Vingança em Toombstone

 Fernando Fiorin

“Grande Nuwisha, me mostre o caminho.”

Bafo-de-Búfalo forçou a visão que ficava cada vez mais desfocada, até que, finalmente, conseguiu enxergar a caverna.

Caminhando com passos pesados até a entrada escura, o homem do povo navajo sentiu o cheiro ocre e nauseante das fezes velhas de algum urso que usara o lugar como toca durante o inverno. Olhando para baixo verificou novamente o furo que fazia o seu peito sangrar profusamente.

Um disparo de colt peacemaker, dado por um maldito homem branco.

Aqueles demônios que vieram do além-mar há tempos idos agora dominavam toda a pradaria, construindo as suas malditas estradas de ferro para os seus monstros barulhentos que carregavam gente em suas barrigas de metal e despejavam mais e mais brancos em suas terras, cada vez menores.

A única coisa que Bafo-de-Búfalo fizera de errado fora tentar avisar aos amaldiçoados brancos que eles não deveriam construir as suas cidades naquela região.

O lugar um dia fora sagrado para o povo navajo, muitos dos seus ancestrais estavam enterrados ali. Partiu o coração do velho nativo quando ele viu pilhas de esqueletos dos seus antepassados empilhados pela cidade cada vez maior, conforme novas casas e prédios comerciais eram construídos e os restos eram desalojados da terra cavada.

Aquilo não ficaria barato, o ódio dos fantasmas famintos viria a galope contra o povo estrangeiro e ignorante.

Bafo-de-Búfalo fora um tolo, um sentimental, acreditava que se fosse prestativo com o homem branco e lhe alertasse do risco que corria talvez aquele povo tão estúpido compreendesse e se retirasse para outros lados.

Tinha muito espaço no oeste, o lugar que os invasores de além-mar diziam ser selvagem, mas que não paravam de tentar conquistar.

E o que recebera em troca fora um balaço a queima-roupa.

Pois bem, agora o nativo, mesmo no fim de sua vida, iria ajudar os seus ancestrais. Entrando na caverna e andando pelo escuro chegou até o velho túmulo, aquele que, quando fora criança, seu avô o alertara para nunca perturbar.

“veja bem, filho de Conta-as-Nuvens, ali mora o pior espírito do nosso povo. Troca-Faces concede nossos maiores desejos, mas rouba nossa identidade, fazendo com que caminhemos até o último dia de nossas vidas sem rosto, deformados de um jeito que os nossos parentes nunca nos reconhecerão nas terras dos puros. Tome muito cuidado se um dia for tolo ao ponto de querer pedir um favor à Troca-Faces, pois ele vai atender o seu pedido, mas a um custo demasiado.”

    Bafo-de-Búfalo não se importava mais com preço que teria que pagar, pois sabia que estava com os dias contados.

    Talvez todo o seu povo estivesse com os dias contados, mas o nativo sonhava com vingança, com a justiça tardia ao seu povo e aos que tiveram o seu descanso interrompido de maneira brutal por conta dos invasores e profanadores.

    Sentindo a velha lápide de granizo com as suas mãos velhas e trêmulas, procurou os sulcos cavados na rocha com os dedos ensanguentados, enfim encontrando o que buscava, uma elevação que lembrava a de uma face esculpida na pedra.

    No meio da face esculpida havia uma abertura que lembrava uma boca num esgar de uma risada sinistra.

    Tomando a coragem necessária para o que viria em seguida, o nativo respirou profundamente, em seu coração estava pronto para realizar o sacrifício necessário para invocar o espírito maldito. Sacando a sua velha faca com cabo de osso de sua bainha de couro de saco de bisão, puxou a pele do rosto e começou a cortar rente a carne, fazendo um trabalho diligente e agoniante.

    A dor era indescritível, conforme a pele ia se soltando aos poucos e a lâmina ia cortando mais e mais até que, finalmente, todo o rosto se soltou deixando uma confusão de carne e sangue onde antes havia uma face enrugada.

    Usando uma das mãos para lhe guiar o gesto, o navajo abriu bem a pele retirada de sua face e a colocou na rocha, deixando a impressão de que agora o túmulo o observava atentamente numa carranca queixosa.

