder tempo, então.
Seu sorriso veio flamejante daquela vez. As asas se abriram, cobrindo quase todo o cômodo. Eram belas da mesma forma como o fogo consumindo a lenha, e, da mesma forma, revelavam-se perigosas.
— Primeiro aceite isso em seu coração, repetindo minhas palavras.
Maíra assentiu logo. Pesara aquela loucura antes. Na verdade, desde o dia em que encontrara-o no fórum teve certeza de não ter alucinado no hospital e que havia uma oferta capaz de livrá-la daquela dor no peito arrebentado.
— Pelo ferro e pelo sangue nos unimos — proclamou ele, seguido por Maíra. — Pelo fogo e pela nós prosseguimos. Pela verdade e pela punição nós existimos.
Cada frase retumbava em seu peito, estremecia os braços acostumados ao trabalho duro. Uma dúvida surgiu e desapareceu em sua mente como o clarão que anuncia a trovoada.
Não tinha mais volta.
Não tinha mais nada.
Exceto por aquilo.
— Você se oferece? — perguntaram mil olhos curiosamente cruéis.
— Sim.
O homem deu uma adaga à Maíra. Sua lâmina era fina, avermelhada e ornada com símbolos que a mulher não identificava. Eram curvos e lembravam mãos erguendo-se em súplica, cada uma delas direcionando-se rumo ao fio. Quando a tocou sentiu algo pulsar no cabo escuro, uma espécie de conexão entre ela e a criatura se firmando. O que seria aquilo?
— Faltam apenas dois passos agora. — A voz aguda tirou Maíra de seus pensamentos.
Então ele recitou algumas palavras que Maíra mais sentiu serem queimadas em sua mente — até em sua alma, talvez? — do que ouvidas. Não era qualquer língua que ela tivesse escutado antes. Na verdade, não parecia com qualquer coisa que um ser humano fosse capaz de pronunciar.
— E vocês não são mesmo — comentou a figura, lendo os pensamentos da mulher. — Por isso estão gravadas em você. Basta pensar nelas que o sortilégio começará. Se você se mostrar forte e competente, novos mistérios serão revelados. Talvez você até faça a mudança completa e aprenda o que é realmente ter poder.
Não era algo que interessava a Maíra, pelo menos não naquele momento. Queria poder se vingar, fazer com que o assassino de sua família pagasse pelo sofrimento. Ela sabia que nada do que fizesse os traria de volta, mas precisava vê-lo responsabilizado. Em outras palavras, ansiava pelo seu sangue.
— Só resta uma coisa a ser feita antes de realizar seu desejo.
— O quê?
— Livrar-se de sua vida passada.
Maíra assentiu e ergueu a lâmina até o pescoço. As mãos gravadas pareceram balançar conforme o sangue corria pela adaga, a ausência de dor ou calor chamando a atenção da mulher. Quando terminou o corte, reparou que em um corpo caído no chão enquanto permanecia de pé com sua arma.
A escuridão abriu-se diante dela, permitindo que sua alma esfarrapada finalmente escapasse. O mundo não voltou a ser o mesmo de antes, mas agora a ferida cicatrizaria. A marca ali seria seu memorial para a família perdida.
— Bem-vinda aos ceifadores — disse a figura. As asas bateram, lançando faíscas sobre toda a cozinha. Logo um incêndio ou o gás explodindo daria conta de tudo ali. — Agora vá fazer sua primeira colheita.
Maíra aprendeu que o primeiro feitiço transmitido era responsável por camuflá-la no mundo. Para vigiar o condomínio no qual o assassino morava, seu corpo assumiu as feições de um morador de rua. Tudo, desde a sujeira no corpo até as roupas puídas, surgiu de acordo com a imaginação da feiticeira.
Ela ajeitou-se em um canto, do outro lado da rua, onde tinha visão da garagem e guaritas do prédio. Ali havia dois fluxos de pessoas: o primeiro era das empregadas que chegavam pela manhã, desembarcando dos ônibus no começo da rua e caminhando até ali; o outro era dos moradores que deixavam a garagem em seus carros.
Ficou um dia inteiro sentada naquele lugar, aproveitando-se de outro tipo de camuflagem — quase uma invisibilidade, poderia dizer. Apenas alguns se manifestaram ao vê-la jogada ali. Ofereceram comida, mas não havia apetite. Ao longo das horas não veio fome, cansaço ou qualquer outra das necessidades humanas. Era como se realmente tivesse deixado seu corpo para trás em meio à cozinha incendiada.
No entanto, ainda sentia a materialidade do mundo, apenas não se incomodava com frio ou calor ou a chuva que caiu durante a noite. Maíra nem mesmo existia mais, sendo realmente o nome daquele cadáver descartado.
Quem era agora?
Como se parando para pensar naquilo pela primeira vez, a entidade listou os novos fenômenos de sua existência: fizera um pacto com uma criatura desconhecida; era capaz de mudar sua forma e línguas alienígenas cantavam em sua cabeça; não precisava de nada para se manter viva. Se é que estava viva, no fim das contas.
A reflexão ficou pela metade, pois uma oportunidade se revelou. Apertando o punho da adaga, ela atravessou a rua quando o portão da garagem abriu-se para permitir a entrada de um morador. No caminho, transformou-se mais uma vez, agora na própria figura que desejava matar.
Mergulhada na escuridão da garagem, esperou para realizar sua primeira colheita. Apagou tudo da mente a não ser uma nova fagulha, responsável por perceber o mundo exterior. Como se fosse um cão de caça, aquela parte dela avisaria quando o desgraçado aparecesse.
Após algumas horas, o carro dele — o mesmo que assassinara sua família — estacionou. Em passos leves como as palavras que ela cantava, a entidade aproximou-se da porta do motorista. Num instante o jovem encarava o vazio, a expressão embrigada, no outro o susto estampava seu rosto contraído.
— Que as chamas do Inferno queimem nós dois — disse ela, erguendo a arma enquanto os olhos dele ainda tentavam compreender o que acontecia.
Deu um único golpe sobre o coração. Lâmina e rapaz pareceram guinchar na mesma frequência obscena. Porém, sua adaga gritava de prazer, sorvendo o sangue do assassino enquanto este agonizava aos pés da entidade.
Apenas quando o último resquício de vida deixou o corpo é que ela removeu a arma. Antes do ato, pensara nas sensações que poderia ter ao realizar sua vingança. De todas — remorso, júbilo ou terror entre tantas — nunca imaginou que fosse sentir-se satisfeita.
Era a satisfação de um trabalho bem-feito e a esperança de melhorar nos seguintes. Certeza de que para cada crime sem punição haveria um castigo esperando para ser aplicado.
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