Aquelas férias em Varginha

Gutenberg Löwe

Quanta alegria! Quanta vivacidade! Vendo essas crianças, não sei do que mais sinto falta: das minhas pernas ou das minhas esperanças. Acho que o segundo, com certeza. Aprendi a viver bem sem poder andar, mas o medo do que se esconde lá em cima… isso queria não ter mais.

Não fique com essa cara feia. Concordei em dar esse relato porque precisava falar sobre tudo que aconteceu comigo em 1996. Mas também quero explicar como me sinto hoje, depois desses trinta anos.

Tudo bem. Vou começar a falar o que realmente interessa. Só espero que esteja gravando, porque não quero repetir isso. É coisa sofrida demais que até hoje tenho as marcas comigo, sem contar a forma que isso mexeu na minha cabeça. Vamos lá, então.

Eram as férias de janeiro e fui para a casa de uns tios lá em Varginha. Era a primeira vez que viajava sozinho, tinha meus dezesseis anos, então estava bastante animado para o que iria acontecer. Eu e meu primo Paulo iríamos colocar o bairro em que ele morava abaixo com nossas bagunças e ainda podia rolar aquela mina que gostasse de uns caras meio doidos como a gente.

Cheguei no começo do mês, logo após ter passado a virada do ano com meus pais. Desembarcando na rodoviária, encontrei meu tio meio sonolento e fomos para casa dele. Era uma manhã fria de segunda, algo meio estranho para aquela época do ano. Mas, vindo de Juiz de Fora, estava acostumado com o tempo mudando rápida e drasticamente.

Por sorte aquilo não atrapalhou nossa pelada da manhã, iniciada logo após comer alguns sanduíches com meu primo. Paulo me levou até um campinho que ficava algumas ruas abaixo da casa dele, ponto em que se encontrava a galera do bairro para jogar bola e outras coisas.

Que coisas? Bem, o Paulo e a maior parte dos desgraçados estão mortos, então meio que posso falar sem preocupação. Cogumelo de bosta de boi! Maconha! Uma vez, ele me disse, rolou até ácido que um conhecido de Belo Horizonte tinha levado pra impressionar as meninas. Mas era coisa que rolava mais de tardinha, perto de escurecer porque aí dava pra levar as minas já meio doidas pro mato.

Ele me contou isso tudo enquanto descíamos para aquele campinho do inferno. Paulo cumprimentava as pessoas, assentindo para os homens mais velhos e lançando sorrisos safados para as mulheres — independente da idade. Ele tinha dezoito anos, gostava de puxar ferro, parecia o Schwarzenegger naquele filme do Conan. Claro que qualquer uma era doida pra dar pra ele, né? Queria aproveitar essa influência e dar a partida nos meus negócios também. Tava meio cansado de ser virjão, embora pagasse de descolado na escola.

Chegamos lá depois de uma caminhada rápida que reuniu mais uns dois ou três moleques, uns carinhas mais novos, então era certo de que só iria rolar mesmo a pelada. Já tinha uma galera lá esperando, umas gatinhas que fiquei secando muito antes de nos aproximarmos do campinho.

Paulo me apresentou pro pessoal. Trocamos uns cumprimentos rápidos, separaram o time. Durante esse processo — era o Paulo escolhendo de um lado e um carinha magricelo do outro — minha atenção variou entre dois pontos: o primeiro deles era a mulher mais bonita que tive o prazer de beijar; o outro era um rapazinho que ficava à parte do grupo. Acho que tinha Síndrome de Down ou alguma coisa parecida. O povo meio que cuidava dele nas ruas, incluindo o Paulo que o tratava como se fosse um irmão mais novo — coisa que ele nunca teve.

