O Terror do Além-Mar

Fernando Fiorin

    “Que Thor me proteja!”

    Agarrando o pequeno martelo prateado que mantinha amarrado no pescoço com a mão esquerda, Handall não sabia bem o que pedir ao deus do trovão além de proteção.

    Suas narinas sujas de remela e de cerveja sugavam o ar com força, ao ponto de fazer o seu peito arder, como se não houvesse ar suficiente no mundo para lhe devolver a sanidade depois de ver o mal se manifestar de maneira súbita e implacável.

    Com o ar aspirado vinha também os odores que oprimiam o homem do norte. O cheiro rançoso da carne gordurosa de caça, da cerveja forte comprada na Frisia e do suor de homens que, minutos antes, comemoravam uma bem sucedida viagem de saques pela distante Frankia.

    E também vinha o terrível cheiro de sangue. Sangue humano em abundância.

    Mas o odor que mais incomodava a Handall era o das suas fezes que escorriam por suas pernas. O horror de ver seus irmãos de arma serem mortos e abatidos como crianças segurando garfos e facas soltou as suas tripas, o deixando naquela situação vergonhosa. O valoroso guerreiro, conhecido em sua aldeia como “Handall-Duas-Lâminas” por conta da sua habilidade com a espada (e também, contavam algumas anedotas, por conta do seu membro agigantado), sentia um nó no estômago ao pensar o que os deuses pensariam dele se, por ventura, conseguisse chegar ao Valhalla naquela situação precária, todo sujo de sangue dos seus amigos e da merda que produzira por conta do medo irrefreado.

    O chamariam de Handall-Fede-a-Bosta ou, pior, Handall-se-Caga-de-Pavor?

    Aqueles pensamentos degradantes revolviam o brio do dinamarquês, mas o medo não o deixava, como se o vestisse feito um cobertor molhado e pesado, e o som da criatura se alimentando o mantinha perenemente coberto.

    Aquela criatura, outrora uma bela jovem de corpo esguio e pele muito clara, fora o ruína do salão do senhor de Handall, o outrora glorioso Ivarr-Rompe-Escudo. Ela viera com a noite e a bruma, entrara no salão sem ser notada, e começou a contar uma história estranha e surreal, sobre a morte em forma de uma criatura com olhos vermelhos e cabelos da cor da gralha.

    Os homens riram da frágil criatura. Caçoaram dela. Acharam se tratar de uma das escravas trazidas na viagem, sempre havia uma que demorava a entender a sua situação e se adequar a sua nova vida.

    Na verdade, Handall se recordava, um dos presentes temeu sim aquilo que os demais ignoravam, conforme ouvia mais e mais a história que parecia envolver a todos.

    O velho Leif-Ouvidos-de-Lobo, pai do Jarl Ivarr e outrora o dono daquele salão, parecia estar ciente do mal que acompanhava aquela criatura insaciável. Ele farejara o ar e balbuciou para quem pudesse o ouvir que a estranha mulher tinha o cheiro dos cemitérios que os cristãos construíam em suas terras distantes.

    Tentando alertar aos demais, o ancião se inclinou para a mesa para agarrar alguma coisa. Alarmado como estava, Handall imaginou que o velho Leif fosse apanhar uma faca para atirar na jovem risonha e despeitada.

    Mas ele agarrou um saco de aveia, o que pareceu a deixar irritada.

    Aos gritos de “Draugr” o velho tentava abrir o saco e despejar o conteúdo no chão, mas antes que pudesse fazer alguma coisa, a jovem pegou o espeto que mantinha a carcaça assada de um javali e atirou aquilo tudo no velho, o derrubando e o jogando com tudo sobre o desavisado Handall, que caiu para trás com o impacto e o peso de dois corpos sobre si.

    E assim que o guerreiro conseguiu levantar a cabeça viu com horror a matança acontecer.

    Thorin-Patas-de-Urso, o maior homem que Handall já tivera a honra de conhecer, fora decepado com um golpe de mão da jovem, suas unhas agora transfiguradas em garras negras e afiadas.

    Olaf e Hildor, os irmãos noruegueses que remavam no barco de Ivarr, tentaram esfaquear a mulher, mas ambos foram cortados como se fossem duas aves de abate. Os demais não tiveram sorte melhor, principalmente por não estarem armados, já que o Jarl Ivarr não permitia armas no salão durante as comemorações.

