Mate com fogo

Gustavo Moreti

Meu pai arranca a cabeça de uma criatura meio homem e meio aracnídeo e depois, essa mesma criatura arranca a cabeça do meu pai no maior estilo Lei de Talião. 

Cabeça por cabeça, meu chapa.

 A casa está infestada de aranhas, mas não falo de uma infestação comum, há pelo menos um milhão desses bichos de todas as espécies possíveis e impossíveis para onde quer que você olhe. 

Caído no chão, subjugado por um veneno paralisante, tudo que consigo dizer entredentes é “que porra é você?” e com horror descubro que o diabo aranha sabe falar.

“História engraçada”, ele diz. Tem a voz sibilante, giz arranhando a lousa. “De onde você acha que vieram as aranhas?”.

Ah, na Grécia antiga, tinha a história dessa mulher chamada Aracne, uma tecelã de primeira, tida como a melhor do mundo. O talento dela chegou nos ouvidos da deusa Atena que não curtiu muito a ideia de estar em segundo lugar. Atena, toda metida, desafiou Aracne pra ver quem era a rainha dos tecidos, mas, surpresa das surpresas, a mortal deu uma surra na deusa. Lição número um da mitologia grega: não ferre os deuses. Atena, pê da vida por ter levado um couro de uma mortal, fez o que? Matou a concorrente. Só que depois ela teve um ataque de remorso e transformou Aracne numa aranha. Essa é mais ou menos a forma que que os gregos explicavam a origem desses bichos, que prosperaram através das crias ímpias de Aracne.

O problema é que você encontra fósseis de aranhas datando de 310 milhões de anos, quando o mais próximo que existia de um ser humano eram criaturas meio mamífero e meio lagarto e a Grécia não era nada mais que um monte de pedras ou vulcões vomitando lava.

Meu palpite é de que elas vieram do inferno. Você olha para aquelas pinturas de demônios medievais peludos e cheios de pernas e é impossível não notar a semelhança.

No chão, paralisado, a criatura segurando a cabeça do meu pai como um troféu. Uma semana atrás os papéis estavam invertidos. 

Tufos de aranhas por todos os cantos, todas olhando ameaçadoramente para mim. Multiplique a quantidade delas – que devem estar em torno de dois milhões agora entrando pelas portas e janelas – por oito e você terá dezesseis milhões de olhos te encarando. É impossível não ter a sensação de estranha de estar sendo observado. Impotente, você se sente como num daqueles pesadelos em que está pelado no meio de uma multidão.

Eu nem sempre tive medo de aranhas, mas quando você se depara com um jorro incessante delas invadindo sua casa por todas as entradas possíveis, não tem como não tremer nas bases. Isso já é traumático o suficiente mesmo sem a presença do que parece ser um maquiavélico deus aranha.

Olhando para a aberração que é uma transição macabra entre a humanidade e o invertebrado, vasculho em minha mente todas as deidades possíveis e só consigo pensar no trapaceiro Kweku Anansi, um personagem folclórico da África Ocidental – mais especificamente da religião do povo Akan, em Gana e Costa do Marfim, se isso realmente importa. O ponto relevante aqui é que Kweku Anansi é tipo um deus aracnídeo, deus das histórias, das artimanhas e é claro, das aranhas. Mas não leve isso muito a sério, é só um nome. 

Não é? 

Alguns dias antes, acordando de madrugada com as cócegas de uma pequena monstruosidade felpuda passeando pelas minhas pernas e mais tarde, no café da manhã, meu pai com o pescoço inchado por uma picada, nunca imaginei que a situação chegaria a o que é agora. 

As pessoas me perguntam como as coisas escalaram dessa forma, do porquê meu pai tinha a cabeça de um deus aranha em casa, o que ele fazia pra ganhar a vida e por que havia saído tão cedo da cadeia. 

Projeto Falange.

Homens de Sobretudo.

E eu sempre respondo “do que você está falando?”

