David Leite
Uma mistura de “Rubber, o Pneu Assassino” com a Fake News “do primo borracheiro”.
– Messias! Como estão as coisas aí atrás – Roberval gritava da cabine para o ajudante, que amarrava os tirantes da lona sobre a carreta.
– Tá prontinho, Roberval! – O rapaz responde, tentando disfarçar a irritação.
Após o término dos arranjos, o caminhão finalmente está pronto para viagem. O ajudante retorna a boleia e Roberval dá ignição.
– Vamos então, moleque. São dois dias de viagem até Salvador, não podemos perder mais tempo aqui.
– Oxe, Roberval, e quem tá perdendo tempo?
– Ora, você! Não bastasse chegar atrasado, ainda quer usar meu caminhão para entregar coisa sua.
– É o fogão que vou levar de presente para mainha. E tu por acaso quer que minha mãe fique até o fim da vida cortando lenha?
– Que me importa tua mãe, abestado? Temos uma entrega para fazer e você já me atrasou bastante.
Ambos então se calam, amofinados. Roberval começa a manobrar o caminhão para fora da garagem do depósito e finalmente toma a rua, outra rua e então a rodovia. Depois de alguns minutos silenciosos, Roberval liga o rádio, com seu seleto repertório sertanejo, que toca alto nos falantes, deixando seu parceiro ainda mais aborrecido.
Bem ao cair da noite, então Roberval quebra o silêncio.
– Fiquei sabendo que andou fazendo uns bicos de borracheiro pro Doutor Olímpio.
– Foi só fazer borracharia para a caminhonete dele, que tava com dois pneus carecas. Nada demais.
– Sei não. Não confio naquele vereador por nada nesse mundo. Ouvi dizer que é metido em muita coisa ruim.
– Mas eu precisava comprar esse fogão.
– Mas nem por isso fique vacilando por aí.
– Ok.
O ajudante responde, consternado. Mas, subitamente o sentimento de ambos se transforma em apreensão, quando os dois carros adiante deles batem violentamente. Roberval, ligeiro no volante, esterça-o para o lado, tentando passar pelo acostamento, fazendo a carreta vibrar e ranger, e por um instante, levantando a roda do chão, e caindo novamente com um sonoro som de espatifo. Os dois ficam atônitos por um momento, então, recobrando o controle, deixam o acidente para trás.
Após o susto, seguem pela estrada noite adentro por mais algumas horas. Num trecho mais claro e vazio, Roberval começa a encostar o caminhão.
– Acho que escangalhou tudo lá atrás quando dei aquele cavalo de pau. Tenho que dar uma olhada. – Roberval se manifesta.
– Não. Deixe que eu mesmo olho. Aproveito e dou um confere no teu trabalho.
– Mas… – Messias hesita, mas não continua.
Roberval então salta da cabine e, com uma lanterna, se dirige até a carreta. Puxado os cordames de arrimo para senti-los firme, checando a lona. Percebe então que parte da lona se soltou e alguns dos caixotes quase saltavam para fora.
– Oxe. Falei que esse moleque era preguiçoso.
Ele começa a empurrar as caixas de volta. Algumas delas com avarias. Repara então na caixa extra que seu ajudante trouxe para encomenda. Havia se rasgado ao bater no madeiro. Roberval a empurra, mas olha pelo talho.
– Ora. Mas isso não é fogão coisa nenhuma! – Exclama.
Envolvido em plástico, alguns pacotes de algum conteúdo que não conseguia ver até pegar um. Um tipo de prensado verde-escuro, com um forte cheiro de grama molhada.
– Mas isso aqui é maconha! – Roberval se assusta.
– É sim. E eu preciso levar para Salvador. – Messias, então, surge atrás dele.
Roberval se vira, mas sem chance de se defender, é abatido por vários disparos do revólver do ajudante, caindo no chão prontamente. O ajudante, então, se aproxima, chuta levemente o corpo, querendo confirmar o sucesso de seu vil ato, e então pega o tijolo de maconha de sua mãe e recoloca no lugar junto aos outros. Depois de cobrir e amarrar a lona de volta, volta para o caminhão para tomar o volante, deixando para trás o corpo inerte de seu ex-patrão.
