Toc tec toc tec

Gabriel Yared

Durante o almoço, aguentei quieto o ralho por desobedecer a vovó. Fiz uma cara bem feia, mas tava feliz: a chave guardada na mão fechada no meu colo escondida debaixo da toalha de mesa deixava eu contente.

Ela brigou por que eu tinha subido pro o andar de cima da sua casa, que era toda de madeira, enquanto ela tava distraída fazendo o almoço. Me contou uma história sobre uma bruxa que comia criancinhas desobedientes e morava lá em cima. Por isso ninguém entrava lá e pronto. Vovó acha que eu ainda sou um bebe de seis anos. Eu tenho nove anos e meio, não acredito mais nessas coisas!

Engoli a sopa porque precisava agradar a velha. Sopa é uma comida tão nojenta, molhada e legumenta que nem mesmo a vovó, a melhor cozinheira do mundo, conseguia me fazer gostar! Foi só pra acalmar ela que não respondi nada, nem reclamei dos ossinhos curtos que achei no meio da carne, meio dura. Apenas coloquei eles na beirada do prato e tomei o caldo cheiro-verdoso.

Tudo isso eu podia aguentar porque eu tinha um plano. Se tinha um perigo lá em cima, me alertar sobre ele só me deixava mais curioso e decidido a encontrar com a menina triste que vi hoje de manhã, quando brincava no jardim, através da janela do andar de cima. Mas pra isso precisava me manter um anjinho.

Esperei o dia todo, procurando despistar a vovó dos meus objetivos. Brinquei no jardim com meus brinquedos — o carrinho, o boneco, os soldados — e muito bom menino ajudei ela a fazer os biscoitos deliciosos.

— O segredo dos biscoitos — disse a vovó — é bater bem essa banha de porco, até ela virar uma espuma, e jogar na massa.

Ela me mostrou aquele líquido amarelo nojento virando uma espuma branca. Mamãe usava banha de porco na comida lá em casa, mas não tinha esse cheiro forte, que dá vontade de vomitar… Mas tudo bem, porque depois do forno, o cheiro é doce e gostoso e dá vontade de comer um montão de biscoito um atrás do outro, até quanto a vovó deixar.

Quando enfim ela me pôs pra dormir, depois de me fazer engolir uma língua assada no jantar — a língua de um boi muito pequeno, que eu comi sozinho —, ela fez um carinho em meu rosto com sua mão calejada de cozinheira.

— Você tá tão magrinho — sussurrou ela, um pouco triste na voz e nos olhos de senhorinha. Os dedos delas arranhavam que nem a língua do Tântalo — meu gato, que ficou em casa —, mas eu deixei ela continuar. — Tem que comer muito, pra ficar bem gordinho e cheio de carne. Só toma cuidado, senão a bruxa vai querer te comer!

E rindo, ela me deixou. Os adultos são estranhos, vivem inventando história de monstro, depois não querem que a gente tenha medo. Mas eu sabia que era mentira dela, bruxa não existe, e eu tava determinado a provar que a vovó tava mentindo. 

Ouvi os passos da vovó se arrastando até o quarto dela. Esperei o silêncio que queria dizer que ela se deitou, e mais um tempo pra ter certeza que ela dormiu. Minutos depois, ouvi os sons que me intrigavam há tantas noites, desde que tinha chegado pra passar as férias com ela.

Eu até tinha perguntado:

— Se não tem ninguém lá em cima, porque eu ouço alguém andando a noite toda em cima do meu quarto?

Vovó apenas respondeu que era a madeira estalando com a mudança de temperatura do dia pra noite. Mas era estranho que a madeira estalava só em cima do meu quarto.

O som, vindo do teto, parecia se mover da direção do quarto da vovó até o meu, pelo jeito que se tornava mais alto. Eram duas batidas diferentes, uma depois da outra: toc tec toc tec. A primeira tinha um som mais grosso, como algo macio batendo contra a madeira. Já a segunda era tipo de um objeto duro, de som mais fino. Só podia ser a menina que vi pela janela quando eu tava brincando no jardim. Quando eu falei com a vovó, ela disse que eu tava inventando coisa.

— Vem cá, vovó! Vem ver! — chamei ela, apontando pra janela lá no alto. A menina tava me olhando, com certeza vovó ia ver. Só que na minha impaciência esperando o passo devagarinho da vovó, deixei de olhar pra menina, e quando ela chegou, só viu a janela empoeirada.

— Deixa de pavulagem, menino! Deixa de malovido. O que tem lá é bruxa, e eu acho bom tu não me chegar perto. Bruxa ama comer pé de menino desobediente.