Anansi sorri maliciosamente para mim entre às quelíceras. Quando se olha pra ele, às vezes você vê um homem alto e robusto, cor de ébano, vestindo roupas chiques e um chapéu panamá. Às vezes uma pequena aranha. 

Às vezes os dois ao mesmo tempo. 

Você se pergunta se seus olhos estão te enganando, mas na verdade é ele que está: Anansi, o deus aracnídeo das trapaças, que enganou Nyame, o Deus do Céu para roubar suas histórias.

Estou me tornando uma de suas histórias?

  “Tem esse alguém que eu conheci e que me contou sobre uma cabeça perdida, sabe?”, começou o deus aranha e eu confundo sua voz sussurrante com os sons da caixa d’água enchendo lá no alto. “Parece que ela estava certa, quem diria. Agora, estou devendo um favor a esse alguém e ela não quer que você morra, então que assim seja, não vou te matar. Mas isso nunca foi sobre misericórdia, entende? Vou queimar sua casa como queimou uma de minhas filhas há muito tempo.”

Esse “alguém” que ele se refere é minha irmã, tenho certeza.

Suas crias começam a derrubar todos os recipientes inflamáveis das estantes enquanto Anansi procura um fósforo.

As palavras dele ecoam na minha mente, a única coisa do meu corpo que parece estar funcionando. 

Queimar.

Como queimou uma de minhas filhas.

Há muito tempo.

Ele pega uma lata de querosene e começa a espalhar o líquido desenhando uma espécie de teia no chão.

“Mate com fogo”, diz sorrindo e joga o fósforo aceso. 

Um ser humano aguenta uma temperatura de no máximo 127°C e por cerca de vinte minutos. O suor é quem torna isso possível. É claro que sempre tem a chance de você morrer asfixiado pela fumaça antes. Mas sejamos otimistas, apenas dessa vez. Eu já estava suando de medo antes e o incêndio acabou de começar, então vinte minutos é o que tenho para pensar sobre toda essa bagunça.

***

Nem sempre tive medo de aranhas.

Brenda foi minha primeira mascote. Um filhote de caranguejeira negra brasileira. Durou quinze minutos sob meus cuidados. Eu a encontrei na relva seca do quintal emboscando um mantídeo que não teve a menor chance.  Quando acabou de comer, largando apenas as patas e asas da presa para trás, ela ficou um bom tempo parada e foi nesse momento que a capturei. Na prática, apenas estendi a mão à sua frente e a empurrei com a outra e ela que fez todo o trabalho de andar até lá, obediente.

Tarântulas são os aracnídeos mais dóceis.

Brenda, mesmo filhote era tão grande que, encolhida, quase não cabia na minha mãozinha de criança. Algumas de suas patas ficavam apoiadas no nada. E era pesada. Levantei-a até a altura do rosto e vi seus oito olhos lânguidos me encarando de volta. Depois, acariciei sua bunda peluda como se fosse um cachorrinho. 

Queria mostrar Brenda para minha mãe, para animá-la um pouco, mas quando cheguei no corredor vi que a porta do seu quarto estava trancada. 

Ela vivia doente. Tinha a imunidade baixa. Dessa vez era a tuberculose. Às vezes eu ouvia as intermináveis sessões de tosse secas abafadas através da porta. E via os panos sujos de sangue seco na lavanderia. Meu pai tinha me proibido de entrar no quarto. Não deveria incomodá-la, nunca, em hipótese alguma. Qualquer corrente de ar poderia matá-la.

Brenda começou a escalar e foi parar no dorso da minha mão. Ela tentou fugir pelo braço, mas eu a empurrei de volta.

“Fique quieta, Brenda, está me fazendo cócegas”, eu disse e foi a primeira vez que eu a chamei por aquele nome. O fiz de forma inconsciente. Brenda seria o nome da minha irmã mais nova, mas minha mãe havia sofrido um aborto no terceiro mês de gravidez. Não me disseram que já haviam escolhido um nome. Porque não haviam. Nunca nem souberam qual seria o sexo do bebê. 

