Os Porcos

Schleiden Nunes

Sonhei de novo.
Boca amarga, cheia de lama,
gengivas rasgadas.
Era real.
Nessa outra vida, sentia tudo.
Com meus irmãos, vivíamos tudo.
Em um curral trombamos feio.
Os lombos batiam contra o cercado;
os peões traziam batatas
e, noutra mão, o aço.

Então, sonhei de novo.
Boca docinha, cheia de inhame,
Gengivas rasgadas.
Era real.
Nessa outra vida, sentia tudo.
Com meus irmãos, comíamos tudo.
Entre as bandejas trombamos feio.
Os lombos em nossos dentes cerrados.
Os garçons traziam batatas
E, noutra mão, o eu do passado.

Jaime subiu a escada às pressas, saltando de três em três degraus. Todos, tanto quem estava no térreo quanto quem estava no primeiro andar, puderam ouvir os pulos pesados, de jeito desesperado, que ameaçavam partir ao meio as tábuas seculares de madeira. O ranger que elas faziam a cada passada, como se arguissem um grito de dor, confundia-se com os gemidos que Maria Tereza, no quarto para onde Jaime se dirigia naquele segundo, proferia.

Era um som agudo, mas grosseiro, que parecia um choro desafinado e desesperado; um reclamar; uma geladeira velha, reclamona, dessas que ficam ainda mais audíveis durante a madrugada.

Por coincidência, batiam 5h15 da manhã no cuco da sala quando os gemidos começaram. Jaime acabara de descer para beber um pouco de água. A recepcionista e a cozinheira da pousada já perambulavam por toda parte, embora o sol ainda não houvesse surgido. Pois, Jaime mal tinha beijado o copo d’água quando teve início o gemido. Primeiramente, pensou que fosse um bicho selvagem, ou mesmo o telhado antiquíssimo, caindo; e depois, ao discernir que se tratava de uma voz humana, soube de pronto que a dona da voz era Maria Tereza – até porque eles eram os únicos hóspedes do lugar. Eles haviam acabado de se casar e partiram para uma viagem relâmpago. Trocaram as alianças, fizeram uma sessão de fotos e já aceleravam o seu Passat 97 em direção à lua-de-mel.

Uma hospedaria no meio do nada; bonita, conservada, rodeada por bosques, dois lagos, no alto da serra e de culinária mineira, mas ainda assim fincada no meio do nada.  Para a sua lua-de-mel, escolhida tão somente porque, segundo pesquisas históricas, genealógicas – e astro cartográficas – realizadas pela noiva, era ali que sua linha da vida passava. De outras, vidas. Vidas passadas. E como sabia pouquíssimo sobre sua família – pois havia sido adotada –, decidiu que descobrir qualquer coisa a mais sobre si mesma seria uma meta. Algo especial ali havia.

Para Jaime, toda esta prosa soava místico – coisa esta que o aterrorizava –, mas cedeu o destino da viagem no intuito de agradar à sua esposa, que a princípio nem mesmo queria viajar, de modo que ir a algum lugar diferente já era por si só um lucro imenso. Contudo, foi impossível o tempo todo não pensar na família dela, na hospedagem velha, nos retratos vários expostos em toda as paredes da construção. Pareciam-lhe fantasmagóricos, de vibração sinistra, de cheiro embolorado, de modo que, naquela madrugada quando Tereza gemeu desde o andar de cima… 

— Foi atacada! Ou possuída… Algum fantasma se for… – ele pensava. 

Assim, ao abrir a porta do quarto ele se deparou com Tereza de costas, em pé, escorada no parapeito da janela que estava aberta. Era um vulto, pois a luz estava apagada, e a claridade da noite lá fora é que adentrava ali, contornando o corpo de sua esposa, fazendo-a tão fantasmagórica quanto todo aquele lugar. Jaime sentiu suas pernas bambearem, e uma pedra de gelo subiu arregaçando seu esôfago. No momento seguinte, em que a chamou pelo nome – gaguejando –, arrependeu-se no mesmo instante. Um medo de que, ao virar-se para ele, ela estivesse com o rosto desfigurado, os olhos brancos, sangue escorrendo pelos cantos da boca ou qualquer sinal de ação paranormal. Jaime estava certo que, naquele lugar, que parecia tão suscetível à espiritualidade, os antepassados de sua esposa de fato pudessem utilizá-la para… Para o quê? Não sabia; mas não descartava. Essas coisas, os espíritos, precisam de um motivo para agir? 

Contudo, suas expectativas não vingaram. Ela tão somente chorava. Dentro de uma camisola roxa, rendada nos joelhos, foi ao encontro de seu esposo, que a abraçou e, então, suspirou como quem acaba de reencarnar; como quem acabara de ver a vida inteira passando à sua frente toda de uma vez. 

