HOJE TEM ESPETÁCULO

 Elmo de Mambrino

Corria o ano de 1942 quando, jovem recém-formado, cheguei ao município de Soledade, para montar meu consultório odontológico. Acostumado ao movimento da capital, saí após o jantar e enquanto procurava um bar aberto, fui saudado por uma família sentada em cadeiras na calçada.

Boa noite. O senhor é o dentista? Meu nome é Raimundo Bessa e gostaria de falar com o senhor.

Sentei-me na cadeira que me ofereceram e enquanto passavam um café, Raimundo me falava sobre um parente com problemas dentários a quem me prontifiquei em receber no consultório.

A conversa foi se estendendo, agradável e despreocupada, quando um senhor alto, passou e deu boa noite. Trajava-se inteiramente de preto, tinha vastos bigodes prateados, de pontas caprichosamente retorcidas e caminhava apoiando-se numa bengala de mogno com castão de ouro, lembrança de tempos melhores.

Toda a família ficou muito séria e saudou com gravidade o tristonho senhor, que seguiu caminhando lento em direção à igreja.

Quem é? Perguntei, um tanto intempestivamente.

Raimundo me respondeu: Ah, Doutor, se eu contar esta história triste é capaz do senhor duvidar de mim ou mesmo da minha seriedade.

Picado pela curiosidade, argumentei que era um homem de ciência e embora jovem, já tinha visto e aprendido sobre algumas coisas surpreendentes do mundo e da vida.

Meu interlocutor, após uma pausa, olhou-me nos olhos e começou:

O homem que nos cumprimentou é alguém que vive o crepúsculo da vida de maneira discreta e modesta e, viúvo, tem como únicos interesses o jardim de casa, o mausoléu da família e a igreja onde reza todos os dias. Mas também foi, no ano de mil e novecentos, o Coronel Alcebíades, chefe político local. A patente de coronel da Guarda Nacional foi outorgada pelo Imperador Pedro II. Homem inteligente e com grande tino para negócios e política, logo cresceu muito na região onde exercia ao mesmo tempo as funções de juiz, delegado, advogado, promotor e mais um sem número de encargos além de, claro, decidir quem era quem na prefeitura de Soledade.

O café chegou, acompanhado de sequilhos quentinhos. Enquanto comia com gosto e sorvia o café forte e doce, Raimundo continuava a sua narrativa:

O coronel tinha um único filho: Gastão, menino de índole boa, muito mimado pelos pais, sem que estes mimos o transformassem em um arrogante e inconsequente peralvilho, como muitas vezes acontece com os filhos dos poderosos. Gastão era a fraqueza do coronel, e a fraqueza de Gastão era a boa mesa. A paixão por pastéis, tortas, bolos, assados, pães, frios, refrescos e sanduíches o transformaram em alguém muito crescido para sua idade, com um peso corporal ultrapassando muito os cem quilos distribuidos em quase dois metros de altura.

Embora fosse estimado pelos que o conheciam, Gastão não era feliz, pois acalentava um sonho: encontrar um amor, já que suas dimensões monumentais não favoreciam muito sua mobilidade no imprevisível terreno das conquistas amorosas.

Assim mesmo, Cupido já tinha decidido acertar em cheio aquele alvo fácil. Foi quando Gastão avistou Adelina, filha do sapateiro. A paixão envolveu-o, rápida e inexorável, como os músculos flexíveis de uma sucuri. 

Iniciou-se um namoro, muito vigiado, a contragosto do sapateiro, homem humilde, mas orgulhoso. Ninguém ousou chamar de interesseira a jovem Adelina, que concordou com o arranjo mais por obediência à mãe do que propriamente por amor ou interesse. 

O assunto ainda estava quente na boca do povo quando chegou um circo à cidade. A novidade foi recebida com grande animação, pois chegava o Dia de Finados e um pouco de entretenimento sempre amenizava a melancolia de visitar o túmulo dos entes queridos.

E foi no Dia de Finados, alguns dias após a chegada do circo, que deu-se o mais estranho fato que esta cidade já viu.

Raimundo percebeu meu olhar ansioso, com uma xícara vazia na mão e um sequilho na outra. Reprimiu um sorriso e sentindo uma secreta alegria por impressionar o rapaz da capital, continuou:

Gastão vestira sua melhor roupa, pôs um chapéu coco e com um expressivo anel de brilhante no bolso do colete, empapava o rosto com água de colônia quando ouviu a voz grossa do coronel:

Meu filho, no meu tempo, era o pai do noivo que pedia a mão da pretendida ao futuro sogro, mas hoje em dia está tudo muito moderno. O senhor converse direito. Lembre-se que faca de sapateiro é afiada como um bisturi.

A mãe de Gastão, ajoelhada ao oratório de madeira de lei ricamente trabalhado onde orava fez o sinal da cruz ao lembrar de rapazes atrevidos, castrados após ofenderem a hora de alguma donzela e tornando-se capões de voz aflautada, altos e corpulentos. Tremeu ao imaginar em que seu filho, já tão avantajado, se transformaria ao passar pelo humilhante suplício.

 Num raro rompante afetivo, o coronel abraçou o filho que, olhando de relance julgou ver uma lágrima nascer e correr envergonhada para esconder-se no vasto e negro bigode do pai.

Saiu segurando um ramalhete de flores para a futura sogra e uma caixa de bombons para a noiva. Passando em frente ao cemitério, todo iluminado de velas, lembrou de sua infância junto com outros meninos, raspando a cera ainda morna das tumbas para formar grandes bolas, sendo o vencedor o menino que fizesse a bola maior.