Eu sabia, porque ela me contou.

Brenda.

Eu a via ocasionalmente sob o grande olmo do quintal, brincando com as pedrinhas desmoronadas pela ventania do antigo memorial que meu pai havia construído empilhando seixos brancos. Ela era criança, adolescente, adulta e velha ao mesmo tempo e se parecia muito com minha mãe. Falava pouco, as vozes de todas as fases da vida soando ao mesmo tempo e era difícil de entender.  Uma vez perguntei para onde ela ia quando não estava ali brincando e ela disse que era para um lugar chamado inferno. 

Gostava de me perguntar coisas sobre a vida que nunca teve a oportunidade de ter. Eu ainda era muito novo, quase não tinha o que falar, mas me esforçava contando sobre a escola de manhã e os desenhos na tv a tarde, e que nos fins de semana eu não precisava ir à escola, então podia assistir desenho de manhã também. Dos sabores das comidas, sobre ter que tomar banho todos os dias e lavar o cabelo e que esse último o que era uma tortura, porque sempre caia shampoo nos meus olhos.  Não falava sobre nossos pais, uma ínfima menção no assunto já parecia deixa-la incomodada. 

Ela escutava atentamente, sempre com um semblante nostálgico, melancólico, sonhador como se fosse ela que tivesse vivido cada uma daquelas experiências e, conforme eu falava, relembrava e revivia-as intensamente.

 Já sentiu nostalgia de algo que você nunca viveu? O nome disso é anemoia.

 Muito, muito raramente eu a via sorrir.

Talvez tenha sido essa a razão pela qual pela qual batizei inconscientemente a aranha como “Brenda”. Queria que algo vivo carregasse seu nome.

Mas parece que as Brendas que tem algum tipo de ligação comigo acabam morrendo prematuramente.

Se meus pais sabiam da presença dela ali, ignoravam, faziam de conta que não viam. Uma lembrança dolorosa demais para ser confrontada.

Brenda não estava presente no momento em que peguei a aranha homônima. Ainda não estava quando saí para o quintal pela segunda vez depois de encontrar a porta da minha mãe fechada. Realmente uma pena, ela ia gostar muito de ter visto algo vivo além de mim.

Ouvi a voz do meu pai xingando em algum lugar nos arredores. Ele quase nunca ficava em casa, mas naquele dia, por algum motivo estava lá. Encontrei-o na garagem todo sujo e suado mexendo no motor do carro. 

“Oi, pai”, eu disse da porta.

“Oi”, resmungou sem tirar os olhos de uma vela de ignição que examinava minunciosamente. 

Brenda, a aranha, subitamente ficou agitada e tentou escapar. Fechei a mão em volta dela em uma espécie de prisão de garras. Ela se encolheu e ficou quieta. Algumas de suas pernas escapavam pelos vãos entre os dedos.

“Olha”, eu disse aproximando-me dele e estendendo a mão com a criatura em sua direção.

“Olhar o qu…, mas que merda?!

No exato instante em que olhou para minha mão, a tarântula ficou agressiva, erguendo as patas dianteiras, expondo suas presas e sibilando ameaçadoramente.

Elas fazem esse som quando estão perturbadas. Um chiado áspero esfregando os dois primeiros pares de pernas nos pedipalpos. Pegue duas lixas e esfregue uma na outra e você terá o rosnado de uma tarântula irritada.

No reflexo, ele deu um tapa violento em minha mão e a aranha caiu toda desengonçada, correndo acuada para uma pá de lixo cheia de estopas sujas de graxa.

“Você está louco?”, vociferou. Suas írises ficavam ainda mais verdes quando ele estava bravo. 

Fiquei mudo pelo susto,  olhos arregalados e penitentes olhando ora para a carranca irascível dele, ora para a criatura na pá, perdida entre os trapos enegrecidos. Estava massageando a mão dolorida pelo golpe quando senti as lágrimas vicejarem.

