Dmitro Nyirkarovisk
Uma série de eventos sinistros havia colocado São Paulo em alerta. Investigadores desapareceram e informações sobre o que estava acontecendo foram apagadas.
No meio desse caos, uma transmissão ao vivo atraiu a atenção de milhões de espectadores no YouTube. O título “Revelações chocantes do massacre no shopping Paraíso” despertou a curiosidade daqueles que buscavam respostas.
Um indivíduo enigmático, com o rosto oculto por uma máscara de gás, compartilhou informações perturbadoras sobre o enorme massacre ocorrido no shopping Paraíso, onde centenas de vidas foram perdidas, mergulhando São Paulo em um caos inexplicável.
As revelações que o misterioso homem fez, contradiziam tudo o que foi dito largamente pela mídia. Não foi um assassinato em massa, mas algo muito mais sombrio, e aterrador. Ele revela os bastidores do que de fato, está havendo na capital de São Paulo.
O homem, com a voz rouca e as mãos trêmulas, engole em seco antes de prosseguir. Ele organiza alguns papéis na mesinha à sua frente e, cruzando as mãos, faz uma pausa. Após soltar um longo suspiro, ele começa:
De antemão, garanto que as informações que compartilharei são verdadeiras e fundamentadas em uma série de fatos que, durante esta transmissão, espero que tudo se torne mais claro para todos.
Algumas histórias são absurdas quando as ouvimos pela primeira vez. E ao refletirmos calmamente, confirmamos que realmente não faz sentido.
Durante mais de uma década, compartilhei minhas preocupações sobre o estranho aumento nos índices de violência, em decorrência do aumento ao acesso a internet, com alguns colegas de trabalho.
Eles sempre minimizaram, diziam que eu estava exagerando… No entanto, tudo mudou em 12 de fevereiro de 2020, quando os estranhos incidentes relacionados a uma rede social começaram a ganhar as manchetes em todo o país.
Na noite em que ocorreu o primeiro grande incidente envolvendo a koofthe, eu estava trabalhando no pronto-socorro de um hospital em São Paulo. Por volta das 16 horas, uma fila interminável de ambulâncias se formou em frente à entrada do hospital.
Os feridos chegavam um após o outro, cada um em estado pior do que o anterior. Alguns estavam em uma condição indescritível, e infelizmente tive que confirmar a morte de alguns deles, o que foi extremamente doloroso para mim.
Ao chegar em casa, por volta das cinco da madrugada, tomei um banho refrescante e abri um pouco a janela devido ao calor abafado. Após pegar um copo de leite, sentei-me à mesa e, ali mesmo, peguei meu celular.
Decidi explorar o YouTube e, em questão de segundos, deparei-me com informações sobre o acidente. Sem tempo para assimilar completamente o ocorrido, eu sabia apenas que uma tragédia havia acontecido em uma estação de trem naquela noite, resultando em mais de 100 pessoas hospitalizadas, das quais 80 perderam a vida e as demais estavam em estado gravíssimo.
Embora não estivesse com muita vontade de assistir, minha curiosidade sobre o que havia acontecido foi maior que minha relutância.
Naquele dia, o vídeo era o mais visto no YouTube brasileiro. Ao apertar o play, a repórter iniciou seu relato:
Ela narrava o acidente ocorrido na estação da Luz. Imagens das câmeras de segurança da estação se intercalavam com os vídeos capturados por populares que estavam presentes no momento do incidente e que, provavelmente, foram retiradas da internet.
Um jovem chamado Guilherme Freitas desferiu um golpe de martelo na cabeça de uma garota que aguardava o trem.
A pobre Tamires, caiu inconsciente nos trilhos. Não satisfeito, Guilherme foi atrás dela. Ele pulou para a linha do trem, chocando todos que estavam ali, e passou a desferir vários golpes em sequência em Tamires, que estava desacordada, e sem condições de reação.
Guilherme estava claramente em meio a algum tipo de surto. Ele vociferava palavras sem sentido e lutava para retirar o martelo que havia ficado cravado na cabeça já deformada da jovem. Revoltadas, outras pessoas desceram para os trilhos e tentaram detê-lo.
Os homens o agarraram, tentando arrastá-lo para longe da garota, mas ele não soltava o punho do martelo. Vendo que não estavam obtendo sucesso, começaram a agredi-lo, e, com um grito, o arrancaram, levando parte de sua mão consigo.
No momento em que parecia que a situação estava sob controle, subitamente, os homens começaram a gritar, também em estado de histeria, alegando ser incapazes de soltar suas mãos do corpo de Guilherme.
O desespero tomou conta dos homens à medida que o trem se aproximava ao longe. Mais pessoas desceram à linha para tentar ajudar. Segundo o relato da repórter, havia aproximadamente 10 pessoas na linha do trem.