Fazendo a curva por trás do muro do cemitério, Gastão deu de cara com o inconcebível: Adelina agarrada a um desconhecido, boca dentro de boca num beijo devorador.

Fiquei decepcionado com o desfecho da história de Raimundo. Todavia, querendo causar uma boa impressão, já engatilhei alguns comentários inócuos quando meu novo amigo fez um gesto com a mão, detendo-me e explicando.

Eu sei que até agora foi uma história como tantas, mas o que vem a seguir é que marcou para sempre a nossa memória.

Naquela mesma noite, Gastão voltou ao cemitério. Após depositar as flores num túmulo qualquer e, sentado sobre outra tumba, comeu um por um os bombons originalmente destinados à amada… e foi ao circo.

Gastão caminhava maquinalmente. Cada passo que dava em direção à lona iluminada sentia que se distanciava cada vez mais da tão sonhada felicidade. A azia medonha, as assaduras e nem mesmo as risadinhas maldosas que eventualmente ouvia quando passava já não o incomodavam mais. A desilusão o anestesiava. Era como se não pertencesse mais a este mundo. Comprou o ingresso, assustando a bilheteira com seu olhar sem vida e acomodou-se como pôde na arquibancada lotada.

O espetáculo foi muito aplaudido. Palhaços, malabaristas, o mágico, tudo era de primeira qualidade. Então, o mestre de cerimônias tirou a cartola e anunciou com forte sotaque espanhol:

Senhoras e senhores do encantador município de Soledade, temos aqui um desafio à altura da típica coragem deste valoroso povo: Aguilar, nosso trapezista, convida um bravo da plateia a realizar em parceria um número de trapézio recebendo por isto o prêmio de… um conto de réis!

A plateia agitou-se diante do anúncio daquela fortuna, tão perto e tão longe. Endividados, sonhadores, bêbados, amantes, moços e velhos. Todos cogitaram por alguns segundos abiscoitar aquele prêmio, mas iam desanimando ao ver a altura do trapézio e despencaram de um doce mundo de sonhos para a amarga realidade da sua pobreza.

De repente, um corpanzil levantou-se da arquibancada e bambaleou até o picadeiro.

O Mestre de cerimônias não podia acreditar. Nunca ninguém tinha tido tamanha coragem. Alarmou-se com o prejuízo iminente. Um conto de réis era uma pequena fortuna.

Lá em cima, o trapezista Aguilar fez um sinal negativo para o patrão. A plateia percebeu e, batendo ruidosamente os pés, começaram as vaias e exclamações.

Vai! Vai! Vai!

Gumercindo, o mestre de cerimônias, não esperava aquela reação furiosa. Um palhaço sussurrou: 

Seu Gumercindo, vão arrebentar com a casa.

Não se sabe como o ofegante Gastão chegou, com agilidade de símio e sob aplausos calorosos, ao alto do mastro. Lá chegando, passou talco nas mãos e lançou um olhar determinado ao rival. Segurou firme a barra do trapézio e lançou-se ao espaço.

Na fração de segundo em que os trapézios param no ponto mais alto, junto à lona superior, para depois realizar sua vertiginosa descida. Aguilar estendeu as mãos para Gastão. Mas este, em vez de agarrá-las, abraçou-se ao corpo do trapezista com o desespero do náufrago… e com a força do louco!

O trapézio desceu veloz ante a multidão boquiaberta. Gastão e o trapezista desceram, Ouviu-se um um ruído semelhante ao de tecido rasgando e a dupla foi arremessada como uma bala de canhão sobre as arquibancadas.

Um acesso de tosse interrompeu a narrativa. Raimundo bateu com vigor em minhas minhas costas invocando o nome de São Brás, protetor dos engasgados. Um sequilho voou de minha garganta e caiu sobre a calçada.

Desculpe Doutor. Não quis afligi-lo. Sente-se melhor? Minha filha. vai buscar um copo d’água pro doutor.

Respirando aliviado, balbuciei:

E… então?

Foi um despautério, doutor. Um descalabro! Debaixo da massa informe de gordura, carne e ossos expostos que um dia foi um apaixonado noivo, extraíram meia dúzia de cadáveres esmagados e fez-se uma estarrecedora descoberta: A metade do corpo do trapezista Aguilar, da cintura para cima, totalmente desossada, mole e amassada como um paletó velho. Foi quando ouviram-se os gritos de pavor de uma mulher.

A infeliz Adelita, com o rosto entre as mãos erguidas e trêmulas, cheia de horror, contemplava no alto da lona duas atléticas pernas enganchadas no trapézio unidas a meio esqueleto pendurado, gotejando sangue sobre o picadeiro.

4 respostas para “HOJE TEM ESPETÁCULO”.

  1. Avatar de ALUIZIO MOISES DE MEDEIROS
    ALUIZIO MOISES DE MEDEIROS

    Quanta imaginação, originalidade e escrita cativante 👏👏

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  2. Texto sensacional de um mestre da Imaginação e da escrita. Tudo desenhado com palavras e colorido com muita criatividade!

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  3. […] valor muito baixo, me sinto até mal de ter pago esse valor por obras tão legais quanto Marfim ou Hoje Tem Espetáculo), depois R$100, e só depois chegamos a R$200 para textos de até 2000 palavras. Já premiamos […]

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