“Desculpa, pai”, eu disse com a voz embargada, esforçando-me ao máximo para dissimular, porque sabia que ele detestava isso, porque chorar não era coisa de homem.

Ele nunca foi violento comigo. Nunca me encostou um dedo. Nem na minha mãe. No máximo elevava a voz. Mas também não distribuía mostras de amor ou carinho. Vivíamos quase o tempo todo nessa neutralidade emocional, a mesma com que se trata as responsabilidades materiais. Você não ama seu carro, mas zela por ele. 

Eu sentia essa espécie de medo quando estava próximo.

Não, não, medo não é a palavra exata, mas jamais encontrei uma que expressasse melhor a ansiedade e apreensão que sentia na presença do meu pai. Estava sempre sereno, mas emanava essa aura de ameaça silenciosa. Sempre muito calmo, mas aquilo não parecia certo. Eu tinha a sensação de que em algum instante ele faria algo impetuosamente imprevisível. Como se fosse sacar uma arma e meter uma bala na cabeça do açougueiro que dizia que a alcatra estava em falta.

E ele tinha uma arma.

Várias armas, na verdade e uma delas estava escondida embaixo da minha cama. É por isso que eu não tinha medo de que houvesse monstros por lá. Os monstros são as pessoas, ele me explicou uma vez. Eu não tinha idade para entender na época que ele disse, mas guardei a lição até que tivesse. Muito tempo depois, quando revelou o que fazia de fato para nos sustentar, citou Friedrich Nietzsche: “Quem luta com monstros deve acautelar-se, para não se tornar também um monstro”. Disse que já era tarde pra ele.

Se você usa muitas palavras negativas no seu discurso, as pessoas irão criticá-lo por isso. “Não”, “nunca”, “jamais” “nem ferrando”. Vão dizer que você é negativo. Eu não acredito nisso, não acho que uma coisa tem a ver com a outra. Você não é as coisas que diz. Meu pai por exemplo, dizia que era policial. Ele não era. Nunca foi. Era apenas a forma mais fácil de justificar as armas e os longos períodos fora de casa.

Minha mãe dizia “estou bem” depois de expelir bolhas grossas de pus e sangue durante uma sessão de tosses. Isso não a fez ficar bem.

“E se ela tivesse picado você?”, estava agora perscrutando a pá, sacudindo-a para que as estopas saíssem de cima da aranha. Ela ficou naquela posição agressiva mais uma vez quando ele se aproximou.

Cada aranha tem um tipo de veneno diferente com mecanismos de atuação distintos.

 A picada da aranha marrom passa despercebida até sua pele começar a necrosar. 

A da viúva negra você sente uma dor insuportável e depois pensa que está morrendo. 

A da armadeira causa uma ereção de até quatro horas.

Você sobrevive na maioria dos casos.

As tarântulas não produzem toxinas nocivas aos seres humanos. Seu mecanismo de defesa são os pelos, assim como as putas que não raspam o sovaco. Sim, meu pai me contou dessa prática de algumas prostituas. Quando não estão a fim de trabalhar a rodo num dia, ficam sem raspar os pelos das axilas, das pernas e o busto para ficarem menos atraentes e os homens não a escolherem. Ou escolherem menos. Porque existe tarado pra tudo.

Ele sempre escolhia uma dessas peludas, só pra sacaneá-las.

“Hum… é só uma caranguejeira cabeluda, não fazem mal.” Ele já estava mais calmo. “Mesmo assim, você não deve sair por aí catando aranhas com a mão como se fossem joaninhas, escutou?”

Fiz que sim com a cabeça.

Ficou por um bom tempo coçando o queixo e contemplando a tarântula. De repente, ele pareceu ficar bem animado.

“Quer ver uma coisa legal?”

Não respondi.

