Cão

Lucas Fagundes Silveira

É comum ao ser humano tentar correlacionar fatos. Afinal, além de cuidar da manutenção da vida, é isso que ele faz o tempo todo. No entanto, o cérebro erra e cria correlações não verdadeiras, como pensar que todo rico é inteligente ou que todo adulto é responsável. De todos os falsos estereótipos existentes, creio que o que mais me irrita é o da “criança pura”.

Todas as minhas manhãs seguem a mesma rotina. Minha irmã me acorda, troca-me, escova meus dentes, me alimenta e me põe na sacada para tomar sol.  Aqui eu fico olhando o movimento por horas. Sei a rotina de todos da rua. Isso significa que sei muitas coisas comprometedoras também. Minha vizinha tem muita sorte, já que alguém que só consegue piscar não pode contar que vê um garoto saindo pela janela do quarto dela nas sextas-feiras durante a noite. 

No início, minha condição era agoniante, agora já me acostumei, até me divirto. A família que mora à minha direita é muito religiosa, sendo composta por um casal e seus dois filhos – que fazem pouco barulho. Eu nem mesmo os vejo na maior parte dos dias. Na casa da esquerda mora um senhor bem velhinho que, assim como eu, passa o dia olhando pela janela e me cumprimenta todas as manhãs. Isso é tudo que sei sobre ele. Na casa da frente mora um casal com um filho bem jovem que deve ter uns 5 ou 6 anos. Eles têm um cachorro daqueles pretos e grandes que mora lá há uns 2 anos, tendo chegado já adulto. Eu me lembro do dia de sua chegada.

Sempre achei o cachorro um tanto esquisito. Às vezes via ele caindo no chão enquanto latia, algo feio de se ver, pois o coitado se tremia todo. Hoje em dia ele fica em um cercadinho no lado da casa. De manhã, de vez em quando, pego o bixo me olhando com os olhos vidrados, bem abertos, não parecem olhos de cachorro. Diria que parecem olhos de aranha, bem redondos, pretos e imóveis. Nossa troca de olhares só é interrompida quando o garoto  sai para ir à escola. Nesse momento, o cachorro se transforma, fica irado, começa a tremer, a babar e a emitir sons que não são latidos. Sons contínuos que lembram urros de sofrimento e angústia. É como se sofresse por manter os seus dentes tão longe do pescoço da criança. E, de repente, cai tremendo no chão. Todos os dias.

Depois de muito prestar atenção na família, consegui ouvir a mãe da criança dizendo que o cachorro tem um tumor no cérebro, mas que tem dó de sacrificá-lo. Essa merda toda de que só Deus tem o direito de tirar a vida de alguém e que os bichos têm sentimentos e blá-blá-blá… Puta sacanagem com o bicho. Tão estranho quanto o cachorro é a criança que insiste em chegar perto do animal. Sempre vai até perto da grade e estende a mão pra ele cheirar. O cão cheira, começa a urrar e adivinha? Exato, cai no chão. Ao ver a cena, o garoto se afasta e volta a brincar no terreno, como se nada tivesse acontecido. Por que a criança faz isso? Ela não vê que só prejudica o cachorro? Não percebe que o cão a odeia? Ela jamais vai conseguir fazer carinho no cachorro, se é que é isso o que ela quer. Com o passar dos dias, comecei a imaginar: o que o cachorro faria se pegasse a criança? Talvez não fizesse nada ou talvez a estraçalhasse. Quem sabe? Bom, eu apostaria na segunda opção. 

    O dia de hoje não começou diferente. Acordaram-me, cuidaram de mim e me colocaram na sacada ao lado dos vasos de planta. Pus-me a observar o cão e ele a me observar. Senti que seu olhar estava diferente. Passei tanto tempo o observando ao longo do ano que qualquer mudança em sua feição me seria perceptível. Os olhos continuavam os mesmos, implacáveis bolas de bilhar, mas com uma expressão quase serena e longos fios de saliva tocando o chão. Percebi algo semelhante a um sorriso sádico, por mais ridículo que possa parecer. Aquilo me fez refletir sobre o porquê de um dos apelidos do diabo ser “Cão”. 

Ainda no mesmo dia, o pai da família saiu da casa, entrou no cercado do cachorro, o alimentou, catou suas fezes e foi embora – sem causar nenhuma reação no cachorro como de costume. O garoto saiu para escola, mas, dessa vez, o cão não teve reação alguma, apenas o observou com o mesmo olhar bizarro. “Estranho”, pensei.

    O resto do dia passou e, ao pôr do sol, ainda dava para ver o cachorro me olhando. Acho que não se moveu um centímetro sequer desde a saída do garoto. Essa é aquela hora do dia em que todas as crianças chegam da escola, os adultos dos trabalhos e os jovens estão indo para a faculdade, então a rua fica bem excitante e tenho bastante coisa para observar. A criança chega em casa com a condução da escola, passa pelo portão e vai em direção à porta. Não consigo precisar o porquê, mas imagino que o silêncio anormal do cão chamou a atenção da criança, que deixou sua mochila na porta e foi em direção à grade do animal. Por mais barulhenta que a rua estivesse, eu pude ouvir bem e, por mais longe que estivesse, também pude ver bem o que aconteceu. 

O garoto chegou em frente à grande e estendeu sua mão a poucos centímetros como de costume. Porém, foi interrompido pelo impacto da grade do canil em seu peito e, em menos de um segundo, o cão já havia cravado os dentes em seu rosto. 

Dizem que não sentimos dor quando a adrenalina é liberada no sangue, mas os gritos do menino me fizeram acreditar que ele sentiu cada milímetro de cada dente penetrando a sua face. Por mais que tentasse, seus braços infantis e desesperados nem mesmo moviam o corpo selvagem do cão que, com as patas sobre o peito da criança, fazia do seu rosto a sua refeição. A criança, já sem rosto, parou de lutar e, nesse momento, o cão esticou o pescoço para frente, começou a tremer, caiu sobre o pequeno corpo sem vida e ali ficou. Ficaram os dois ali deitados por uns 5 segundos.  Um vizinho, ao ouvir os gritos, pula o muro e corre até o cenário macabro, o rapaz chuta o cachorro – que se move alguns centímetros para o lado como um trapo velho. Pouco tempo depois, a mãe, enrolada em uma toalha, chega e se ajoelha sobre o sangue do menino, mas não o toca e nem chora, só olha para onde, há poucos segundos, havia um rosto.

    Estou aqui pensando, enquanto a ambulância não chega, no que senti quando vi o cão finalmente realizando o seu sonho e destruindo aquele rosto inocente. Não sei, mas, se pudesse, acho que faria o mesmo.

2 respostas para “Cão”.

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