
Vin Lee
Alberto tinha prometido a si mesmo que aquele bico era temporário, coisa de um ano, apenas para ganhar uma grana. Agora, no seu terceiro ano consecutivo dirigindo para a Able, sua promessa ia se cumprir, mas ele não estava nem um pouco diferente de quando começou.
Começou no perfil oficial da Able na Chirper, anunciando a mais nova modalidade em seus serviços, o Autonomous Automobile, apelidado de AuAu pela Chirposfera e prontamente adotado pela plataforma. Motor elétrico potente, design elegante, computador de bordo, poltronas reclináveis, frigobar embutido, bem onde o motorista deveria estar sentado e o mais moderno em segurança para os passageiros.
Nem todos ficaram entusiasmados com a ideia. Os motoristas da Able reclamaram que seriam substituídos. Na publicação, a empresa garantiu que os veículos não iam substituir seus motoristas, apenas complementar suas frotas. Isso pouco aliviou os colaboradores da plataforma.
O pouco que ganhava mal pagava pelo seguro do carro e a gasolina, agora teria que competir com uma máquina que fazia o serviço dele sem parar para comer ou ir ao banheiro. Noventa e nove carros AuAu, todos numerados, já circulavam pela cidade. Os viajantes pareciam crianças no parque de diversões dentro do veículo autônomo, aplaudindo e rindo de tudo que tinha lá dentro, enquanto Alberto e os passageiros amedrontados pela ideia de serem conduzidos por um robô olhavam de cara feia, como velhos ranzinzas.
Porra de Autorama, pensou, rindo para si mesmo do apelido que havia bolado para seu futuro substituto.
A cada dia que passava, suas viagens eram cada vez mais escassas, enquanto os carros autônomos zanzavam por aí, levando centenas de passageiros que poderiam ser de Alberto. Ele estacionou em uma rua, contemplando seu futuro, quando o celular tocou.
― Alô, meu bem ― ele disse, ao ver o nome de Juliana na tela.
― Oi, Beto, como tá indo seu dia? Está com passageiro?
― Não, está tudo bem, pode falar ― respondeu, tentando não parecer frustrado ao telefone. ― Como está a neném?
― Acabamos de voltar do médico com minha irmã. A bebê está bem, está chutando bastante. Ela ganhou peso desde a última consulta.
Embora fosse uma boa notícia, Alberto não deixava de pensar em como já era difícil sustentar a família. Com essa competição dos veículos autônomos, era impossível.
― Meu amor, eu tô recebendo um pedido de viagem, vou ter que desligar agora, tudo bem? ― Mentiu, querendo um tempo para poder pensar em uma solução. ― Eu vou voltar um pouco mais tarde hoje.
Alberto desligou e, assim que olhou pela janela, tomou um susto:
O AuAu #49, estava esperando do seu lado, sabe-se lá há quanto tempo. Graças às câmeras, os vidros eram utilizados para veicularem propagandas enquanto o logo da Able brilhava no para-brisa do carro, anunciando de longe sua chegada.
― Tá perdido, meu chapa? ― Brincou Alberto ao abrir o vidro, como se conversasse com um motorista de verdade.
A piada durou pouco quando percebeu que o carro continuava ali perto. O motor elétrico do robô sibilou várias vezes e, rapidamente, Alberto foi tomado por raiva, como se um motorista invisível caçoasse de sua obsolescência iminente. Em movimento súbito, o carro virou e bateu levemente na porta do de Alberto, fazendo com que explodisse de raiva.
― Sai daqui, Autorama, vai caçar o que fazer! ― Esbravejou Alberto, saindo do carro para confrontar o veículo, que saiu dali cantando pneu.
O homem investigou a área atingida e, após constatar que foi só um toque, sentiu vergonha do que havia acabado de fazer. Lembrou da infância, quando o pai ficava irritado com algum objeto que, em sua ousadia inanimada, estragasse seu dia. Ficou ainda mais constrangido quando pensou que o AuAu pudesse ter uma câmera filmando-o.
Ótimo, agora vou virar meme.
O dia seguiu no mesmo marasmo que havia começado. Alberto levou poucos passageiros, estava perdendo dinheiro ao ficar na rua. Enquanto esperava por pedidos, mandava currículo para todos os sites de vagas que podia. Quando escureceu, decidiu que não ia mais perder tempo na estrada, ignorando qualquer pedido de carona que surgisse no aplicativo.
Enquanto esperava no trânsito, olhou para os lados. Um AuAu com os letreiros desligados estava na sua frente. Talvez seja o fim do expediente para esse, brincou consigo mesmo.
Foi quando notou que, no lado esquerdo, havia outro.
À sua direita, também.
Atrás, idem.
Olhou além desses quatro carros:
Era o único humano naquela rua.
Sentiu um calafrio percorrer todas as suas vértebras, um peso no estômago e todos os pelos de sua nuca eriçando. Pulou do assento quando ouviu o sibilar do motor elétrico do AuAu à sua esquerda. O da direita também sibilou e, em sincronia, todos os outros fizeram a mesma coisa.
Seus olhos arderam quando os letreiros da Able acenderam e o carro de trás o atingiu. Alberto pisou fundo no acelerador, tentando fugir, mas estava encurralado. Batiam nele de todos os lados, até que o da frente saiu do caminho, permitindo que o motorista pudesse escapar.
Como uma matilha, os robôs perseguiam Alberto pela rua, até que ele chegou em um cruzamento. Ele só conseguia pensar em voltar para casa, correr para os braços da esposa e sentir os chutes da filha que estava por vir. O sinal amarelo deu lugar a um vermelho bem no momento que o motorista cruzava a faixa de pedestres, indo de encontro com o AuAu #49, que levava uma passageira no banco de trás. Seus olhos se encontraram, uma fração de segundo antes de metal colidir e retorcer num impacto violento.
***
Apesar da gravidade da batida, Mariana havia sobrevivido, graças ao sistema de segurança do AuAu. A Able pagou suas despesas médicas, assim como as do enterro de Alberto, mesmo após declarar que ele era o único culpado pelo incidente, motivado por um ódio irracional pelos carros autônomos, como demonstrado na filmagem recuperada das câmeras do #49. A filmagem, embora danificada, claramente mostrava o falecido hostilizando o veículo, saindo de seu próprio carro para vandalizar o AuAu, horas antes do fatídico acesso de fúria que o levou a óbito.
A Able reiterou que não ia substituir nenhum motorista, mas que todos aqueles envolvidos em incidentes semelhantes seriam desligados da plataforma, fenômeno que só crescia conforme a frota de veículos autônomos da empresa aumentava.
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