“Quer ou não?”, disse, levemente aborrecido, como quando você repete a mesma pergunta três vezes para alguém e essa pessoa continua sem entender. 

“Sim…”

Ele pegou um vidro cheio de porcas e parafusos e esvaziou na bancada.  Usando a pá, colocou a aranha lá dentro e fechou. Sacudiu o pote algumas vezes só para irritá-la e o entregou pra mim.

Brenda chiou.

Seus olhos pareciam implorar por misericórdia. Era como se dissesse “por favor, me tire daqui, sou apenas um filhote, ainda tenho cinco longos anos de vida pela frente que quero muito viver. Ou 35 anos se eu for fêmea.” Mesmo a chamando de Brenda, eu não fazia a menor ideia do seu sexo. Inferimos que todas as aranhas são fêmeas porque tratamos sua espécie em geral no feminino. A aranha.

Se você sente compaixão quando alguém te lança um olhar piedoso, iria sentir o quadruplo se olhasse para Brenda naquele momento. 

Meu pai alcançou uma lata de querosene no alto da estante.

“Vem comigo”, e passamos pela cozinha onde ele catou a caixa de fósforos. 

Fomos para o quintal e ele soltou a Brenda num canto do muro. Ela tentou escapar, mas meu pai a impediu com a bota. 

Encharcou-a com o querosene, o cheiro inebriante conspurcando o ar.

Riscou um fósforo e me entregou. 

“O que é isso?”, perguntei.

“Joga nela”, ele estava sorrindo maliciosamente.

“Por quê?”

Ele disse que fazia muito isso na minha idade junto com a turma dele. Chamavam de “mate com fogo!”. Ficavam gritando isso enquanto preparavam o ritual de sacrifício. Às vezes, chamavam de “churrasco de aranha”, mas você não pode come-la depois, como num churrasco de verdade, disse, é só para observar o espetáculo pirotécnico. Se fosse mais velho teria pensado no povo cambojano que come aranhas e como aquele desperdício soaria ofensivo para eles. 

A chama do fósforo se apagou com minha hesitação. Meu pai riscou outro e me passou.

“Vai logo”, disse.

Nunca tive coragem de desobedecer a meu pai. 

Não foi a primeira vez que ele me mandou matar alguma coisa. 

Quando você pergunta a uma criança o que ela aprendeu com o pai, ela vai orgulhosamente dizer coisas como “ele me ensinou a pescar”, “me ensinou a jogar bola”, “me ensinou a andar a cavalo”. Meu pai me ensinou a matar. Um ano antes da aranha, ele me arrastou até uma fazenda, meteu um revólver na minha mão e mandou eu atirar numa vaca malhada que pastava ali perto.

“Atire na vaca e teremos carne no jantar.”

“Eu não quero carne.”

Ele olhou pra mim com aquele rosto impassível que escondia a suposta cólera que eu tanto temia.

“Mas eu quero.”

Hesitante e sem me orgulhar, tombei a vaca com um disparo seco. Meu braço ficou doendo com o coice da arma A noite nós comemos bifes mal passados e ele me perguntou qual era a sensação de comer algo que eu mesmo havia matado. Depois, me explicou que um dia poderia surgir alguém na nossa porta com a intenção de nos matar e se eu tivesse uma chance, era para puxar o gatilho como tinha feito com a vaca. Melhor ainda, dessa vez eu poderia descarregar todo o tambor. Era por isso que mantínhamos aquele revólver escondido em baixo da minha cama.

Sinto muito, Brenda.

Morra com fogo…

Ela correu em chamas como uma vítima de napalm. Então veio um som de alguma coisa estourando, seu abdome. Foi ficando mais devagar até que parou completamente, imóvel como no momento que a capturei. Como se ainda estivesse viva, fazendo a digestão de uma presa.

A existência é um ciclo vicioso, você morre e continua fazendo as coisas de quando era vivo.

Cheiro de pelos queimando.