— O que aconteceu? 

— Não sei… – Tereza, visivelmente fraca, respondeu-lhe; lábios abafados pelos ombros de Jaime.

— Mas os gritos… o-os… os ge-gemidos…!? – Jaime tentou, e escolheu tão cuidadosamente as próximas palavras, que elas nem saíram; atrasaram, perderam o timing. Tereza já se separara do seu colo e fora dormir. Caíra na cama, de frente, queixo abaixo, desprovida de todo tipo de energia.

Jaime, antes de também se deitar, vasculhou com o olhar em cada parte do quarto. A cama de casal comprida, de gradio liso; o guarda-roupa embutido; o tapete bordado e nada mais além das malas e do teto vazado – telhas de barro sobre toras de madeira, sem lajeado. Nada, nadinha, nem uma só camisa ou meia, fora do lugar em que havia deixado.

Acendeu a lanterna traseira do celular e, antes de fechar a janela, ainda contemplou brevemente – deu graças a Deus – o sol que nascia apesar da neblina. Lá embaixo, uma descida gramada até um muro de pedras, além do que se via um casebre, um curral; dois homens tratando de uma vara de porcos; outros dois, carregando um infeliz que há pouquíssimo tempo fora abatido. Teve dó. Fechou a janela e foi se deitar.

Durante a noite, sonhou com aqueles gritos, com aqueles gemidos, e se via em uma espécie de prisão junto a outros presos que trombavam consigo. Capatazes os apressavam para algum lugar não sabido, mas era claro o cheiro de terra, de um suor tremendo e profundo que o fez acordar.

Já atrasados, Tereza e Maria desceram tarde para o café, e a cozinheira lhes perguntou sobre o jantar – insinuando que, se demorassem um pouco mais, não haveria era nada mais para comer. Eles riram o quanto puderam, eis que as olheiras privavam até mesmo os seus músculos faciais.

Sozinhos naquela cozinha enorme, os dois tomavam seu café em silêncio, sem se olhar mas se vigiando; Jaime, principalmente, sem saber como interagir após o evento estranho:

— Essa erva-doce… – reclamou da broa de milho, mas com esperanças de qualquer diálogo.

Tereza se rendeu a um “É…”, que deu azo à oportunidade que Jaime aguardava:

— Tá tudo bem? Ontem…!?

Teve início uma troca de palavras que foi logo interrompida várias vezes, dali até a visita à plantação de café, e depois a um dos lagos, de modo que, em cada vez que retornavam para a pousada – fosse para o almoço, fosse para descansar um pouco –, Tereza não conseguia desviar seu olhar para o curral e o chiqueiro mais embaixo, para o qual dava vista a janela do seu quarto.

— Você não se escutava? – Jaime perguntou, quando já retornavam a tempo para o jantar. Ela lhe disse que não.

Uma vez à mesa, estranharam, quando, num diálogo entrecortado por garfadas metálicas, as funcionárias disseram também não ter ouvido nada que lhes soasse como diferente. Jaime ficou, ele sim, possesso, sem acreditar nisto, e fez questão de lhes detalhar o acontecido até invadir a esfera íntima dos dois – nessa ânsia de comprovar o que alegava –, ao que Tereza o advertiu ao pé do ouvido para parar. A seguir, comentaram sobre os antepassados de Tereza e o motivo real de se hospedarem por ali.

— Pelos meus estudos, a casa dos meus tataravós ficava bem aqui.

— Ah, é um resgate, então!? – uma delas comentou, de jeito que Jaime até considerou estranho. O termo “resgate”, na sua concepção, soou contemporâneo demais para aquela senhora de sabe-se lá quantos anos, mas notadamente pertencente a uma outra geração. O coque duro, o vestido longo e largo, o rosto inexpressivo. Fingiu até não ver, quando ela apoiou as mãos sobre a mesa, as bordas das unhas dela pintadas de caneta preta. Desviou o olhar e, dali em diante, de fato fingiu não tê-las visto de jeito nenhum.

Às 5h15, Jaime acordou com os gritos e os gemidos, com aquela reclamação. Em um só salto, voou três metros desde a cama até a janela onde Tereza estava. Chorava, vergava-se sobre a janela; sua camisola tremulando, uma das mãos apertando vigorosamente as próprias costas enquanto ela dizia “queimar”.

— Queimando, onde? – ele lhe perguntou. Desceu a alça da camisola de Tereza e conferiu o lugar. Nada havia, nenhum vergão; pele fria como a bruma que tomava conta daquela região. – Vamos, antes que chame mais atenção, antes que acorde os outros…

Então, após acompanhar por um segundo a mesma movimentação no curral na outra extremidade do gramado, fechou a janela e foi-se deitar também.

