Gema da Terra

Luiz Eduardo de Carvalho

“não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão”

(Orides Fontela)

Okuta Biyogo herdou dos ancestrais a negra cor da pele, a fome e a sede percorridas nos caminhos da diáspora, além da subsistência traduzida por uma atávica tenacidade que o conduziu, por meses, através das savanas, pelas bordas do deserto, até o litoral longamente contornado, para chegar a um porto a oferecer-lhe a esperança da travessia. Carregava duas últimas pedras preciosas obtidas num distante garimpo da Tanzânia; com uma delas, pagou a clandestina viagem. Na quase ausente bagagem, levava apenas a sabedoria dos instintos e a resiliência dos sobreviventes.

O Mediterrâneo foi emboscada e, do naufrágio, foi só ele o que se deu à praia: quase morto, quase ninguém, quase nada. Somente a promessa de novo começo e a última gema, cujos quilates valiam uma fortuna que jamais acumularia em uma vida de outras lidas. Descobriu o valor após cruzar o rio Guadiana, muitas léguas a oeste da praia espanhola que o acolheu como despojo do imperioso desejo da extinção que matou os demais de sua embarcação. Em Tavira, conseguiu a troca do derradeiro bem e, com o lucro, estabeleceu uma modesta morada. Hoje, habita aquele litoral, onde cuida de barcos no Cais das Quatro Águas para o passeio de turistas e realiza alguma pesca para complementar o sustento modesto, mas suficiente à sua solidão. É visto com frequência no Molhe Oeste Extremo, que alicerça o Farol de Tavira, ou no pequenino Farol Verde Leste, do outro lado da desembocadura do canal, camuflado entre as pedras, como se fosse uma delas. O olhar pregado ao sul, mira a intransponível volta para casa, onde, gosta de sonhar, tem uma identidade, uma família, amigos e outros fantasmas desencarnados pelo abandono. Quimeras manifestadas no largo e alvo sorriso com que saúda com simpatia os que cruzam seu estrangeiro caminho e que é amiúde retribuído com olhares de comiseração pela sua condição de desterro.

Já não dorme ao relento, tampouco passa fome, não vive à margem da própria existência. Carrega, porém, o banzo que prefere traduzir na esperança do resgate de uma vida nunca tida. No branco dos olhos, a luz do impossível retorno: espuma das vagas marinhas na travessia do oceano em conquista de um passado do qual foi expurgado antes que se fixasse como presente ou se insinuasse em alguma dádiva de futuro.  Tem esculpida na face a dureza e a secura de uma rocha presa a este tempo de não ser. Qual suas gemas já feitas em joias, não é desta terra, e já não é de terra nenhuma!

Uma resposta para “Gema da Terra”.

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    Eduardo Carvalho Edu

    Parabenizo A Última Página, na pessoa do Victor Alfons Steuck, pela propositura e organização do certame. Sinto-me muito honrado por vencê-lo e muito feliz por ver um escrito meu acolhido na mente e no coração de um leitor tão aparelhado.

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