Teve esse caso nos anos sessenta de um monge vietnamita que ficou famoso por atear fogo em si mesmo como forma de protesto contra a perseguição dos budistas pelo governo. Você encontra fotografias dele queimando por aí.

Brenda morreu queimando por nada.

Por um gracejo.

Estava de barriga para cima, com as patas encolhidas contra o corpo, daquele jeito bem característico que as aranhas morrem.

Meu pai ficou olhando para o corpo calcinado e quase irreconhecível da pobre criatura e disse:

“Legal”.

“E agora?”, eu perguntei sem saber se tinha entendido muito bem.

Ele me passou o pote vazio e disse: “agora você encontra mais aranhas pra gente queimar”.

Uma nova inquisição.

Depois disso não vi mais aranhas. Não até o incidente com Anansi.

***

Ainda me lembro de quando as instalações cinzentas na floresta eram apenas as ruínas de uma antiga termoelétrica. Mas um dia, os homens de sobretudo chegaram e trasmutaram o lugar num complexo de quartéis e laboratórios obscuros. Na época, eu tinha 14 anos e vivia no orfanato de Umbra porque meu pai estava na cadeia e minha mãe havia morrido no surto da Febre Tifoide. Não tinha mais nenhum parente próximo. Um dos garotos, um colega de quarto me perguntou uma vez por que meu pai estava preso e eu respondi que ele estava dirigindo bêbado em vez de dizer a verdade, que ele era um matador de aluguel que trabalhava para a máfia. Casa Santina. Os homens de colarinho azul escuro apontavam um alvo e diziam que aquela pessoa precisava sumir, então meu pai ia até lá e fazia o serviço. E fez isso várias vezes até ser pego em uma emboscada da polícia e o cartel rechaçado. Um maldito rato delator que ferrou com tudo, ele disse. 

Um locutor de rádio estava comentando sobre a presença de veículos estranhos ao longo da interestadual, mas foi cortado pela música. 

Mais tarde foram perguntar ao prefeito sobre a presença daquela gente estranha ali e ele respondeu que eram ordens do governador. O governador disse que eram ordens de seus superiores; mas não era o presidente desvalido, e sim aqueles que de fato exerciam o poder, ocultos nos bastidores. 

Os bonequeiros performando um sombrio teatro de marionetes.

Eu estava no confessionário quando uma das madres abriu a portinhola e disse que havia um homem lá embaixo querendo falar comigo.

É lá que te enfiam quando você faz alguma coisa errada, o confessionário. Eu estava ali porque tinha mandando a madre diretora ir se foder junto com o deus imaginário dela. Era bem apertado e você não podia sair nem pra ir no banheiro. Por isso tinha aquele cheiro de desgraça, uma mistura de suor, merda e mijo. Faz parte do castigo. Deus está muito puto com você. É assim que fazem contigo no Orfanato de Umbra se passar da linha.

Do alto da escada já conseguia ver quem era o tal homem. Estava diferente, os cabelos compridos, a barba enorme, mas era, indiscutivelmente, meu pai. Estava apontando uma arma pra cabeça da diretora e dizendo que não queria saber de burocracia. Ela pediu para que ele fosse embora, que a polícia já estava a caminho, mas nem mesmo ela parecia acreditar naquela mentira deplorável. A polícia de Umbra nunca atenderia um chamado simplório desses. Naquela hora, todo o contingente devia estar espalhado pela cidade, recolhendo corpos das irrefreáveis guerras de facções, a realidade nua e crua de uma cidade apodrecida.

Meu pai mandou que eu fosse para carro lá fora e disse para não me preocupar em buscar nenhum dos meus pertences, porque iriamos comprar novos. Uma nova vida com tudo novo.

Não dá pra ter uma vida nova na mesma cidade com as mesmas pessoas. No máximo, você volta a rotina de antes.

Na estrada, eu estava achando aquela situação muito estranha.