A moça era Isabella e o menino Joaquim. Dois nomes que guardo comigo até hoje. Duas pessoas que o destino colocou na minha vida e gostaria de que tivesse sido diferente, sabe? Talvez não estivesse aqui falando contigo sobre essas coisas zoadas que aconteceram e ninguém acredita. Ser deficiente foi difícil, enfrentei bastante preconceito do povo que me achava menos gente por não ter as pernas. Porém o pior mesmo é ser chamado de doido e ver as crianças apontando para mim como se fosse algum tipo de bicho-papão.

Bem, naquele primeiro dia a gente não se aproximou, mas quando fiz um gol dediquei a Isabella que ficou toda envergonhada daquilo. Meu primo me pediu pra ir com cuidado, porque o pai dela era bravo e trabalhava na polícia. Brinquei que só essas valiam a pena arriscar e ele me deu um tapinha e uma piscadela.

Paramos apenas para almoçar, quando Paulo pegou Joaquim pela mão e o levou para casa conosco. Meus tios também gostavam bastante dele e a recíproca era mútua. Fiquei incomodado com aquela relação entre eles — não que fosse preterido em favor dele ou algo assim. Apenas achava que por sermos do mesmo sangue, me dariam privilégios.

Àquela época, eu era muito arisco e imaturo, achando que meus dezesseis anos durariam para sempre e que nunca estaria numa situação de fragilidade. Por isso, depois do almoço quando meu tio levou Joaquim embora em seu caminho para o trabalho provoquei meu primo. Insinuei relações pouco saudáveis entre ele e o doidinho, recebendo um belo soco no rosto e uma lição de moral por essa ousadia.

Passamos esse e o dia seguinte estranhados, mas no terceiro nossa amizade ressurgiu quando me desculpei. Foi naquela tarde que dei meu primeiro beijo em Isabella, motivado pela coragem dada por duas apertadas em um baseado vagabundo. Com ela comentei sobre a briga motivada pelo comentário maldoso com Joaquim de alvo. Ela falou a respeito da dificuldade que era pra família dele, todo mundo pobre e sem instrução, mas que trabalhavam o dia todo atrás de latinha e outras coisas recicláveis. Assim, o pessoal do bairro meio que acolheu o menino para ser uma criança comunitária e tirar essa preocupação dos pais dele.

De fato, via como Joaquim entrava e saía das casas sempre bem tratado e os moleques de lá, intimidados por tratamentos como aquele ministrado a mim por Paulo, dividiam as merendas e brincavam com ele, pouco a pouco se tornando mais e mais amigos. Entendi a situação, mas era jovem demais para conseguir penetrar em todas as camadas dela. E estava interessado mesmo era em chegar fundo em outras coisas. Rapaz novo, sabe como é?

Os dias passaram sem muita novidade além da aproximação entre Isabella e eu. Ainda não tínhamos chegado aonde eu queria, mas era doce demais aquela menina, ao ponto de me contentar em ficar com ela no barranco, vendo o povo jogar. Numa dessas ocasiões Joaquim chegou pedindo um beijo para ela, coisa que acontecia o tempo todo, porém, naquele instante eu estava de cu virado: tinha ficado de fora da escolha inicial nos times e saído duas vezes porque o meu lado perdeu e joguei mal demais.

Por conta disso, fui grosso com o Joaquim — tanto com palavras quanto atos. Empurrei o menino para longe, aquele rosto sempre sorridente porque todos o amavam transformando-se numa carranca de medo e vertendo lágrimas. Ele saiu correndo para a mata que tanto almejei entrar com Isabella e isso chamou a atenção dos rapazes jogando bola.

Paulo chegou primeiro onde estávamos e Isabella entregou toda a história antes mesmo que eu tivesse chance de me defender. Não que houvesse qualquer justificativa para aquilo, claro. Fui escroto demais, porém, não tinha idade suficiente para admitir aquilo. Levei um safanão do meu primo e recebi a missão de ir atrás do moleque no meio da mata.

Era 20 de janeiro de 1996, faltava uns dois ou três dias para eu vir embora. Mas se não fizesse aquilo, acho que aquele pessoal acabaria me dando um coro que seria quase o mesmo que morrer. Então aceitei, os dentes trincados de raiva por precisar fazer aquilo.