    Mas para Handall, o pior de tudo não foi as mortes, que foram rápidas e brutais. O pior foi ver a criatura se alimentando do sangue dos mortos.

    A mulher magrela, que não deveria pesar mais do que uma criança, chupara o sangue de, pelo menos, dez homens adultos, e aquilo não parecia o suficiente para ela. Naquele momento ela sugava as veias de Ivarr, que mantinha a cabeça tombada e os olhos mortos pareciam implorar a Handall que fizesse algo.

    Mas o que o guerreiro poderia fazer?

    Estava armado apenas com uma espada curta, que insistia para todos que era apenas uma faca mais longa e mais afiada, e, ainda assim, não acreditava que pudesse ter sucesso contra aquela mulher.

    Tentou desesperado lembrar das histórias que o velho Leif, o Skald do seu povo, contava sobre os draugar, as criaturas que bebiam sangue. Ele lembrava apenas de coisas triviais e sem importância. Que os romanos, um dos primeiros povos a saquear as ilhas britânicas, os chamavam de striggoi, e que os viajantes da longínqua Rus os chamavam de dampyr.

    Nada daquilo poderia ajuda-lo naquele momento, nada de útil lhe aparecia, e o som do sugar incessante o deixava ainda mais desesperado.

    Como os deuses poderiam ter deixado aquilo acontecer?

    Seria aquilo um castigo do deus cristão? O povo da Frankia rezava ao deus pregado e dizia que ele ainda castigaria os povos do norte por não acreditarem no mesmo e flagelarem o seu povo com os saques e as pilhagens. Handall sempre desdenhou daquilo, assim como desdenhava do deus cristão. Mas e se aquela criatura fosse um ser enviado por aquele deus incompreensível e misterioso?

    Atraída pelos pensamentos de Handall, a mulher finalmente deixou o corpo seco de Ivarr cair aos seus pés, e seguiu na direção do guerreiro que tentava não tremer por conta do pavor que se espalhava pelo seu corpo.

    – Ora, o que temos aqui? Uma sobremesa? Então você acha que fui enviada pelo deus dos cristãos. Meu pequeno pagão, não estou aqui para me vingar de ninguém.

    – Como sabe a minha língua?

    Handall não sabia bem por que fizera aquela pergunta.

    Mas a maneira como a mulher falava a língua do seu povo, sem nenhum sotaque, o deixou alarmado e confuso. Seria ela uma criatura fugida de Hell, o inferno daqueles que morriam de maneira covarde? Ou seria uma criatura que servia aos deuses da noite?

    A criatura, em contrapartida, apenas achou divertida a curiosidade da sua futura vítima e levantou os ombros magros e frágeis, querendo dizer que aquilo pouco lhe importava.

    – Sabe, homem do norte, eu já vivi com o seu povo, no passado servi a um jarl, muito parecido com esse aqui que acabei de drenar. Mas então eles vieram dos seus túmulos e espalharam o terror. Eu, a única que restara depois de se refestelarem sobre o sangue das suas vítimas, fui escolhida para carregar a sua maldição. E fui levada para longe.

    “E assim cheguei à distante Frankia, onde drenei o sangue de inúmeros povos, dos nativos e dos viajantes que vinham de outros impérios. Eu estava satisfeita com a vida que levava, tinha meu alimento e minha existência parecia não ter grandes exigências, até que, numa noite, acordei e vi que a cidade de onde tirava o meu alento fora saqueada. A princípio eu senti algo, depois de muito tempo, não sei se ódio ou curiosidade. E resolvi descobrir o que se passava, pois me lembrei de minha infância quando os seus barcos, com cabeça de dragão, vieram pelo rio e os seus ancestrais devastaram minha terra. Segui a estrada até o rio mais próximo e lá estavam vocês, em seus barcos de casco longo e chato, escudos pintados e as cabeças de dragão. Eu tive o desejo de me alimentar de todos vocês ali mesmo, mas a curiosidade venceu o ódio e a fome. Eu fui até o rio e, quando a patética sentinela não estava olhando, me agarrei por baixo do casco e segui viagem com vocês até chegar a essas terras. E aqui estou, de volta a onde tudo começou. E daqui vou seguir para as vilas ao lado e vou beber o sangue de todos os moradores, homens, mulheres e crianças, e seguir até ter drenado todas as pobres almas dessa terra castigada pelo frio e pelos deuses cruéis do seu povo. E sabe o que é melhor? Não há como me deter, sou o seu Ragnarok, o fim dos tempos, então se alegre, homem do norte, vou lhe drenar agora e lhe poupar de ver o pior que o futuro guarda ao seu povo. Segure bem a sua lâmina agora, guerreiro, vou lhe enviar ao seu precioso Valhalla.”