Roberval, então, abre os olhos e se vê lá embaixo, caído. Ou melhor, vê o que costumava ser ele. Com os membros abertos, voltado para o céu, era como se o convidasse para um abraço lá debaixo. Não demorou muito para Roberval entender a estranheza daquilo tudo. Como poderia ver-se e, afinal, como estaria ali, pairando no ar?
Num relampejo lembra-se do último momento em terra, do clarão da arma de Messias e, resignado, começa a juntar os pontos. Olha para as próprias mãos, agora translúcidas lembranças do que eram e, repentinamente, uma das estrelas do céu começa a brilhar mais que suas irmãs.
Dilatando cada vez mais seu brilho, a estrela emite um facho de luz que quase cega o velho caminhoneiro, e então a agonia e raiva começam a esmorecer. Alguma coisa clamava por seu encontro de dentro do ponto luminoso. Chamado que Roberval pretendeu atender.
Enquanto flutuava em direção a luz cândida, repentinamente, um sentimento ignoto começa a se formular dentro de Roberval. A raiva de ter sua vida ceifada de forma tão sem sentido por alguém que confiava começa a se tornar algo pesado dentro de si. Alguma coisa ele deveria ter feito e, se não em vida, talvez em morte o fizesse. Então como uma âncora, o anseio desprezível pela vingança o apregoa novamente a terra, e a luz para o além começa a se extinguir, sem conseguir carregar o agora poluído espírito.
Roberval, então, ciente de suas novas qualidades como um fantasma, se projeta noite adentro, voando por sobre a estrada, seguindo o caminho que conhecia e atento, buscando encontrar seu veículo tomado. Célere como apenas um espírito poderia, o diáfano ser atravessa prédios e casas como se fosse feito de ar, e então voltava para o mais alto do céu, tentando ter uma perspectiva melhor dos caminhos.
Não tardou a encontrara carreta de lona verde estacionada no acostamento. Começa a flutuar cada vez mais baixo, em direção ao veículo e pôde ver Messias tendo trabalho ao tentar trocar um dos grandes pneus do caminhão.
– Aquele Roberval mão de vaca. Se ele tivesse consertado o rodoar eu não tava me matando aqui.
Nisso o celular de Messias toca. Desajeitado, o ajudante retira do bolso e o apóia no ombro, atende-o, debaixo do olhar curioso e invisível de Roberval.
– É você, doutor? – Messias pergunta. – Sim. Já estou a caminho Tive que dar um jeito no Roberval, mas tua entrega tá garantida.
Roberval se enfurece ainda mais ao ouvir a troca de palavras. Não só havia sido traído pelo parceiro uma, mas duas vezes, ao realizar o trabalho ilícito para o doutor, que certamente seria o vereador Olímpio.
Vendo o ajudante se digladiar com o pneu e carregado da ira vingativa, Roberval investe contra ele. Mas seus braços e punhos atravessam pelo corpo do inimigo sem qualquer efeito, apenas surtindo um leve incômodo que fez Messias olhar para trás, pensando ser atingido por uma lufada de vento. Roberval, frustrado, olha novamente para suas mãos transparentes. Sua forma incorpórea seria incapaz de causar o dano desejado por ele. Era agora como se seu corpo fosse feito de ar. Feito ar, então pensou. Enquanto Messias colocava o pneu de volta, Roberval salta para dentro dele. Através da borracha e, estendendo seu corpo, começa a deslocar o ar dentro do pneu, que silva por pequenos rasgos por um instante, e no momento seguindo, sem tempo de Messias reagir ao estranho fenômeno, explode, atingindo o ajudante com violência e rapidez, jogando-o para longe.
Roberval então estava novamente flutuando alto do chão. Vê o corpo do ajudante caído e terrivelmente ferido, como havia visto o seu anteriormente e sente certo contentamento sádico com isso. Não demorou muito, e uma ambulância, possivelmente chamada por algum passante, pára próximo de Messias e o socorrem com alguma presteza. Roberval, descontente com a possibilidade de Messias não encontrar seu último fim, segue a ambulância.
No hospital da cidade o homem dá entrada na emergência. Um enfermeiro havia recolhido seus pertences e convocado alguém que pudesse acompanhar o homem. Roberval acompanha os procedimentos médicos em Messias, pouco entendendo o que faziam, mas pelo que parecia a situação era grave e difícil de estabilizar.