Por mais incrível que fosse, Isabella se ofereceu para ir comigo, e fomos. Tinha que ser rápido, pois já começava a escurecer e parecia que vinha chuva forte naquela noite. Eu e ela entramos no ponto em que Joaquim havia sumido e começamos a gritar o nome dele. Por mais que houvesse alguns problemas com o menino, ele respondia sempre que chamavam seu nome, logo, era a forma mais fácil de achá-lo.

Só que a noite caiu e não vimos nem sinal dele. Aquilo fez com que a busca se intensificasse, juntando a mim e Isabella toda a galera que estava para a pelada da tarde. O pessoal esqueceu os bagulhos que já estavam bolando para encontrar o Joaquim. O mato se encheu com o nome dele gritado de um lado para o outro, no entanto, sem resultado algum.

Àquela altura, já estava com um cagaço danado achando que o menino tinha se machucado ou acontecido qualquer outra coisa com ele. Paulo volta e meia chegava perto de mim, me segurava pelo ombro ou pelo braço e dizia que se não achássemos o Joaquim ou se ele estivesse de alguma forma machucado, eu pagaria por isso. Motivação e tanto, né?

Já devia ser umas nove horas da noite quando vimos as luzes pairando sobre a copa das árvores. Tinha umas boates que costumavam usar uns holofotes bem intensos, porém, era o caso deles virem de baixo para cima e em lugares mais agitados. Então aquilo chamou minha atenção, já cansada por uma busca infrutífera e sabendo que meu couro sofreria bastante por conta do que fiz com Joaquim.

Não querendo ficar sozinha, Isabella me acompanhou enquanto caminhávamos naquela direção. As luzes faziam movimentos circulares, chamando sua atenção. Ela comentava sobre como aquilo podia ser os olhos de Deus vasculhando a terra em busca de sua ovelha desgarrada. Eu ri baixinho daquilo. Ela era uma mulher muito bonita, sonhava em ser escritora e tinha uma fé que superava até o tesão por mim. Não por acaso, a única forma de levá-la para o meio do mato foi na busca por Joaquim. Mas eu achava aquelas ideias um tanto bizarras — só escondia bem para não queimar meu filme com ela.

Conforme nos aproximávamos do local em que mais se concentravam as luzes, mais os pelos do meu corpo se arrepiavam. Era como ligar a televisão estando pertinho da tela, como se atraídos pela eletricidade de lá. Reparei que eu e Isabella não éramos os únicos que convergiam para aqueles pontos luminosos, embora fossemos os primeiros a alcançá-las.

No instante em que isto aconteceu, meu estômago revirou do mesmo jeito que fazia quando rodopiava demais ou cismava de colocar mais força na gangorra. Isabella apertou minha mão — se buscava apoio ou oferecia, nunca soube. Um som estridente atravessou minha cabeça, somando-se ao desconforto na barriga. Aquilo me fez dobrar os joelhos em busca de algum conforto. Cobri os ouvidos, mas aquela falta de sintonia no mundo atravessava diretamente até chegar dentro de mim.

Então comecei a ouvir palavras, repetidas sem sentido algum e numa velocidade impossível de ser compreendida. Pouco a pouco fui percebendo que havia padrão naquilo. Era uma voz infantil, familiar para mim, mas que demorei um pouco para reconhecer: Joaquim. Prometia me punir pelo que tinha feito com ele.

Balancei a cabeça, como se isso pudesse funcionar fora dos desenhos. Pelo menos me ajudou a encontrar um novo foco de atenção: a garota que aprendia a amar. Isabella ao meu lado estava caída no chão. Seus olhos reviravam-se enquanto ela murmurava alguma coisa sobre anjos chegando à Terra e o começo do Juízo Final. Em certo momento, seu corpo se inflamou sozinho, consumindo-a numa bola de fogo e gritos e dor.