Parei por um instante, tomei um gole de leite e comecei a refletir sobre a situação. Tudo aquilo parecia surreal para mim. Nunca havia testemunhado algo assim em mais de duas décadas de experiência como clínico geral.
Eu suspirei e continuei assistindo ao vídeo.
A repórter descrevia a tragédia enquanto um vídeo gravado por pessoas presentes no momento era reproduzido.
As 10 pessoas, incluindo Guilherme, foram atropeladas pela locomotiva, que, por motivos inexplicáveis, descarrilhou e soltou um dos vagões, que caiu sobre elas na estação.
O vídeo foi interrompido no instante em que um dos vagões destruiu a estrutura da estação e atingiu as pessoas.
A repórter então troca de lugar com o apresentador, e a imagem de Guilherme é exibida.
As olheiras em seu rosto indicavam sua falta de sono, e sua expressão refletia angústia e perturbação.
Ele revelou que poucos dias antes do incidente, Guilherme havia feito uma postagem na rede social Koofthe, intitulada “A verdade por trás da Koofthe” – Koofthe é uma rede social bastante popular, especialmente no Brasil, reconhecível pelo seu logo em formato de almôndega. Nela, você podia encontrar de tudo: memes, vídeos curtos para se divertir, notícias para se informar, criar grupos privados e até fazer ligações gratuitas.
Mas, Guilherme, acreditava que a Koofthe:
“Era uma entidade que se alimentava de seres conscientes, espreitando a humanidade desde a descoberta do fogo. Por longos períodos, sua força era frágil, aguardando o momento oportuno. Com o surgimento da Internet, a convergência aconteceu, permitindo sua manifestação física e o início da Acreção da raça humana.”
Ele acreditava que a única forma de impedir isso era eliminar as pessoas que já estavam sob o controle da entidade. Ele utilizou um grupo onde ele e mais algumas pessoas, selecionavam possíveis “avatares” dessa entidade, e por um acaso, Tamires foi selecionada por ser uma pessoa bem ativa na rede.
A ideia era tão absurda que simplesmente fechei o vídeo, tomei uma aspirina e fui dormir.
***
Mesmo tendo se passado meses, desde o incidente na estação da luz, o caso ainda era inconclusivo. A polícia tentava investigar supostos grupos que estavam com as mesmas ideias de Guilherme, e incentivavam a violência por todas as redes sociais.
Muitas perguntas surgiram sobre o que teria levado Guilherme Freitas a cometer um ato tão brutal. De acordo com informações preliminares, ele não tinha histórico de problemas mentais ou comportamentais graves. No entanto, amigos e familiares relataram que ele vinha passando por um período de grande estresse e insônia nos últimos meses.
Uma campanha para ajudar a acabar com a toxicidade das redes foi criada, mas apesar dos esforços, mais e mais denúncias de perseguição ou cyberbullying, eram feitas na koofthe.
Toda essa confusão, me fez evitar acessar a minha conta que fiz para me comunicar com a família. Decidi usar outros aplicativos como o wapp, para fazer ligações ou enviar mensagens de texto ou áudio, por exemplo. O resto do tempo, passava no YouTube.
No dia que presenciei os fatos ocorridos no shopping, eu tinha dado uma pausa no atendimento, para comer alguma coisa.
Era em torno das quatro da tarde do dia 22 de maio. Estava comendo um cachorro-quente em frente do hospital, quando sem nenhum motivo, senti um calafrio percorrer minha espinha, da base até a nuca.
Me engasguei, e bebi uma dose generosa de refrigerante para ver se desobstruía a garganta, e no mesmo instante, percebi uma movimentação incomum de pessoas no local.
Elas sussurravam sobre algo que não conseguia entender bem, até que os sons escandalosos das sirenes suprimiram suas vozes; e a maior coluna de carros que já tinha visto na vida, desceu a avenida e seguiu em direção ao centro da cidade.
Seja lá o que estivesse acontecendo, era algo surreal, ver tantos carros de polícia, caminhões do corpo de bombeiros e ambulâncias, reunidos em uma coluna de veículos, que se estendia por várias centenas de metros.
No mesmo instante, recebi uma ligação da gerência do hospital, informando que um caso de extrema urgência, havia acontecido no shopping Paraíso. O clima de tensão no hospital era enorme.
Entrei na ambulância com o coração na boca, enquanto paramédicos e enfermeiros se dirigiam para outras que aguardavam já com o motor aquecido, prontas para se juntarem a coluna de veículos.
Não demorou muito, e assim que o paramédico e o enfermeiro entrou na ambulância, seguimos imediatamente até o local do incidente.
***
No caminho, todos se perguntavam o que estava acontecendo. Será que o shopping havia desabado, ou algo assim?
