Socorro, mãe

Vin Lee

— Socorro, mãe — gralhou a Lôra, dando voltas em cima de seu poleiro, impaciente, me acordando. 

Enquanto recobrava meus sentidos, senti a dor na minha bunda e o torcicolo que afligia meu pescoço, consequências de uma longa viagem de ônibus. 

    Me perguntei onde estava com a cabeça quando comprei essa papagaia ranzinza. Imaginei que ela ficaria no meu ombro enquanto trabalhasse em casa, mas não consigo nem limpar sua gaiola sem tomar um belo beliscão. Parecia até que vivia uma versão tupiniquim de O Corvo, pois a Lôra só dizia “Socorro, mãe”, para minha frustração e confusão. Para acalmá-la, abri o pote onde guardava suas sementes de girassol, as únicas coisas que Lôra amava nesse mundo, e dei uma para ela, evitando uma bicada no processo.

    Felizmente, a Lôra não acordou os passageiros que estavam dormindo e nem chamou a atenção dos que estavam absortos em seus celulares. A viagem já era longa e desconfortável demais para ser vergonhosa também. Depois da única parada no trajeto, o ônibus circularia por uma eternidade, sensação exacerbada pelo fato de estarmos viajando à noite. 

    Alguns sítios tinham um único poste de luz na propriedade, mas a maioria estava às escuras, dificultando saber quais estavam ocupados e quais estavam abandonados, enquanto os campos entre cada um deles se estendiam até o horizonte, como se não acabassem mais. Sempre sentia pavor quando pensava no quão fácil seria desaparecer após deixarmos a parada.   

    Durante a viagem, algo chamou minha atenção: um ponto cintilante no céu. Mesmo não sendo aficionado por astronomia, sabia que aquilo não era uma estrela por estar muito baixa. Logo imaginei que fosse o balão de um infeliz irresponsável, prestes a cair e causar um incêndio no mato seco, mas as luzes pulsavam com uma frequência hipnotizante, como strobes. Minha mente sugeria ser um avião ou um helicóptero, mas algo no fundo do meu estômago se retorcia e rejeitava essas possibilidades. Comecei a suar frio e meu pé começou a bater no chão do ônibus, como se meu corpo me alertasse para sair correndo dali o mais rápido possível.

    — Socorro, mãe — disse a Lôra novamente, quase me fazendo saltar da poltrona. 

Ela gralhou novamente e eu sei que apenas comida a calaria. No meu desespero para voltar a acompanhar o objeto, derrubei todas as sementes de girassol ao abrir o pote, chamando a atenção de alguns passageiros. Dou outra semente de girassol para Lôra, torcendo para que ela ficasse quieta para que pudesse me concentrar no objeto estranho no céu, mas ele desapareceu enquanto estava distraído. 

Meu fascínio se tornou em tédio e voltei ao marasmo daquela viagem, resmungando por ter de catar todas as sementes de girassol sobre mim e sob o banco, enquanto a Lôra se contentava com sua comida.

    Algumas horas depois desse evento, espiar as mensagens alheias já havia perdido a graça e, como um bocejo, a luz do celular do passageiro no banco da frente me contagiou a conferir o meu. A tela acendeu, algumas notificações ativas, mas nada de interessante. Ainda assim, era mais produtivo que ficar olhando pela janela ou saciar os caprichos da Lôra. 

    Foi quando o touchscreen travou. 

Por um instante, pensei que fosse meu celular avisando que era hora de comprar um novo, mas a estática e a interferência na tela eram incomuns. Percebi que não era o único com dificuldades técnicas quando os outros passageiros reclamavam que seus celulares estavam com defeito. 

O motorista, curioso, olhou para trás, distraindo-se da luz pulsante e ofuscante do céu que iluminou o interior do ônibus e a área ao redor da estrada. Os cabelos da minha nuca e os pelos dos meus braços eriçaram e a Lôra abriu suas asas, suas penas todas arrepiadas. Não era mais possível ver a estrada da altura que estávamos e os cintos de segurança eram as únicas coisas que nos impediam de flutuar. 

O silêncio reinava no ônibus e eu prendi minha respiração quando vi o ventre metálico abrir a comporta de nosso novo destino. Senti minha calça esquentar quando minha bexiga afrouxou. A Lôra flutuava dentro de sua gaiola quando ela me olhou com seus olhos amarelos, como se paralisada em pleno voo. O ônibus aterrissou dentro da nave, em um chão iluminado por uma luz etérea, que parecia mais fumaça de gelo seco do que algo sólido.

Eles saíram de uma porta que brilhou no escuro, caminhando como se fossem monges em uma procissão, impressão causada por conta do ângulo: na verdade, eram mais parecidos com louva-a-deus gigantes do que criaturas humanoides.

Por mais que tivesse me irritado, não queria condenar a Lôra ao mesmo destino incerto que me aguardava. A tirei de sua gaiola, quase impressionado com a passividade dela ao deixar tocá-la. 

Ela voou para fora da nave, antes da porta se fechar. 

***

Na manhã seguinte, depois da empresa relatar que um de seus ônibus não havia chegado ao destino, as autoridades investigavam a rota do veículo enquanto a imprensa noticiava o desaparecimento de 26 passageiros. Nada foi encontrado, exceto uma mancha que parecia ter sido chamuscada na estrada e uma papagaia empoleirada em um tronco seco. 

― Socorro, mãe ― ela gralhou com sua voz de taquara rachada enquanto era filmada pela equipe de TV.  

Uma resposta para “Socorro, mãe”.

  1. Avatar de Natalia Rocha Ferranda
    Natalia Rocha Ferranda

    Arrasou, amei muito! Tem o dom da escrita! Continue assim

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