Ele havia cometido tantos crimes qualificados e de tantas maneiras diferentes, que precisaram atualizar a legislação criminal só por causa dele, alguns dos agravantes eram inéditos e não tinham uma pena definida. 

Tinha mais de trezentos anos pra cumprir, mas ali estava, solto seis meses depois.

Bom comportamento?

“Quer saber como saí mais cedo?”, perguntou antes que eu perguntasse.

“Você fugiu?”

Então ele me contou que havia sido recrutado por essa obscura organização que parecia ter laços com o governo chamada “Projeto Falange”.  Em uma noite insone, estava deitado na cela, refletindo sobre o forte cheiro de enxofre dos produtos químicos que usavam para lavar as latrinas, lamentosamente se convencendo a ter de se acostumar com ele, porque dizem que é o mesmo cheiro que se sente no inferno. Muito tarde da noite e então surgiram dois homens de sobretudo de aparência enervante e fizeram uma proposta

Nunca me contou muitos detalhes sobre essa proposta, apenas que continuava sendo um “faxineiro” – o termo que sempre para se referir a si quando falava do trabalho – mas que agora estava caçando criaturas que eram jorrados por uma fossa imunda direto do inferno. A fossa havia sido aberta pela queda de um anjo corrompido.

“Sim, claro”, eu disse.

Sabia que eu não estava comprando a história, então freou o carro, estacionou na encosta da rodovia deserta e me fez descer e ir com ele até o porta-malas.

Quando abriu, subiu um cheiro nauseabundo de morte e havia algo bizarro jogado lá dentro.

“Puta merda, o que é isso?”

Era uma cabeça decepada. Tinha um formato humano, mas o rosto era composto por oito olhos de aranhas, pedipalpos, presas e quelíceras. Não era nem homem nem aranha, mas uma transição macabra entre as duas espécies.

“Um tipo de demônio aracnídeo ou sei lá”, ele respondeu com naturalidade. “Meu primeiro abate nesse novo trabalho”, completou orgulhoso. 

“Mas por que você arrancou a cabeça dele?”

“Troféu. Como as cabeças de alces que os caçadores empalham e penduram sobre a lareira. Pretendo fazer o mesmo.”

O cheiro, a visão e a hemolinfa esparramado estava me dando vontade de vomitar. A cabeça jazia em cima de um sobretudo preto, para que o sangue invertebrado não sujasse todo o porta-malas. O uniforme do Projeto Falange com seu símbolo de plumosas asas celestiais.

Voltamos para casa e nossa nova vida começou.

Dois dias depois e o gato de rua que adotei me traz uma aranha morta como presente.

Três dias e vejo pequenos vultos cabeludos em qualquer lugar que eu esteja.

Quatro dias e meu pai me mostra três aranhas que juntou num pote e me convida para uma sessão tripla de “mate com fogo!” 

Morávamos nos limiares de um pântano e quase não víamos aranhas antes. O ambiente úmido não é tão agradável para elas, além dos sapos e das garças nas poças de lodo que as predam.

Cinco dias, a aranha passeando em mim enquanto durmo e a ferida no pescoço do meu pai.

Seis dias, encontro o gato morto lá fora. O veterinário diz que foi por uma toxina que ele não consegue determinar. 

Uma semana e estou ouvindo sussurros a noite. Uma voz áspera que diz: “encontrem-me, minhas filhas, vasculhem cada canto escuro dessa casa de desgraçados”.

No oitavo dia eu conheci o grande deus Kweku Anansi.

Saímos da cama, e apesar de ser verão, oito da manhã, a escuridão dominava o interior da casa. Na sala, descobrimos que as janelas estavam cobertas por uns tapetes negros e peludos. Meu pai pede para eu esperar ali, saca a arma e sai para investigar. 

Ele volta poucos segundos depois aterrorizado, gritando que tem uma caralhada inominável de aranhas lá fora por todos os cantos, no chão, nas paredes, nas árvores e todas estão vindo em direção da casa. Ele manda eu vedar todas as entradas possíveis enquanto corre para a garagem dizendo que vai montar e carregar o lança-chamas.