— Eu não posso afirmar…— Disse o paramédico nervoso — Mas eu acho que foi um suicídio em massa…
Ele contou que enquanto se arrumava para se dirigir até a ambulância, ele tinha visto um vídeo na Koofthe, de várias pessoas se jogando do último andar do shopping. Mas como o tempo era curto, ele não conseguiu ver em detalhes.
A ambulância, envolvida no engarrafamento policial, ficou presa em meio ao caos de buzinas. Aproveitando o tempo ocioso, acessei freneticamente minha conta na Koofthe em busca do vídeo mencionado pelo paramédico.
Rapidamente o encontrei. Não só ele, mas inúmeros vídeos do incidente surgiam na linha do tempo do aplicativo, compartilhados a cada segundo. Um a um decidi assisti-los, e acabei testemunhando a cena mais horrível de toda a minha vida.
Os vídeos mostravam a história que não foi contada pela mídia – e por bons motivos. Tudo começou com um jovem gritando no shopping lotado. Ele vestia uma camisa preta e shorts, e gritava do último andar do shopping.
Como Guilherme, ele também proferia gritos desconexos, até que subitamente, calou-se e se jogou rumo ao vazio. Os lamentos de desespero ecoaram pelo local, até serem abafados por um estrondo ensurdecedor, resultado do impacto brutal de seu corpo contra o chão.
O rapaz que estava filmando, junto de outras pessoas, seguiram para olhar o corpo do jovem no chão.
As pessoas sussurravam em meio ao silêncio gélido que se instalou. A câmera registrava com imagens trêmulas o corpo estirado no chão, como uma fruta podre, imerso em uma poça vermelha que se estendia ao seu redor.
Um pequeno grupo de pessoas se aproximou do rapaz e, ao tocá-lo, algo inesperado ocorre: repentinamente, algo incrivelmente rápido cai de forma violenta sobre a moça que havia tocado o corpo, esmagando-a, ceifando sua vida instantaneamente.
A câmera então mostra mais e mais pessoas aparentemente se jogando dos parapeitos. O estrondo de seus corpos se chocando contra o corpo do rapaz, fez o microfone do celular que estava filmando estremecer. O caos imperou no lugar.
Um desespero sem tamanho deixou as pessoas histéricas. Elas tropeçavam umas nas outras enquanto tentavam se afastar da cena de terror. O celular do rapaz acaba caindo e desligando.
Em outro vídeo, a pessoa conseguiu registrar as pessoas se jogando, enquanto seus corpos, de forma inexplicável, mudavam de direção em pleno ar, e aceleravam violentamente, chocando-se exatamente em cima do rapaz que havia ceifado sua vida, e da moça, que morreu esmagada.
Contra a maré de pessoas que entupiram a escadaria do shopping, se debatendo ou se lançando de alturas mortais para escapar; em outro vídeo, pessoas eram arrastadas para a massa em crescimento, se chocando e se amontoando violentamente, enquanto uma sinfonia macabra de gritos e lamúrias, acontecia junto a uma chuva vermelha, que caía sobre os que tentavam escapar.
Enquanto a velocidade dilacerava os corpos arrastados, a grotesca massa pulsava freneticamente, alimentada pelos estrondos dos corpos que colidiam a velocidades inumanas. Pessoas lutavam em vão para se segurar, ao mesmo tempo em que eram partidas ao meio e puxadas para aquela crescente e densa massa de pesadelos.
Rolei para a próxima postagem, e vi as últimas imagens de um streamer que estava ao vivo cobrindo o evento que estava acontecendo no shopping – que comemorava seus 12 anos de existência:
A câmera registrou o momento em que pessoas eram pisoteadas enquanto tentavam fugir, e a mesma era chutada para lá e para cá, até que ela para bem em frente a massa de corpos pulsante, e registra dezenas de pessoas serem puxadas contra sua vontade, em direção a massa absorta.
Em determinado momento, a multidão de corpos retorcidos, se via decorada com mãos que se moviam, rostos deformados, e sons de ossos que se contorciam e se quebravam, a medida que ela lentamente diminuía de tamanho, e espremia sem misericórdia a montanha de corpos desfigurados, lançando sangue para todas as direções.
Estalos de ossos quebrando e carne sendo espremida surgiram da massa, ecoando sons semelhantes a batidas de coração que fizeram o lugar tremer, causando interferência na câmera, e explodindo todas as lâmpadas do local.
Nos minutos finais, a câmera captura a massa se implodir de forma violenta, tão rápido quanto a percepção humana é capaz de reagir.
Um estrondo ensurdecedor partiu em sequência da implosão. Em um instante, o amontoado de corpos desaparece em uma onda de choque que destrói tudo em seu caminho. Os sons de vidraças sendo estilhaçados pelo estrondo, surgiu de fundo, antes da câmera desligar e encerrar o registro.