    Reunindo toda a força de vontade que ainda lhe restava, Bafo-de-Búfalo fez a velha oração que o avô lhe ensinara para invocar o espírito vingativo:

Grande caçador das trevas

Que devora o coração covarde

E veste a face dos inimigos

Acorde para lutar mais uma vez

Acorde e me conceda vingança

Acorde os mortos e famintos

E consuma a carne dos incautos

Assim pede o seu filho sem rosto

    Durante algum tempo o navajo apenas sentiu o frio da caverna e o ardor na face retalhada, o que contrastava com o calor da pradaria e o ferimento que o vinha matando aos poucos.

    Porém o ar rapidamente pareceu se perturbar, conforme algo parecia respirar de maneira profunda e raivosa no fundo da câmara escura. Aos ouvidos de Bafo-de-Búfalo era possível ouvir os sons terríveis do deserto, do chacoalhar da cauda de uma cascavel à risada impiedosa do coiote.

    Em meio a esses sons intimidadores uma voz se fez soar, antiga e profunda, rouca e rancorosa, como que carregada pela tempestade de espíritos que varria o mundo em tempos imemoriais.

    – DIGA, PEQUENO NAVAJO, POR QUE PERTURBA O MEU SONO?

    – Grande espírito, o homem branco desrespeitou o lar dos mortos do nosso povo. Peço apenas que conceda aos nossos ancestrais a chance de se vingar dos nossos inimigos.

    – ORA, EU AMO A VINGANÇA, ISSO ME PARECE FÁCIL. MAS POR QUE EU DEVERIA AJUDAR A UM MORIBUNDO?

    – Mas grande espírito, eu lhe dei a minha face, o que mais eu poderia oferecer?

    – ME CONFUNDE COM UM ESPÍRITO JUSTO, PEQUENO NAVAJO, MAS EU CONCEDEREI O SEU PEDIDO. PORÉM, ASSIM QUE ATRAVESSAR PARA O MUNDO DOS FANTASMAS, TERÁ QUE PERMANECER AQUI POR MAIS MUITAS LUAS, PARA EXPULSAR OS INVASORES QUE EM MEU LAR ADENTRAREM E TIVEREM A INFELIZ IDEIA DE INCOMODAR O MEU SONO, DE ACORDO?

    – De acordo.

    – TEM CERTEZA? FICARÁS UM BOM TEMPO SEM VER OS SEUS ANCESTRAIS E AQUELES QUE PARTIRAM ANTES DE TI. SUA MULHER, SEUS FILHOS, TODOS ELES O ESPERAM NA FRONTEIRA DE NÉVOA ENTRE OS DOIS MUNDOS.

    – Eles poderão esperar mais um pouco. Primeiro precisamos vingar nosso povo.

    – POIS QUE SEJA ASSIM ENTÃO. CONSIDERE O SEU PEDIDO ATENDIDO.

    “OS SEUS MORTOS SE LEVANTARÃO PARA SE VINGAR”

***

    “Você ouviu alguma coisa?”

    Billy Court e Samuel Higgins estavam de guarda na rua que cortava a cidade de Tombstone de um lado a outro.

    Segundo o Xerife Robert “Bob-Cachorro-Louco” Paige aquele era o castigo para os seus comandados que dormiam durante o seu turno. O que era uma grande injustiça, pois os rapazes só tinham se descuidado uma vez e não viram o índio velho que viera incomodar o xerife com suas histórias de fantasmas.

    Mas aquilo já estava resolvido, não estava? O xerife dera um tiro bem no peito do índio velho e o exigira a se mandar dali e nunca mais mostrar sua cara enrugada na cidade.

    Mas o xerife sabia das coisas. Sabia que, onde havia um maldito navajo, logo haveria mais, muito mais.

    E assim aqueles homens patrulhavam enquanto ouviam a algazarra que vazava pelas janelas do saloon, os sons de piano e gritos de provocação dos colegas que jogavam pôquer e bebiam uísque barato, enquanto namoravam as jovens prostitutas que chegavam em grupos cada vez maiores a cada dia que passava para morar naquela cidadezinha no fim do mundo.

    Mas agora Billy estava ouvindo barulhos na noite, o que irritava Samuel profundamente.

    – Cala a boca Billy, agora você está ouvindo bem? Na hora de ouvir o maldito índio passando por você sua orelha suja não funcionou né?

    – Para Samuel, já pedi desculpas. E eu tô falando sério. Você não tá ouvindo? Um som estranho? De coisa estralando? Parece galho seco, sei lá.

    – Pior que eu ouvi alguma coisa sim. Agora estou ouvindo alguma coisa se arrastando no chão, você ouviu também?

    – Ouvi sim, o que diabo será isso Samuel?