Joaquim apareceu diante de mim, no entanto, era uma versão diferente dele. Em vez da expressão sorridente e de amizade fácil, seu rosto estava fechado numa máscara de ódio e repulsa. Atrás dele havia uma criaturinha de olhos amendoados, sua pele parecendo um tom cinza escuro, sem pelos ou outras marcas.

O peito de Joaquim se abriu como se fosse uma daquelas plantas carnívoras que capturam moscas. Daqueles dois lábios ensanguentados, sustentados pelas costelas expostas, saiu uma língua gigantesca formada pelos intestinos. Serpenteou no ar por um instante e aproveitei essa oportunidade para fugir.

Naquele momento, já sabia que a merda tinha acertado o ventilador. Ao meu redor, os outros que o procuravam gemiam e gritavam, cada um perdido em seu próprio inferno. O meu precisaria vir me pegar se quisesse aplicar qualquer punição.

Não sabia ao certo para que lado correr, porém, tinha uma noção perfeita de qual evitar. Assim me embrenhei na mata outra vez. Ouvia outros passos, mas era incapaz de saber de onde vinham ou qual seria o destino deles. Tudo que minha mente tinha como foco era correr, ir o mais longe possível daquela figura que antes era apenas um rapazinho especial.

Talvez eu fosse conseguir me afastar do pesadelo, romper a linha das árvores e voltando para o campinho ou algum lugar próximo ao bairro dos meus tios. Não era como se aquela matinha fosse se estender por uma área bem grande, né?

Independente do seu tamanho, meu fôlego não foi o bastante para vencer meu perseguidor. Ou melhor, sua língua enorme. Tropecei em um tronco, ralando o rosto em algumas pedras quando algo quente e gosmento enrolou-se na minha perna. Tentei chutar com a outra, porém, algum tipo de anestésico era secretado e tornava minha luta cada vez mais difícil.

Comecei a ser arrastado por entre os arbustos e mato. Na cabeça, uma viagem que droga alguma desse mundo me permitiu empreender outra vez. Estava mesmo fora do meu corpo, tanto que não reparei quando a criatura fechou-se sobre minhas pernas, liberando uma espécie de ácido nelas. Só fui saber disso mais tarde quando acordei no hospital após o efeito do entorpecimento passar.

O que aconteceu em seguida, e ainda me recordo bem disso, apesar de estar no limite da consciência, foram os disparos dos militares. Já chegaram atirando e mandando o povo avançar e se entregar. Não sei como escapei das balas, embora várias tenham perfurado a coisa-Joaquim. Acabaram matando-o para me salvar. Irônico, não acha?

Quando o Incidente de Varginha foi noticiado, pensei que me entrevistariam ou ao menos buscariam minha versão. Conversei apenas com um coronel — foi bem uma coisa unilateral, na verdade —, basicamente me pedindo para não dar entrevistas ou coisas do tipo. Deixaram apenas quem não havia experimentado os contatos de terceiro grau fornecerem informações, a sua maioria desconexa.

Até hoje. O câncer deve me levar em breve, então posso ser sincero. Quero pedir desculpas à família do Joaquim que acabei desgraçando assim como de todos os outros envolvidos naquela busca de janeiro. Se não fosse um moleque imbecil, todos eles ainda estariam vivos; poderia ter me casado com Isabella e seguido carreira como jogador de futebol. Tinha uma peneira marcada na volta pra casa, acredita?

É um monte de sonhos desfeitos, nenhum deles tão horrível quanto aquela inocência perdida. As crianças brincam apenas por não saberem o que paira sobre suas cabeças. Sorte que são poucos e interagem ainda menos. Caso contrário, só a piedade divina para nos livrar dos ETs.

Uma resposta para “Aquelas férias em Varginha”.

  1. Avatar de Thiago Alves Faria
    Thiago Alves Faria

    Fantástico! Me prendeu!

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