Já havia participado de incontáveis operações cirúrgicas, e lidado com os mais variados e indigestos tipos de ferimentos ou patologias; mas aquilo foi demais. Vomitei em todo o chão da ambulância, e acabei precisando do auxílio dos meus colegas de trabalho.
***
Após algum tempo, quando finalmente chegamos no local, nos dirigimos imediatamente para dentro do shopping. No caminho até a entrada, havia um exército de veículos da policia. Eles formavam um cordão que impedia repórteres e curiosos de se aproximarem do local.
Atravessamos os umbrais do shopping, e um peso insuportável recaiu sobre nossos ombros. Pessoas correndo para fora vomitar, ou bombeiros experientes desmaiando; se tornaram comuns a medida em que adentrávamos cada vez mais fundo no shopping.
Os poucos sobreviventes que não foram devorados por aquela singularidade proteica, estavam sendo atendidos do lado de fora, e alguns precisaram ser medicados para se acalmarem.
Aproveitei uma chance, para me afastar da equipe, e me dirigir até o local que havia visto no vídeo.
No meio do caminho, fui barrado por alguns policiais do GATE, que ao verem que era médico autorizado, me deixaram passar, mas sem antes me advertirem:
— Não aconselhamos olhar muito senhor. — Disse um deles com uma voz pesada.
Eu segui firme o máximo que pude… A medida que me aproximava, a cena ao vivo se tornava mais aterradora do que a que vislumbrei nos vídeos.
A luz que descia da abertura superior do shopping, destacava a cena horripilante, e indigesta. A nojenta trilha sonora, orquestrada pelas incontáveis moscas, me fazia gradualmente ser devorado, por aquele buraco negro, que se formou no lugar.
As luzes que ali estavam, já haviam todas se apagado. Em seu lugar, restavam o cheiro de sangue, misturado com vômito e excrementos; nauseantes a níveis insuportáveis.
Com o braço na boca e uma expressão nada sutil, encarei a massa de carne de pouco mais de um metro e meio de diâmetro.
Satisfeita, ela repousava em cima de um lago vermelho, decorado com vísceras, partes humanas, peças de roupas e calçados, que boiavam em sua superfície.
O sangue gotejava como biqueira, e a cada “ping”, a vontade que tinha era de desmaiar.
Contemplei aquela cena por alguns minutos, em torpor. A sensação que experimentei foi a de estar diante de um minúsculo planeta formado exclusivamente por forças vindas diretamente do inferno!
Já se passou quase 6 meses desde o ocorrido. Espero que isso ajude vocês a entenderem melhor o que está acontecen-
A transmissão e interrompida. Após meia hora, ela retornou, mostrando o médico se movendo cautelosamente sob a luz do dia. Ele parou em um local cercado por policiais e militares.
As imagens pareciam saídas de um filme de terror: ruas decadentes cobertas por trepadeiras de fibras nervosas, rastros de sangue e ruas desertas. Uma névoa verde envolvia o cenário sinistro, enquanto soldados mascarados moviam-se entre as sombras da paisagem distópica.
A câmera, oculta, registrou o médico adentrando uma construção de ferro, composta por contêineres, cercada por tanques e soldados armados. Após atravessar alguns oficiais, ele retirou a câmera e a máscara, apontando-a para uma horrenda e colossal massa, desta vez com proporções equivalentes a uma casa.
A massa exibia um aspecto nauseante, tentando atrair qualquer um que se aproximasse a menos de 500 metros. Os indivíduos, munidos de um lança-chamas, incendiaram a massa, que se agitou e aumentou seu volume voraz, lançando-se sobre todos, incluindo o médico, pego de surpresa.
Gritos agudos irromperam, ecoando em meio a um turbilhão de agonia. A câmera registrou a angustiante batalha do médico, lutando desesperadamente para segurar o dispositivo prestes a escapar de suas mãos trêmulas, enquanto tiros cortavam o ar vindo de todos os lados. Em um trágico deslize, o objeto escapou de seu controle.
A transmissão persistiu, corajosa e implacável, capturando as últimas imagens do falecido doutor, enquanto ele era implodido para dentro da massa em Acreção. Comentários divergentes inundaram a transmissão, intensificando o clima eletrizante. O público aguardava ansioso o desfecho, com corações acelerados.
Um vazio nebuloso sobrepujou o senso comum e abrangeu tudo o que antes foi a internet. Ao encerrar de forma abrupta, a transmissão levou consigo todas as respostas que podiam acolher os corações carentes.
Desafiando os limites do virtual e do real; o único vestígio de resposta, ousava desafiar a intrepidez dos que buscavam confirmar a verdade que fincou em seus corações:
Será esse o nosso fim?
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