Enquanto estou empurrando um armário pesado contra a janela da cozinha, ouço um som de vidro explodindo no banheiro e antes que eu consiga fechar a porta, as aranhas já invadiram e estão pela casa toda. 

Começo a gritar para meu pai que elas conseguiram entrar e ele surge de repente com a salamandra de fogo nas mãos torrando o máximo de aranhas que consegue no carpete. 

Mas o fluxo é insano, quanto mais ele tosta, mais desgraçadas aparecem. Todas as outras janelas estão estourando, e logo estaremos submersos num mar felpudo dessas criaturas.

Quando o combustível do lança chamas acaba, ele atira nas aranhas com o revólver. É como atirar na areia da praia, nada acontece.

Até que percebemos que elas não estão vindo pra cima de nós e sim em direção ao sótão onde meu pai guardou aquela cabeça bizarra. 

O alçapão já está todo contornado por um acúmulo perturbador de aranhas, a massa se arrastando pelas paredes convergindo diretamente para lá. Meu pai abre o alçapão que cospe uma escada e uma horda de aranhas sobem junto com ele.

Ouço som de vidro estourando de novo, mas dessa vez foi meu pai que arrebentou a mansarda. Ele está com a cabeça do deus aranha nas mãos e grita “se é isso que tanto querem então vão lá fora buscar” e atira a cabeça pela abertura quebrada.  

De repente, uma enxurrada frenética e fervilhante surge no jardim da frente carregando o corpo podre do deus aranha. A cabeça dele está ali há alguns metros, jogada no chão, como merda descartada. 

Agora, prepare-se pro circo dos horrores: as aranhas, milhões delas, avançam como enfermeiras insanas em emergência, agarram a cabeça e a costuram de volta com teias no pescoço da criatura

Kweku Anansi ressurge dos mortos.

Numa espécie de comando sombrio, todas as aranhas que antes fingiam que a gente nem existia marcham na nossa direção, em sincronia com a divindade aracnídea.

Assim como nunca soube como meu pai caçou Anansi, nunca soube como o deus o aniquilou. No momento em que estava recuando para a garagem, senti a picada na perna e meus membros pararam de me obedecer. Não sei dizer quanto tempo se passou, mas de repente, lá está Anansi, desfilando com a cabeça do meu pai como um troféu da final da liga de futebol.

A vida é um jogo brutal e dessa vez nós somos os perdedores.

***

Um vozerio e o som das sirenes. Alguém me arrasta para fora dos escombros e me coloca numa maca mesmo eu dizendo que estou bem.

“Tinha quantas pessoas na casa?”, um socorrista me pergunta.

“Eu e meu pai”.

“Tem certeza?”

“Tinha Anansi.”

“Esse era o nome da menina?”

“Que menina?”

“A menina que telefonou avisando do incêndio.”

“Ah. Não. O nome dela é Brenda e ela está morta.

Nem sempre tive medo de aranhas. No entanto, atualmente estou sob os cuidados do médico psiquiatra Doutor Perseu Baumgratz, tratando de um caso severo de aracnofobia. O tratamento está sendo bancado pelo obscuro Projeto Falange depois que os mesmos “gentilmente” me intimaram a substituir meu pai.

A simples menção da palavra “aranha” me traz ansiedade, agonia, formigamento, coceira e um grito entalado na garganta que um dia irá romper, ecoando pelos quatro cantos do mundo e acordando meu pai do seu sono de morto.

Kweku Anansi está em algum lugar lá fora. 

Uma resposta para “Mate com fogo”.

  1. Avatar de Rosa Azul Simone dos Passos
    Rosa Azul Simone dos Passos

    UAU! Você me deixou completamente estática, presa a cada leitura feita em cada linha de seu conto. Merecidíssimo sua vitória no concurso. Parabéns!

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