    – Inferno, como eu vou saber? Procura quem tá fazendo o barulho.

    Obedecendo ao colega de patrulha, Billy Court, um jovem que não contava com mais do que dezoito verões de vida, se agachou e tentou ver alguma coisa no escuro que cobria a cidade naquela noite sem lua.

    De fato alguma coisa parecia se arrastar por debaixo do saloon vindo em sua direção.

    Tentando aguçar a visão o jovem apontou a espingarda meio que de maneira desengonçada e se arrastou agachado no chão para tentar se aproximar do que quer que fosse que vinha sentido à rua. Talvez fosse um maldito cão machucado, ou quem sabe uma criança arteira que tentava encontrar moedas no chão sujo abaixo do prédio.

    – Quem está aí? Venha para cá agora, sem brincadeiras!

    O vulto se arrastava cada vez mais para perto de Billy, que, sem perceber o que fazia, deu um passo para trás e acabou caindo, tropeçando nas próprias pernas.

    Samuel, sentindo o colega ir ao chão, lhe deu um chute nos francos, o amaldiçoando pelo susto.

    – Que coisa Billy, se levante de uma vez. Billy?

    Olhando para baixo o patrulha viu que o seu colega olhava atônito para o que se arrastava na direção da dupla. O jovem suava frio e o seu rosto estava incrivelmente pálido, tão pálido que, mesmo com a pouca luz que chegava até a rua, Samuel percebeu o mal-estar do companheiro.

    – O que houve Billy? Billy?

    – Os mortos estão voltando. Os mortos estão…

    Porém, antes que o jovem pudesse repetir suas palavras ele foi puxado para de baixo do prédio e um breve esgar se seguiu a um som molhado de algo se rasgando, um som de gemido e, rapidamente, o engasgar de quem se afogava no próprio sangue.

    – Billy? Mas que diabo? Billy?

    Quando Samuel se abaixou para ver o que havia arrastado o seu colega, viu algo que não poderia ser de verdade. Não se Deus existisse naquele mundo.

    Um esqueleto completo, com a pele ressecada cobrindo o corpo, e o couro cabeludo cheio de fios pretos e compridos, se atirava em sua direção, subitamente, sem que tivesse tempo para reagir, uma machadinha de pedra antiga o atingiu no braço e o puxou para perto da criatura, o fazendo cambalear antes que pudesse atirar ou pedir ajuda.

    Desesperado, Samuel tentou lutar por sua vida. 

Socou o rosto que tinha um sorriso cadavérico e órbitas vazias, mas só ouviu o som seco de ossos se partindo, pouco conseguindo contra o inimigo sobrenatural. A criatura forçou uma mão de dedos magérrimos em pele sobre o pescoço do jovem amedrontado e, com uma força invulgar e inesperada para um ser feito apenas de ossos velhos, arrancou a traqueia do rapaz, que fez um som engasgado e angustiante, conforme tentava puxar o ar para os pulmões.

    Deixando para trás os corpos dos rapazes mortos os esqueletos seguiam em frente, pouco a pouco cercando o saloon em festa.

    Logo os gritos de alegria se tornariam uivos de pavor.

***

    “Você ouviu isso Bob?”

    A jovem Suzette, que dois segundos atrás rebolava em cima do colo de Bob-Cachorro-Louco, parou de se movimentar quando ouviu um grito que atravessou a sua alma e deixou todos os pelos do seu corpo arrepiados.

    O velho xerife, que estava finalmente chegando ao clímax da paixão, empurrou a jovem para o lado e se levantou contrariado.

    Normalmente ele não se importava com a algazarra que os seus rapazes faziam em sua cidade, desde que não fosse nos horários em que deveriam ficar de vigília em seus turnos de trabalho. Porém, a contragosto, ele precisou concordar com a jovem prostituta de que a balburdia estava passando dos limites.

    Normalmente as famílias decentes de Tombstone ficavam em silêncio e não se metiam com o xerife e os seus comandados. Mesmo o prefeito não era tolo em se meter com ele, uma vez que o anterior que teve a empáfia de opinar sobre o seu trabalho acabara sofrendo “um terrível acidente”.

    Mas se aquela bagunça seguisse noite adentro mesmo os pobres cordeirinhos dos habitantes da cidadezinha no meio do nada poderiam acabar criando algum tipo de coragem estúpida e tentar resolver aquilo do pior jeito.