    Handall sentiu a mulher retirando o corpo do javali e de Leif de cima dele como se aquilo fosse apenas um banquinho do salão ou algo irrisoriamente leve.

O saco que Leif segurava caiu sobre o colo de Handall, e junto com ele veio uma lembrança que fez o seu coração bater mais forte. Num passado distante, o guerreiro ainda um jovem aprendendo a lutar contra os povos do sul, e ambos sentados em volta do fogo, o Skald contando as suas histórias e afirmando em nome de Odin que, se um dia um draugr viesse para cima de qualquer um deles, que eles jogassem ao chão um saco contendo grãos.

“Juro a vocês, segundo o monge cristão que me contou a história lá na Nortumbria, essas criaturas possuem algumas compulsões, e uma delas é ter que contar todos os grãos que estiverem no chão, antes que possam seguir em frente. Então isso é o tempo que vocês terão entre a vida e a morte.”

O tempo entre a vida e a morte.

Não pensando muito, Handall agarrou o saco bem quando sentiu a mão com aperto de ferro se fechar em seu pescoço e entornou o conteúdo de grãos de aveia sobre os pés finos e brancos da criatura.

A mulher fez um som de engasgo, soltou o guerreiro, e começou a contar no que parecia a Handall a língua dos francos.

– Um, deux, trois… dix… vingt… quarante…

Sentindo que o momento chegara, o homem do norte desembainhou sua lâmina e a desceu de cima para baixo sobre o pescoço esguio da criatura que movia os olhos de maneira desvairada, contando as sementes espalhadas pelo chão sujo do salão.

Mas para o desespero de Handall, mesmo que tivesse usado toda a sua força e que a adrenalina o deixasse ainda mais belicoso, sua espada curta quase chanfrou com o golpe. 

– Soixante-dix… quatre-vingts… cent…

Sentindo urgência na voz da criatura, o guerreiro desceu novamente a lâmina, tentando o seu melhor golpe, mas a espada apenas entortou e fez um dente na lâmina agora fragilizada, enquanto que o pescoço mal começava a sangrar, mas ainda estava inteiro. A criatura olhou o homem do norte com o canto dos olhos enquanto seguia a contagem, e aquilo sobrepujou a coragem de Handall que, sem conseguir deter as próprias pernas, saiu correndo do salão para a escuridão da noite.

O guerreiro corria pela neve, seguindo sempre em frente, sem saber para onde seguia, sentindo a opressão do ocaso sobre si.

Uma voz em sua mente tentava justificar a fuga, dizendo que ele deveria alertar as outras vilas sobre aquele mal sobrenatural, alertar os Godi, os xamãs do seu povo, que talvez conhecessem alguma magia que pudesse dar um fim naquele monstro, e alertar aos Skald para que contassem as histórias e precavessem os demais sobre aquela terrível criatura que bebia o sangue dos vivos e tinha a força de dez homens.

Mas em seu coração Handall sabia a verdade.

Era um homem desgraçado, tomado pelo medo, guiado pelo temor irracional e desejoso de um abrigo contra aquela criatura que viera do além-mar para se alimentar do sangue do seu povo.

Em seu coração apenas o medo perdurava.

E dali em diante ele nunca mais o abandonaria.

Nunca mais.


3 respostas para “O Terror do Além-Mar”.

  1. Esse é um dos contos mais fodas que eu já li nesse site. O autor está de parabéns!

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  2. […] um pouco do meu trabalho eu tenho um conto sobre vampiros publicados no blog da Última Página (https://aultimapagina.art.blog/2021/12/17/o-terror-do-alem-mar/) além de outros contos abordando outros gêneros neste mesmo blog como lobisomens do folclore […]

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