E ela contava história da filha da prima do irmão do vizinho que desobedeceu a avó e a bruxa comeu o pé, a mão, a língua… Vovó tinha essa mania de dizer que coisas terríveis aconteciam a crianças que não faziam o que ela dizia ser o certo a fazer. Papai me disse que ela inventa essas histórias, que não passam de potoca. Mas além de ver, eu ouvia a menina do andar de cima, que parava bem em cima do quarto que eu dormia, arranhando o chão, ou seja, o meu teto, com alguma coisa dura que fazia um barulho de arrepiar.

Era a hora de resolver a confusão. Que injusto que ela pudesse brincar lá em cima e eu não! Mas como não adianta discutir com a vovó, eu ia era perguntar o motivo pra garota. Quem sabe, depois de esculhambar porque ela não me deixava dormir direito, a gente podia até brincar juntos?

Saí da cama na pontinha dos pés, peguei a chave escondida no bolso do short que usei no dia e atravessei o quarto em câmera lenta pra não fazer barulho nenhum. Quando finalmente cheguei na porta do quarto, parei. Ouvi os passos do andar de cima me acompanharem lá de onde eu vim num toc tec tOC TEC tornando-se mais alto até parar bem em cima de mim, e os arranhões recomeçaram. A menina ia fazer a vovó acordar desse jeito!

Sem perder mais tempo, deixei o quarto. Atravessei a sala, iluminada somente pela luz da lua que entrava pelas janelas. Cheguei no pé da escada. Naquela meia sombra, parecia que os degraus agora eram maiores ainda do que hoje mais cedo, e com muita dificuldade e lentidão, pra vovó não me ouvir, subi. Finalmente, cheguei no pequeno no topo, e parei de frente pra grande porta. O buraco negro da fechadura enferrujada era um olho olhando a minha alma.

Foi ali, mais cedo, que eu encontrei encaixada a chave, mas antes que eu pudesse abrir a porta, vovó me surpreendeu e me tirou dali. Com sorte, consegui levar a chave sem que ela visse. Pus o pequeno objeto de volta em seu lugar e dei uma volta, duas voltas. Ouvi um clec, a porta tava destrancada. Minha mão aguardou por um tempo na maçaneta gelada, de repente senti um pouco de medo do que podia encontrar. Afinal de contas, vovó dizia que uma bruxa morava ali. Mas o que eu vi era uma menina, e tava na hora de tirar essa história a limpo.

Girei a maçaneta de uma vez por todas e empurrei a porta bem devagar, esperando que ela fizesse pelo menos um nheeeeec depois de tanto tempo fechada. Pra minha surpresa, ela deslizou silenciosa até encontrar a parede de um corredor longo. A única fonte de luz, bem fraquinha, era a janela de vidro que dava pro jardim.

— Tem alguém aí? — perguntei baixinho, no fundo esperando que ninguém me respondesse.

Como resposta, só o conhecido TOC TEc toc tec tornando-se mais distante e ecoando pelo lugar. Talvez ela estivesse em um dos quartos à direita. Entrei no corredor.

Poucos passos depois, cheguei na primeira porta, que tava escancarada. Pela posição, aquele quarto ficava bem acima do meu. Parado no portal, mirei a escuridão absoluta. De algum ponto um pouco na frente, ouvi arranharem o chão, bem mais alto do que ouvia lá embaixo, um barulho que causava arrepios nos ouvidos.

Passei a mão pela parede ao lado da porta, procurando um interruptor. Fez clic quando meu dedo encontrou um. A luz invadiu o quarto e revelou uma figura meio transparente agachada no chão. Uma de suas pernas tinha carne só até metade da coxa. Depois desse ponto, um corte preciso revelava seus ossos até o pé. O mesmo tinha acontecido com o braço direito, que terminava em pequenos ossos que lembrei se chamarem falanges, com as quais a menina-esqueleto arranhava o chão de madeira. Eram os ossinhos que eu tinha visto em minha sopa, no almoço…

Meus olhos se arregalaram quando ela estendeu o braço sem carne, apontando pra além de mim. Ela abriu a boca e tentou falar, mas apenas conseguiu balbuciar, e percebi que sua língua tinha sido cortada também. Só depois eu notei que de uma abertura na altura do umbigo escorria aquela banha amarela, fedendo como quando vovó a colocava no biscoito, e meu estômago se revirou. Senti meu coração parar quando a cozinheira, surgindo atrás de mim, pousou as calosas mãos de língua de gato sobre meu ombro nu.


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2 respostas para “Toc tec toc tec”.

  1. Caraaaalho. E esse final, ein? Nota 10! Fiquei todo arrepiado skks.

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  2. Esse conto tem uma atmosfera maravilhosa. Dá até nojo pensar no que acontece mesmo antes do autor revelar a situação. Além disso, o final casa perfeitamente com a situação e deixa para os leitores completarem a lacuna.

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