Dali a pouco, na sala de espera, uma jovem chega à recepção e procura por Messias. Ao que a enfermeira informa da situação. Roberval vê a mulher preocupada sentar-se nas cadeiras, com um tom de desespero no olhar. Logo a seguir novamente o nome de Messias é procurado na recepção. Dessa vez, um homem de jaleco branco que Roberval conhecia bem. Doutor Olímpio.
Ao ser informado da situação, se dirige até a moça na cadeira.
– Olá. Eu sou o doutor Olímpio. Você é parente do Messias?
– Sim, sou sua prima. A única parente que ele tem aqui na cidade.
– Realmente triste. Messias era um bom trabalhador. Ajudou-me algumas vezes. Eu queria que soubesse que vim aqui justamente para auxiliar a equipe médica. Com certeza ele será salvo.
A mulher apenas aquiesce. Doutor Olímpio se dirige então para a sala de cirurgia, parando antes no corredor vazio e fazendo uma ligação no celular, sem a chance de perceber Roberval ao seu lado.
– E aí? Retiraram meu pacote do caminhão? Bom, bom. Agora só me falta cortar uma ponta solta aqui e garantir que o Messias seja calado para sempre.
Com um misto de raiva pela cretinice do doutor e alívio de que sua vingança seria consumada, Roberval acompanha Olímpio para a sala de emergência.
A operação é conturbada. Os vários ferimentos do ajudante custavam a fechar. Doutor Olímpio, assumindo o comando, tenta alguns procedimentos, mas claramente com displicência. Em alguns momentos e o sinal sonoro dos monitores se tornam um longo e contínuo som, declarando o fim do homem.
Roberval continua ao lado do doutor, que enxuga o rosto e tenta demonstrar alguma preocupação inexistente com a situação. Um enfermeiro lhe traz uma prancheta e o doutor sai com ela.
Do lado de fora do corredor, Olímpio começa a preencher o formulário do procedimento. Quando chega à causa do óbito, para por um instante.
– Pois é, Messias… Acho que tem um jeito de você ainda me ajudar a conseguir aquelas verbas.
Olímpio registra a morte como Coronavírus. Roberval, cada vez mais revoltado com o abjeto doutor, pensa em mil maneiras de destruí-lo, mas não conseguiria atingi-lo agora.
O doutor segue para a sala de espera, deixando a prancheta no balcão de recepção. Dá a noticia triste para a prima do ajudante, que fica visivelmente abalada. O doutor então retira o jaleco e se dirige para a saída.
Roberval vê tudo aquilo com revolta. Olha para a prancheta sobre a mesa, e tenta arrastá-la, sem efeito. A prima de Messias já estava recolhendo suas coisas para ir embora, então num esforço hercúleo, Roberval força as duas mãos contra a prancheta, conseguindo fazê-la ser empurrado o suficiente para cair no chão.
A prima, então, já com a bolsa e o casaco em mãos, se assusta com o som, mas vai até o balcão para apanhar a prancheta. Quando a levanta, com o bater rápido dos olhos sobre o formulário, lê a discrepância na parte de causa mortis. Por um momento ela fica boquiaberta, mas se dirige a saída, pensando em como poderiam ter cometido aquele erro crasso.
Na saída, vê o carro do doutor começando a manobrar para deixar o lugar. Pensa em chamá-lo e contestá-lo sobre aquele registro, mas vê, colado no vidro traseiro do carro, o número e a foto do doutor como candidato. Então ela liga os pontos e entende o motivo. Sem pestanejar, retira o celular do bolso e, através de sua rede social, começa postar uma denúncia contra o vereador para todos seus amigos.
Com um sentimento de dever cumprido, Roberval voa novamente para o céu, esperando pela luz que deveria retirá-lo desse mundo. Aguarda longos períodos, mas nada. Quando já começava a se angustiar com a espera, novamente uma das estrelas brilha mais forte e projeta sua luz sobre ele. No entanto, aquela sensação de ser puxado e clamor por sua alma não eram os mesmos. Sem vozes, a luz se comunica com ele. Dessa vez para condená-lo pelo seu ímpeto vingativo que não teria espaço no além. Ele, de agora em diante estaria preso.
A luz cessa, e Roberval desce ao chão, torturado. Sem saber qual sua prisão, qual ciclo que teria que cumprir penando na terra. De repente, olha para o lado. Um caminhão começa a parar no acostamento perto de si. Um homem desce do caminhão para checar os pneus. Roberval olha por instantes. Ele percebe e se horroriza.
Agora ele entendia
Fim
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