    O que Bob menos precisava era de um bando de justiceiros em sua cidade, fossem eles amadores ou profissionais.

    – Mas que diabos. Não saia daí menina, e nem perca o seu tempo se vestindo. Eu já volto.

    Colocando as calças e a camisa para ficar minimamente apresentável, o xerife também afivelou o cinto com suas pistolas colt peacemaker para lhe dar um pouco mais do ar de autoridade que tanto amava. Por fim, relutantemente, colocou o chapéu preto e lustroso e saiu para o corredor, pronto para descer até o saloon e colocar ordem naquela palhaçada toda.

    Conforme se movia calmamente pelas escadas de madeira, desviando de poças de vômito e de urina, percebeu que um dos seus ajudantes subia a escada, cambaleante, possivelmente embriagado.

    Quando notou que era Nelson, o seu segundo em comando, se preparou para ralhar com o rapaz, o que, quando buscava em sua memória, seria de fato a primeira vez. Até por conta disso tentou moderar no tom de voz, pois sabia que o delegado não era de cometer tal tipo de gafe, e, portanto, deveria ser a primeira vez que o coitado perdia a noção do copo e bebia mais do que deveria.

    – Mas que diabos, Nelson, o que está acontecendo lá em baixo?

    – Xerife? Xerife? Me ajuda. Me aju…

    Nelson deu mais dois passos, cambaleante, e então caiu aos pés de Bob. Olhando aturdido o rapaz, o xerife finalmente compreendeu que aquilo não era por causa da bebida. Algo pior havia acontecido com o seu soldado. Pegando uma das lamparinas do corredor e trazendo para perto do ajudante viu algo que o deixou atordoado e assombrado.

    O jovem tinha o pescoço rasgado de um lado até o outro, o que fez com que sua roupa ficasse toda banhada de sangue.

    – Nelson, pelo sangue de Jesus Cristo, o que te fez isso? Nelson? Nelson!

    Antes que Bob pudesse fazer algo para ajudar o rapaz ele sentiu o seu último suspiro e os estertores da morte. Largando o corpo e sacando sua pistola do coldre direito, que era a sua favorita, puxou a gatilho e desceu os degraus pisando firme, determinado e abrir um buraco no peito do animal que tivesse feito aquilo a um dos seus homens mais confiáveis.

    Quando chegou ao final da escada, porém, o xerife sentiu o coração afundando no peito e sua bexiga se soltando, conforme presenciava o que deveria ser as portas abertas do inferno sobre a Terra.

    Em torno das mesas do saloon só havia pessoas mortas, suas gargantas dilaceradas, os corpos abertos em feridas sangrentas e selvagens.

    O sangue inundava todo o ambiente, trazendo ao nariz de Bob-Cachorro-Louco o fedor de um verdadeiro matadouro. E vindo em sua direção, cambaleantes, estavam eles, uma dúzia ou mais de esqueletos cobertos com a pele ressecada e adornos velhos de penas e couro de animais de carga.

    Os índios olhavam para o xerife com órbitas vazias que emanavam luzes vermelhas, o que conferia àquelas cabeças ressequidas e com cabeleiras esvoaçantes um ar lúgubre de determinação.

    Consternado, o velho homem da lei tentou subir novamente as escadas, mas assim que se virou e se preparou para correr de volta ao quarto, sentiu uma mão cheia de ossos amarelados segurar sua canela e o puxar para baixo.

    Batendo a cabeça nos degraus e a bacia no chão de madeira, o xerife sentiu o ar saindo dos seus pulmões.

    Porém, no instante seguinte, já havia sobre ele três ou quatro bocas abertas com mandíbulas gastas, rasgando sua carne e o encharcando com o próprio sangue, que se misturava com a urina ainda quente em sua calça.

    Seus gritos não vieram, mas o seu gemido de desespero dizia que ele se arrependia muito por ter dado um tiro a queima-roupa no índio que viera alertá-lo mais cedo.

    Porém, agora não havia mais tempo para se arrepender.

    Bob-Cachorro-Louco seria mais um dos amaldiçoados que encontraram o seu fim em Tombstone.

    Mais uma das vítimas de Troca-Faces.

Uma resposta para “Vingança em Toombstone”.

  1. Sou suspeito a falar sobre contos de Weird Western, mas adorei esse. Também por ser muito fã de narrativas em que encontramos o sacrifício do protagonista como elemento chave. Penso que dê um sabor diferente ao texto além de quebrar certas expectativas. Torço para que venham mais.

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