Para ele, haviam partido há muito tempo, pois temia. Por si, por ela; aterrorizava-o a coisa do desconhecido; e as funcionárias, dizendo-lhe que nada ouviam de diferente, estarrecia-o. Lembrava-se das unhas de uma delas, pintadas à canetinha, e sentia arrepiar as costelas. O que significava aquilo? 

Todavia, Maria Tereza não se dava por convencida. Pretendia ficar.

O dia seguinte lhes trouxe alegria. A bruma raleava, a serra toda em volta ficava nítida, e a beleza entorno deles explodia magnífica. Jaime, apesar dos pesadelos e dos fatos estranhos, por vezes até esquecia-se do que vinha à noite. E, aproveitando-se desta proteção que apenas o sol lhe transmitia, chamou Tereza para sentar-se sobre o muro de pedra, frente ao curral, e que até lhes permitia uma vista belíssima do lado de lá da serra, após um riacho que – apesar de não ser visível dali – corria lento. Ele começava a imaginar que algo naquele lugar, ou naquela vista, de fato a fizesse rememorar experiências passadas, as quais ele conseguiria confrontar tão somente durante a luz do dia. Se conseguisse…

— Também não sei… – Pela primeira vez Tereza parecia disposta a falar. – Até pensei que, antigamente, pudesse ter sido aqui a casa dos meus avós.

— Disto eu já sei.

Aqui… – ela enfatizou com o olhar.

Jaime havia se referido ao prédio da hospedaria. Então é que se atinou.

Aqui? A casinha do chiqueiro?

Ela, envergonhada, fugiu a própria face do alcance da vista dele.

Jaime observava as expressões de Tereza e constatava que eram de dor. Acompanhava os porcos, lá dentro, presos; os homens, com suas galochas, organizando-os tão bem, atrás daqueles muros de pedras – extensíssimos, a se perder de vista no horizonte do gramado –, e a ouvia a falar:

— Algo me é muito familiar. Não sei… Os homens, os animais, mesmo esses muros. Foram erguidos por escravos, sabia? Isso aqui já foi uma comunidade quilombola…

— Não sabia… – Jaime não soube decifrar como tal informação foi absorvida pelo seu julgar.

— Há uma… confusão na minha mente. Tipo uma neblina, como essa neblina, e eu não consigo distinguir. Não sei, Jaime! Eu mesma posso ter morado aí!

Jaime sentiu um pesar por sua esposa, pois visualizou a sensação de que seus ancestrais – sua casa –, onde um dia eles cresceram, viveram, poderia talvez se resumir agora a um quarto de porcos sujos e a peões desalmados.

Tereza travava o olhar naquele visto, buscando memórias e, dos peões brutos, ia à vara de porcos. Perdia-se. De repente, onde estava? Deslocada de si mesma ela sentia a brisa; sua escápula esquerda queimava. O orvalho caído na serra, que na grama se prendia, parecia ficar até o fim do dia e até isso lhe era familiar. Orvalhava as costas dos porcos tal qual sua blusa; via-os a comer, a mastigar sem parar, um tubérculo após o outro e, numa trombada, grunhir contra os outros e a desembestar. Então vinham os peões, o som das galochas a se espatifar na terra molhada, e ela sentia-se lá dentro já com eles, não sabia ao certo como, se era peoa, se era porca, se era qualquer outra coisa que fazia parte do lugar, e perdida ficou até Jaime novamente vir a lhe chamar:

— Que foi? – esbaforiu.

— Doendo?

— Doendo? O quê? – em seu devaneio, ela nem se deu conta de que, mais do que nunca, apertava suas costas até marcar o vestido franzido. Queimava a escápula.

Jaime abaixou a cabeça, à beira do desespero. Mordeu os próprios lábios e lhe suplicou:

— Outra daquela e eu não vou aguentar. Te arrasto daqui, Tereza. Sei que é importante para você. É um… um… – procurou outra palavra que resumisse o sentido que queria dar, mas não encontrou –… um resgate muito importante para você… para sua família e tal, mas eu não… Eu não vou aguentar! Simples assim.

Naquele momento, parecia ter ficado clara e certa a advertência de Jaime, mas de nada adiantou. Ele se descuidou, e, após o jantar, procurou Tereza por todos os cômodos até encontrá-la sentada naquele mesmo lugar: sobre o muro de pedras, vulto meio à neblina, apertando as costelas. Jaime, que já não tinha a proteção do sol, gelou. Acontecia de novo.

— Parece estranho, eu sei… – Tereza começou a dizer assim que viu Jaime a se aproximar. Sua voz, então, soou tranquila, o que acalmou seu marido quase que imediatamente, fazendo com que ele perdesse qualquer ímpeto de partida, ou de discussão, que o tivesse levado até ali.

— Só vamos para dentro, Terê. Só isso que eu lhe peço. Tem que descansar.

E ela não resistiu, por mais que lhe fosse cativante estar ali. A curiosidade dela; o terror indizível que era para ele. A busca espiritual dela; a provação infernal em que ele queimava.

Àquela noite, resolveu não dormir. Ficaria de vigia. Veria Tereza a acordar, a se levantar, a ir até a janela; saberia exatamente a causa dos gemidos, dos gritos. Veria tudo, desde o início, e morreria por isso se fosse preciso. Mas, pouco antes das 5h00, não suportou o peso das próprias pestanas e dormiu.

Em seu sonho, viu, ao longe, um caminhão a subir a estrada de pedras. Estacionou rente ao chiqueiro. Parou. Trazia galinhas, vinha buscar porcos. Jaime estava no muro, e, ali sentado, acompanhava um dos animais sendo trazido à força. Debatia-se. Ouviu aqueles gritos, com aqueles gemidos, naquela espécie de prisão, de presos que trombavam um contra o outro ou entre si. Capatazes os apressavam para algum lugar não sabido, e era claro o cheiro de terra, de um suor tremendo e profundo… 

Proferiam um som agudo, mas grosseiro, que parecia um choro desafinado e desesperado; um reclamar; uma geladeira velha, reclamona, dessas que ficam ainda mais audíveis durante a madrugada. Viu, e sentiu como se estivesse lá dentro, o gosto da terra; os animais vinham, e, em troca, Jaime os apunhalava no lombo, para marcá-los a ferro quente. Uma ou outra escápula; na que estivesse mais fácil. Um dos peões caiu, e no mesmo segundo Jaime notou que se tratava dele mesmo; trombado, ao chão, tentou erguer-se agora com um gosto de sangue a escorrer da boca. Queria acordar, e, quando achava que acordara, voltava à perspectiva anterior, dele mesmo sentado sobre o muro de pedras, vendo em terceira pessoa, momento em que alguém decidiu por lhe chamar:

— Ah, é só o abate… – a cozinheira, coque duro, vestido longo e largo, o rosto inexpressivo, consolou-o e pôs uma mão sobre o seu ombro; as unhas pintadas de canetinha preta só nas bordas que o fez arrepiar. – Eles vêm sempre, todo dia, às 5h15 da manhã. 

O horror sentido por ele foi tanto que o fez acordar de imediato.

Uma vez acordado, Jaime agradeceu. Sua boca amargava, o peito arfava; uma dor estranha no pescoço, nas pernas e no abdômen. Graças a Deus acordava enfim, do sonho que era sonho, dentro de um sonho, que “Graças a Deus! Graças… a… Deus!” não aconteceu.

— Obrigado, Senhor – ele agradeceu mais uma vez. Rezou um Pai-Nosso e, por fim, sentou-se. Pegou o celular. Já eram 5h30. A janela aberta. Ao fitar a cama de frente, Tereza não estava ali.

Ele desceu descalço, de pijamas ainda, pela escadaria até o gramado lá fora. À bruma densa, apesar disto via ao longe o caminhão parado, aberto, como o vira em seu próprio sonho. Teve vertigens. Quase caiu. Precisava de um copo d’água que jamais teria. Saltou o muro de pedras, freou ante o curral e, ao olhar lá dentro, viu que os porcos estavam todos a dormir. Ao meio deles, tal como eles, Tereza dormia. Quis vomitar e assim se fez. Rendendo-se a um choro fraco, viu sua esposa lívida; de camisola ainda, mãos feridas, lábios sangrando, a dormir na lama. 

Roncava.

Jaime reuniu as últimas forças que tinha e o mais rápido que pôde retirou sua esposa dali.

Com o decorrer do dia, os policiais vieram, quiseram tirar satisfações, mas, por parte de Jaime e de Tereza, sequer precisaram dizer nada. Ficou claro para o legista que os ferimentos no pescoço, nas pernas e no abdômen dos peões foram por causados por presas de porcos. “São afiadíssimas!”, ele contou.

— Foram rápidos, e organizados. Aposto. – O legista explicava enquanto acompanhava o último dos corpos a ser posto dentro do caminhão. – Só Deus vai saber como. Não tiveram tempo nem de gritar os peões…

— Acho que ouvi alguma coisa sim, doutor – A cozinheira buscou o olhar de Jaime e de Tereza, num milésimo de segundo que ninguém viu. – Se for um som agudo, meio grosseiro… Um choro desafinado, sabe? Um resmungadinho de geladeira…

A todo tempo, Jaime cuidando ao máximo para que Terê não abrisse a boca, de dentes vermelhos, de gengivas feridas de tanto mastigar.

Uma resposta para “Os Porcos”.

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